Dracocídio (versão descontinuada) escrita por Luiz Fernando Teodosio


Capítulo 10
10º Assimetria - Formas e Unidade


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal. Algumas informações importantes.
Como devem saber, essa é uma história ainda em construção, publicada mensalmente para angariar leitores e receber feedbacks que possam ajudar na lapidação dela. Nas últimas semanas, andei fazendo algumas alterações nos capítulos já publicados. Mas, calma! Não modifiquei a história, exceto nos seguintes detalhes:

— A primeira parte do primeiro capítulo, quando Seph é criança, foi modificado para esclarecer algumas informações ao leitor. Construí cenas que se passassem num dia específico em vez contar como era a vida de Seph em seu lar, ou seja, reorganizei as informações apresentadas. Talvez valha a pena reler a primeira parte do capítulo, mas não fará muita diferença para a compreensão da história.
— O Seph criança, que tinha cabelos negros, agora possui cabelos ruivos. Pois é, nem sempre conhecemos a fundo nosso personagem. Fiz essa modificação por causa dos cabelos ruivos da mãe e da tia, e também porque a coloração dos cabelos faz alusão ao vermelho do brasão da família.
— O brasão da família Dracomir é o símbolo de Ouroboros.
— Em vez de três reinos, esse mundo possui quatro reinos.
— No capítulo 5, quando o Seph pensa ter visto um dragão e eventualmente é capturado pelos cavaleiros de fogo. Nessa nova versão, ele apenas ouve um rugido e conta com a cor vermelha da lâmina de sua espada para comprovar a existência de um dragão nas proximidades.



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10º Assimetria

Formas e Unidade

Devoção integral aos deuses era um requisito primordial para servir os Dracomir, e o clero realizava uma triagem rigorosa para garantir fidelidade à linhagem sagrada. Assim, a família gozava de serviçais inteiramente leais, prontos a confortá-los em atividades domésticas ou protegê-los com a espada na mão. Eles residiam em um casarão aos fundos da mansão, bem abastados e satisfeitos com a vida, não tanto pela comodidade e sim por pertencerem ao grupo de confiança dos Dracomir.

Quando Boris reunira todos os serviçais após ter chegado da viagem a Ouroborus, a fidelidade à família seria posta à prova como nunca na vida deles. Embora exercessem cargos de privilégio, não eram dignos de contemplar um deus em crescimento. Por isso foram apenas informados a respeito de um filhote de dragão e que dali em diante deveriam manter sigilo absoluto sobre essa revelação. Todos ficaram extasiados com a notícia e juraram guardar segredo até o momento da Dragonia. Mas um deles falhou, revelou a existência do dragão a um terceiro e tentou roubá-lo para ele. Como punição, foi esquartejado, e sua carne, queimada para alimentar Tiamat. Pelo menos foi isso o que Seph ouvira de Myriel. O garoto havia ficado enjoado com a possibilidade dele ter oferecido a carne do ladrão sem saber, mas o cavaleiro de fogo o confortara dizendo que quem o fez foi seu pai.

Tudo isso lhe veio à mente quando Boris entrou em seu quarto nas primeiras horas da manhã para fazer um pedido.

— Como seus primos não estão em casa, essa tarefa caberá a você. — Era raro o pai lhe pedir algo pessoalmente — Quero que faça companhia à filha do casal Ryuu. São nobres reais do Reino do Oriente, e a filha deles tem a sua idade. Mas, lembre-se bem, Seph. De maneira alguma mencione o filhote de dragão. Sabe quais serão as consequências se o fizer.

Para ser sincero e preciso, Seph não sabia, a não ser que o pai tivesse coragem de cortar o próprio filho em pedaçinhos e dá-los de comer ao seu melhor amigo. De qualquer forma, ele aceitou a tarefa, pois, deixando essa preocupação de lado, tinha imenso interesse em conhecer alguém do Oriente, cuja terra e população só reconhecia por meio de livros e pinturas.

Seph partiu em direção às escadas. O pai havia dito que ela o esperava na entrada da mansão. Durante o caminho, comentou com o dragão de uma tapeçaria:

— Sheng, vou me encontrar com alguém de sua terra natal.

