Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 64
Rumo à verdade


Notas iniciais do capítulo

gente kkkkkkk fiquei 3 meses sem postar simplesmente pq sou BURRA. me empolguei pq tava cheia de cap e saí postando tudo em dezembro até q acabaram os capítulos e a “inspiração” e tomei gostoso.
mas ENFIM, depois de algumas madrugadas de devotamento, playlist de lana del rey, muitas xícaras de café e o sacrifício de uma virgem, voltei a escrever


pra quem não se lembra: no cap 60 a shermansky decreta ‘o novo jogo’. agora só tem killer na escola e a porradaria come solta. Também entra o >cronômetro< nas regras, começando a valer um prazo de 90h pra se fazer pelo menos uma vítima; caso o jogador não consiga, leva choquinho e morre torrado. Kentin, q antes tava “só ajudando” o Armin por serem amigos, acaba se mostrando um killer tbm. Depois de uma discussãozinha o trio se entende e depois se sentem prontos pra jogar pra valer !!!!



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[Elsie]

Escolhemos o alvo: um pontinho isolado no GPS do Kentin. Um jogador solitário. Seria nossa presa. 

Agora éramos um trio de bárbaros correndo pelos corredores do colégio como se nada pudesse bater de frente com a gente. Em determinada parte do trajeto, começamos a rir uns para os outros, alucinados, vidrados de adrenalina no sangue como um genuíno grupo de adolescentes bêbados, exceto pelo fato de que o motivo do nosso delírio não era álcool; tínhamos nossas companhias, armas, e o poder de executar vidas com nossas próprias mãos. A sensação de imponência era incrível.   

Nosso objetivo era chegar à sala das aulas de judô. A rota -- pelo o que indicava o GPS -- estava vazia; muitos alunos estavam em lugares mais distantes, com outros pontos ao redor (o que significava que não éramos os únicos que já estavam com "a mão na massa"). 

Chegamos em frente à porta do cômodo, quase prontos pra botar em prática tudo aquilo que vínhamos planejando. Até que travamos ali mesmo com o que vimos. 

A porta fechada servia de apoio para um rapaz virado de costas para nós, com rosto grudado na madeira. Tão toscamente naquela posição, parecia morto -- sendo assim, não havia uma única força que o pudesse manter eficientemente de pé; não fosse a flecha atravessando por trás de sua cabeça, dolorosamente mantendo-o cravejado contra a porta da mesma forma que ficaria uma folha de papel num quadro de cortiça, fincada por um único alfinete. 

— Porra… — murmurou Kentin, coçando atrás da orelha. Nossas expressões tinham abandonado a confiança de segundos antes e agora eram um misto de aflição e agonia. 

Mas havia outra questão ali que incomodava. Como aquele golpe poderia ser fisicamente possível? O tiro vinha pelo lado externo da sala. E se nossos saudáveis olhos não estivessem ludibriando a gente, era bastante evidente que o outro lado do corredor (estreito, até) dava pra uma janela. Estávamos no segundo andar, então não era possível que a flecha tivesse surgido do lado de fora. Ou era? Talvez se estivéssemos lidando com um sniper profissional que tivesse conseguido atirar por trás da janela. Também poderíamos atribuir aquele feito ao nosso inofensivo alvo; mas aí ficava mais difícil de responder ao enigma, já que -- de acordo com o GPS -- ele tava dentro da sala! 

— Tá se mexendo. — constatou Armin, sobre o nosso alvo, mirando de longe o mapa eletrônico na mão de Kentin. 

O ponto começou a se mover dentro da sala, bastante rápido, indo de encontro com a porta. Até que finalmente passou por ela. 

Opa, opa! As coisas começaram a nos intrigar mais, porque ninguém abriu a porta; ninguém apareceu na nossa frente. E o pontinho ligeiro simplesmente se encontrava agora... em cima de nós?!

Travamos outra vez.

Os três cercavam o cadáver, encarando um ao outro com as sobrancelhas franzidas numa espécie de pânico interno compartilhado. 

Até que um ruído se deu acima de nós; viramos para trás instantaneamente e miramos o teto, mais especificamente a grade do tubo de ventilação, por onde naquele exato momento partia uma flecha na direção de Armin. Não tivemos sequer tempo de pensar: o projétil veio e passou de raspão sobre o rosto de Armin, arranhando sua pele e se espetando no chão. 

O pânico foi real.

Na falta de plano e dada a peculiaridade da situação, íamos chispar dali que nem loucos, quando súbita e rapidamente a grade foi aberta e um corpo imenso saltou lá de cima, se pendurando, arremessando os pés contra o dorso de Kentin (que caiu que nem um pedaço de pau no chão) e depois se soltando para o chão de costas pra nós. Ele olhou por cima do próprio ombro pra mim, um sorriso na face e a balestra descansando nas mãos. O esguio líder do clube de basquete, Dajan. 

Armin ainda tava em choque, tremendo depois de quase ser acertado, Kentin tava no chão e eu engoli seco por uns dois segundos enquanto Dajan me devorava com os olhos. 

Mas a adrenalina de repente me incendiou: catei a pistola no coldre atrás da calça e apontei firme para Dajan, muito certa e confiante do que fazia. 

Ele não perdeu tempo: decolou pelo corredor. Disparei dois tiros seguidos (ainda nada acostumada com o impacto do recuo), mas não passou nem perto. Dajan tinha o porte atlético e veloz, pra complicar. Ele rapidamente chegou ao final do corredor e pulou, se infiltrando feito uma cobra para dentro de outra abertura do tubo de ventilação. Insano. 

— Desgraçado… — murmurei, e abaixei a arma rente ao corpo. 

— Parece que encontramos nosso alvo, enfim. — disse Kentin, se levantando do chão.

— E perdemos ele também. — falou Armin em tom de graça, enquanto limpava o filete de sangue no rosto com a ponta do dedo. — Não sei vocês, mas não dá pra emplacar contra esse cara não. Só o pulo que ele deu minha cervical ia pro saco. 

— Eu até consigo subir na tubulação… — analisou Kentin. — mas não sei se seria uma estratégia muito eficiente. 

— A gente precisa primeiro saber pra onde ele foi. — falei. 

— Ele tá seguindo na direção da sala de projeção. — Kentin observou em seu GPS. 

— Faz sentido a gente ir atrás? — perguntou Armin. 

— Já estamos aqui, não é? Faz sentido voltar? 

— Enquanto ele estiver dentro da tubulação fica impossível a gente fazer qualquer coisa. —  eu olhava pro teto. 

— A gente pode usar a sua bomba de gás lacrimogêneo. — falou Kentin. — isso vai obrigar ele a sair. 

— Isso daria certo? Tipo… não ia estourar todo o teto e fazer ele cair em cima da gente? Ou chamar a atenção pra nossa posição. 

— Ninguém iria querer se aproximar de um lugar que acabou de dar um estrondão alto. É instintivo. E, sobre explodir o teto… o impacto dessas bombas serve mais pra lançar o gás pra fora.

— Se você tá falando… — disse Armin, e completou com certa determinação na expressão: — Então o que a gente tá esperando aqui parado? 

Corremos atrás do ponto seguindo todo o caminho que ele percorria dentro da tela do GPS. Quando Dajan finalmente parou de se mover, decidimos não chegar tão perto a ponto dele conseguir nos ver (afinal, ele poderia fugir para mais longe, ou, simplesmente, nos atacar de novo), mas suficientemente próximos para que o nosso plano conseguisse atingi-lo. 

Ali onde estávamos, conseguimos encontrar uma das aberturas gradeadas do sistema de ventilação, por onde era facilmente possivelmente enfiar a mão e lançar a bomba para dentro da tubulação. E foi o que fizemos!

Armin ficou toscamente posto de quatro no chão enquanto Kentin apoiava os coturnos pesados sobre suas costas e o usava de degrau. 

— Se preparem. — falou Kentin, com a bomba em suas mãos. 

Num movimento rápido ele tirou o tampão com os dentes, lançou com força o apetrecho pra dentro da ventilação e pulou das costas de Armin (que fez uma careta expressiva de dor e colocou a mão para trás apertando os nervos da coluna). 

Um estouro se deu alguns metros à frente, onde a latinha tinha alcançado no teto. Não chegou a ser intenso, mas suficiente pra estufar o metal da tubulação e consequentemente o forro do teto. Um pouco de fumaça saiu de dentro do escape acima de nós; nada que fosse de fato um perigo.

Dajan logo começou a se locomover freneticamente no radar -- era como uma barata atrás do sofá correndo de um jato de veneno. Ele tomou uma rota inesperada: foi pra sala da enfermaria. Ele com certeza usaria a sala pra escapar do ar tóxico da tubulação. Oportunidade perfeita pra encurralarmos ele! 

Começamos a correr em direção a enfermaria como três lunáticos e chegamos frenéticos em frente à porta branca. 

— Vamos lá. — celebrou Armin, apalpando o bastão de beisebol com a mão oposta à que usava para segurar o instrumento, e deu um chute triunfal na porta, que se abriu violentamente. 

Armin ficou parado sob a moldura da porta com o bastão preparado frente o rosto, encarnando o próprio rebatedor de beisebol, ligeiro e atento, avaliando o interior escuro da enfermaria enquanto o aguardávamos dar o primeiro passo. Kentin sorrateiramente fechou a porta com a mão sob as costas. Ao fundo, a única janela do cômodo, aberta, ofuscava nossa visão com o brilho branco da luz exterior e tornava minimamente visível a disposição da sala: as cortinas divisórias, que sob circunstâncias comuns se mantinham abertas pra que o ar circulasse, estavam agora todas fechadas, se remexendo levemente com a brisa horripilante que vinha da janela. 

Dajan estava na sala -- possivelmente dentro de qualquer uma daquelas divisórias fechadas. Ele sabia que três jogadores estavam atrás dele e era esperto o suficiente pra saber que tava em desvantagem. Então recuar e se esconder talvez fosse, naquela ocasião, a estratégia mais favorável. 

Armin deu o primeiro passo. Eu e Kentin fomos por trás, dando segurança; ele com a faca de combate em mãos, eu com a Taurus PT-57. 

Estávamos em nossas respectivas posições quando, de repente, o vulto de uma flecha passou por perto. Tão rápido quanto ficamos aliviados por termos “escapado” da flecha, entramos em pânico quando notamos que ela tinha, na realidade, atingido um extintor de incêndio preso na parede próximo de nós. Uma confusão de fumaça branca rapidamente nos cercou e cegou. 

Um armário de ferro da sala, próximo de nós, parecia ter sido fantasmagoricamente acionado e despencou na nossa direção como uma peça de dominó gigante. O mais próximo do móvel foi coberto pelo peso -- Kentin. Armin e eu demos um grito, apavorados; mas por sorte Kentin não tinha tríceps definidos só pra enfeitar o braço -- num rápido reflexo ele ergueu as mãos e apanhou o móvel de ferro, impedindo o pior.

Armin, Kentin (ainda segurando o armário) e eu ficamos imóveis, com olhos e ouvidos bem atentos, enquanto a fumaça não se mandava pra longe. 

Aquela sala tinha claramente sido preparada, o que implicava que Dajan provavelmente já planejava arrastar alguém pra enfermaria em dado momento e montou a armadilha. Ele também esperava que fossemos atrás dele e por isso fez questão que o víssemos entrando na tubulação. 

Achávamos que tínhamos encurralado a presa? Pois nós é que estávamos encurralados agora. E era impossível tomar qualquer decisão; qualquer passo em falso e podíamos nos ferrar, ao mesmo tempo que ficarmos parados também era um risco. 

A fumaça tava prestes a se esvair completamente, até que outra flecha de repente cortou o ar ao nosso lado e partiu em direção… ao Kentin!

Foi desesperador: Kentin gritou horrorizado e dolorosamente enquanto a ponta do projétil fincada em seu antebraço fazia sangue escorrer para fora. Seus braços se estremeceram e o peso do armário estava prestes a ceder. 

Armin então rapidamente largou o taco e correu pra ajudá-lo, segurando o móvel com as mãos acima da cabeça quando Kentin cedeu no chão pela dor. 

Em meio à desordem e a fumaça rala, consegui distinguir a figura de Dajan se aproximando. Ele lançou sua balestra pro chão (já que agora parecia ter acabado com os estoque de flechas) e sacou uma faca portátil de trás da calça, rapidamente abrindo-a e partindo em minha direção.

Mexa-se! Levantei o corpo do chão, apoiando o peso nos joelhos, e ergui os braços pra frente, apertando um dos olhos pra tentar mirar com o máximo de precisão. Cheguei a pressionar o gatilho e atirar, mas Dajan era extremamente ligeiro -- ele conseguiu se desviar do alvo nanossegundos antes, se jogando para dentro de um dos leitos. Levante-se! Corri quase que instantaneamente atrás de Dajan, rumo às divisórias. 

— Toma cuidado, Elsie! — bradou Armin enquanto mantinha-se segurando o armário.  

Quando me aproximei da divisória que Dajan tinha penetrado reduzi o passo e parei em frente. Meus batimentos estavam acelerados. A pistola apontada para o cortina fechada, enquanto tentava materializar sua presença do outro lado. Quem agiria primeiro? Eu não tinha certeza de sua exata posição e não podia desperdiçar mais balas em vão. 

A tensão no ar fazia a adrenalina percorrer rapidamente todo meu sangue, mas minhas mãos não tremiam; pelo contrário, estavam mais firmes que nunca. Havia uma convicção dentro de mim -- estranha porém tremendamente familiar -- que fazia eu me sentir muito segura naquela situação.     

Segurei a cortina do leito com um braço, pronta pra atirar com o outro; abruptamente a ergui e enfiei a pistola pra dentro do leito. 

Mas Dajan não estava lá. 

Assustada, olhei pra trás, pra fora do leito, imaginando que ele tentaria um ataque surpresa pelas minhas costas. 

Até que, de repente, de um dos leitos vizinhos, surge o diabo, súbito e inesperado, indo para a divisória que eu estava; tão rápido que só pude vacilar pra trás e soltar um grito assustado quando ele veio diretamente na minha direção com a lâmina. 

Mesmo ainda segurando a pistola, não fui capaz de usá-la, pois me empenhei desesperadamente em segurar os braços de Dajan; isso enquanto ele sorria, confiante, tentando penetrar meu rosto com a faca.       

— Tsc! — eu fazia força, franzindo a testa e apertando os lábios um contra o outro, na expectativa de conseguir empurrá-lo pra trás. Coisa que era inútil por conta de muitas variáveis: Dajan devia ter quase vinte centímetros a mais que eu; seus braços eram magros, mas extremamente fortes. 

Meus braços começaram a vacilar, trêmulos, já perdendo a força. Dajan se aproveitou, e conseguiu aproximar a lâmina muito mais perto que em qualquer outro momento. Senti a fisgada na lateral do rosto, se arrastando para cima conforme eu tentava manipular a faca pra longe, abrindo um considerável arranhão que começava a arder rapidamente.      

Na confusão, a pistola caiu no chão (por muita sorte não disparando). Naquele rápido momento, livre do peso incômodo da arma, junto a um um ápice de esperança e adrenalina que me invadiram, consegui afastar os braços de Dajan para acima da minha cabeça. Mas eu sabia que essa tática não funcionaria por muito tempo; precisa pensar em algo novo, rápido. 

Pensei e não me tardei em botar em prática: se não podia usar os braços, usaria as pernas! 

Chutei, chutei com todo o desespero que me sufocava naquele momento; na canela, nos joelhos e, finalmente… um violento chute nas partes baixas. Com isso consegui obter o resultado esperado: Dajan soltou minhas mãos e recuou pra trás. Um sorriso torto se fez em seu rosto, como se ele ainda tentasse transparecer sua pose inabalável, embora agora a dor forte o impedisse. 

Minhas narinas abriam e se fechavam em ritmo acelerado, tentando recuperar o fôlego que tinha perdido naquela loucura. De repente, corri em sua direção, muito firme de que ele não teria força pra levantar a faca contra mim naquelas condições. E foi exatamente isso que aconteceu. 

Fui com tudo e empurrei ele pra maca do leito. Dajan se desequilibrou, deixando a faca pular pra fora de sua mão, e despencou de costas no colchão. 

Mergulhei no chão procurando minha pistola, mas ela tinha caído muito mais longe do que eu poderia rastejar naquela ocasião que exigia medidas quase que instantâneas. Fui pelo o que tava mais próximo: a faca de Dajan recém-caída. 

Estava pra levantar do chão, ardendo em adrenalina e pronta pra acabar com tudo aquilo; levantei, me virei pra maca, e gelei com Dajan que já estava de pé às minhas costas. 

Ele imobilizou meu braço; fui girada e violentamente jogada de costas contra a maca. Antes que eu optasse por qualquer reação, Dajan veio, com suas palmas grandes e imponentes e rapidamente apanhou meu pescoço com ambas, apertando, sufocando e empurrando contra o colchão. Meus braços ficaram moles e a faca facilmente escorregou da minha mão. Comecei a debater os pés em agonia, convulsionando, tentando buscar ar e falhando miseravelmente. 

A sensação de impotência e o torpor tinham me dominado completamente. A falta de oxigênio começou a se intensificar, e a visão de Dajan sorrindo como um demônio sádico, acima de mim, parecia mais como um borrão naquele estágio.

Tudo estava escurecendo. 

Até que, de repente, luz

Literalmente, uma luz. 

A cortina do leito tinha sido aberta e havia uma silhueta familiar ali, borrada e nada nítida, contornada pelos raios de claridade da sala.

Assim que ouviu o barulho das roldanas da cortina, Dajan olhou para trás, por cima de seus ombros, sendo surpreendido quando a silhueta brotou às suas costas e, numa tacada só, se ouviu somente o estampido, o baque duro do pedaço de madeira contra sua cabeça

Dajan soltou meu pescoço e pareceu cair fatalmente no chão.

Elsie?! — enquanto isso, acima de mim, a voz de Armin e sua figura pareciam criar uma forma mais compreensível, à medida que eu me recuperava da falta de ar. — Você tá bem? Ele te machucou?! — perguntou ele, arfando.  

Remexi a cabeça, olhando-o fixamente, ainda um pouco atordoada, enquanto retornava pouco a pouco ao meu estado natural. 

Sentei sobre o colchão e voltei a atenção para o corpo de Dajan, caído tortamente no chão ao lado da maca. Armin agachou para verificar sua respiração; mesmo que só de vista era possível constatar o óbvio: estava morto. A pancada tinha sido monstruosa; os olhos estavam saltados e avermelhados, sangue gorfava para fora de seu nariz. 

Ali jazia nossa primeira vítima, depois de tanto tempo tentando evitar o inevitável. 

 

Catamos o que nos era útil dali de dentro (minha pistola e a faca de Dajan) e saímos do leito, fechando a cortina sob nossas costas. Logo em seguida nos entreolhamos, sérios e calados. Não precisávamos falar nada. Via em seus olhos o que ele pensava, quase como se as suas palavras fossem diretamente emitidas na minha mente; e sabia que ele sentia o mesmo vindo de mim. 

Armin fechou os lábios um contra o outro, “Aqui estamos de novo”, era o que representava aquele gesto.

“Tá preparado pra carregar um fardo muito maior que os de antes?”, ergui as sobrancelhas.

Ele ergueu o canto da boca, formando um sorriso de chateação: “Acho que não tem mais volta, não é mesmo?”.

Nossa conversa telepática ficou quieta. Isso inevitavelmente me levava de volta ao meu primeiro dia em Sweet Amoris, quando nós dois tínhamos -- ou achávamos que tínhamos -- eliminado Jade.

Armin desviou os olhos por um rápido instante, num sinal que parecia querer dizer a questão ainda não discutida: “Mas e você, Elsie? Tá pronta?”. 

Ouvimos um gemido de dor e instantaneamente nos lembramos do estado que Kentin se encontrava. Num choque olhamos em direção à entrada da enfermaria, encontrando-o escorado contra a porta, respirando intensamente, tentando resistir à dor e se manter de pé enquanto filetes de sangue escorriam como uma cascata em torno do seu braço. Nos apressamos até ele. Armin o tomou, colocou o braço saudável em torno de seu pescoço e o transportou até um dos leitos dali. Tínhamos muita sorte de estarmos enfornados justo na enfermaria.       

Precisávamos nos reorganizar: Colocamos um móvel de trás da porta pra bloquear -- pelo menos por algum tempo -- qualquer um que tentasse nos atacar naquele momento desprevenido. Armin meteu o taco pra partir o cadeado do armário de medicamentos e nós começamos a vasculhar tudo que podia nos ser útil ali.  

De pé ao lado do leito de Kentin, prendi meu cabelo com um elástico de borracha que achei jogado e arregacei as mangas do casaco determinadamente. 

— Tenta relaxar, okay? — sussurrei quase maternalmente.

Tenso, Kentin mordia o lábio inferior enquanto sua expressão franzida não negava a dor:

— Manda ver.  

— Juro que vai ser que nem arrancar dente. 

Nunca imaginei que eu tivesse capacidade suficiente pra agir ativamente daquela forma; mas até que eu vinha descobrindo bastante coisa sobre mim mesma durante aquele longo e interminável dia.   

Kentin se envergou de agonia quando rapidamente puxei a ponta da flecha de dentro da sua carne. Estanquei com a gaze e Armin me ajudou a passar o esparadrapo em torno. Tínhamos os medicamentos todos à nossa disposição também (e fomos enchendo nossos bolsos com o que podíamos depois). 

O cronômetro de Armin tinha resetado sem que tivéssemos nos dado conta; embora os minutos tivessem voltado a transcorrer novamente já há algum tempo. Enquanto isso, Kentin e eu contávamos com 82 horas restantes, das 90 inicialmente disponíveis. Sim, o processo de nos equiparmos e toda a correria contra Dajan até aquele momento tinha nos tomado oito horas. 

Aproveitamos a presença de um lavabo e nos hidratamos com a água da torneira mesmo, fazendo conchinha com as mãos. A fome também veio dar suas boas vindas; dividimos e detonamos o feijão enlatado do Kentin como animais.     

A claridade branca que vinha da janela foi gradualmente se transformando num pôr-do-sol avermelhado; e a sala cada vez mais escurecia. Sem justificativas pra ligarmos a luz (afinal, isso seria basicamente entregarmos nossa posição), em pouco tempo mergulhamos nas trevas da noite. 

Quando o sono nos abateu decidimos revezar a escolta; só pra caso alguém tentasse invadir a sala. A cada uma hora alguém ficaria de olho no radar do GPS observando os pontos vermelhos espalhados pelo mapa da escola, enquanto dois tiravam tempo pra cochilar. 

Kentin tinha apagado ali na maca mesmo, segurando o braço machucado, enquanto Armin puxou um banco de visitas e dormiu sentado, com a cabeça metida entre os braços próximo aos pés do Kentin. Fiquei sentada no chão, reclinada contra a parede. Era meu momento de guarita.  

Bocejei enquanto refletia. Por um momento iluminei a sala com a luz do aparelho GPS -- a enfermaria parecia ter sido alvo de vândalos: os armários arrombados, massa de extintor espalhada pelo chão e um cadáver apodrecendo dentro de uma daquelas divisórias. A morte não era mais uma grande novidade pra nós, mas, de fato, as coisas ficavam muito mais intensas e instáveis seguindo as novas regras de Shermansky. 

Estava feliz por estarmos os três juntos. Estávamos alimentados e de certa forma seguros. 

Era uma noite extremamente silenciosa, em contraste com o turbilhão de vozes e pensamentos que inundavam a minha mente: no fundo, eu sabia que as coisas ficariam cada vez mais complicadas e a tendência era que a pacificidade fosse ficando cada vez menos presente. Mas, até que a experiência daquele dia me fazia pensar com certo positivismo; sentia que se nós nos mantivéssemos naquele ritmo, no final das contas, nos sairíamos bem.

Segurei o colar relicário da tia Agatha dentro a mão, como se com o gesto fosse possível buscar uma espécie de proteção. Era um caminho sem volta, afinal -- rumo à verdade.



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