Quando desceu ao saguão, encontrou-a onde seu pai dissera. Parecia fitar o gramado, nem sequer percebeu sua aproximação. Ele reparou na indumentária incomum dela — lembrou que se chamava quimono —, de cor rosa, recheada com estampas de borboletas amarelas. Mas a maior impressão exótica ocorreu quando ela se virou, notando-o finalmente. Tinha o rosto um pouco triangular e olhos amendoados, os cabelos escuros eram lisos, semilongos e bem aparados. Ela fez uma reverência comum ao costume do oriente, inclinando o busto para frente.

— Meu nome é Haruka Ryuu, filha mais nova de Ichiro e Hanako, senhores do Reino do Oriente. É um prazer conhecê-lo, Seph Dracomir.

Era a primeira vez que ele vislumbrava uma oriental frente a frente. A imagem deixou-o mudo por alguns segundos, ao ponto da menina lhe perguntar se havia algo de errado.

— Hã? Não, nada — ele respondeu.

— Sua casa é bem maior do que a minha, e um pouco diferente — comentou Haruka, se dirigindo para o centro do saguão e observando a arquitetura.

O teto abobadado era adornado com pinturas magníficas de dragões bailando nos céus e despejando chamas furiosas. Nesta arte também havia um grupo de homens sendo acossados por baforadas flamejantes, correndo em regiões inóspitas e queimadas; e outros grupos em espaços civilizados e rurais louvando esses deuses pelas bênçãos que distribuam no mundo. O carpete no qual pisava ostentava o brasão dos Dracomir, também talhado na porta de entrada feita carvalho.

— Lá também temos dragões, mas são diferentes — disse a garota. — Esses daqui parecem lagartos gigantes com asas. São meio assustadores.

Confabular sobre dragões era sempre excitante para Seph, e vendo que Haruka tinha inclinação pelo assunto, deu corda à conversa:

— Eu cresci aqui. Então, pra mim, até os mais assustadores têm uma aparência doce.

— Aparência doce? — Haruka tentou prender o riso, mas não conseguiu. Apesar do entusiasmo por ver alguém um pouco diferente, Seph achou-a igual a todos os outros, sempre rindo de seus sentimentos para com os dragões. — Desculpa. É que eu achei meio fofo, pra ser honesta.

O anfitrião sentiu um estranho calor no rosto que derreteria qualquer réplica antes dela lhe sair da boca. Não conseguiu falar, sequer gaguejar. Seus olhos congelaram no sorriso da menina que recebera seus sentimentos com inesperada ternura.

— Ei, o que foi? — disse Haruka, vendo o garoto emudecido. — Parece que subiu num dragão e foi voar por aí.

Muito próximo disso, Seph imaginou. De repente, a força das palavras retornou quando uma ideia lhe veio à mente.

— Vem comigo.

Haruka o seguiu por um corredor à direita. Seph ouviu-a exclamar maravilhas a respeito dos vitrais que mostravam dragões sobrevoando paisagens naturais, dando a impressão de que encontraria esses cenários no mundo lá fora. Em seguida, subiram alguns lances de escada até a luz do dia banhar-lhes novamente o rosto. Encontravam-se no terraço da ala leste, onde Seph costuma ir para obter ar fresco e observar a floresta e a cidade de Nidavil ao longe. Haruka correu até uma estátua de pedra ondeada que percorria toda a extensão da amurada.

— Um dragão do oriente!

Seph presumira aquele sorriso arrebatado.

Ela tateou a mão pelo corpo áspero do dragão, sentindo as nuances das escamas talhadas com muito esmero, e chegou à cabeça, uma magnífica e precisa representação da face de um deus do oriente, com a boca larga e bigodes compridos nascidos do focinho.

— Incrível. Não sabia que havia dragões de outros tipos aqui.

— Não é à toa que esse é o lar da família Dracomir — disse Seph, contentando-se com a alegria da menina que admirava a estátua. — O nome dele é Shiryuu.

— Hã? O quê? Você dá nome às estátuas? — Haruka achou graça. Não havia escárnio em seu sorriso, apenas o interesse animado de quem encontra algo exótico.

— Não apenas dou nome, também converso com elas.

— Conversa… com elas? — A garota pareceu matutar essas palavras, e a curiosidade transbordou em seu olhar até ser despejada numa pergunta: — Com quem você conversa mais? Com as pessoas ou com os dragões?

Era o tipo de pergunta que obrigava Seph a revelar um ponto importante de sua vida.

— Bem, é que… meus pais não permitem que eu saia muito de casa. Então, pra não morrer de tédio, acabei fazendo alguns amigos, por assim dizer.

Não era a primeira vez que ele confidenciava isso à outra criança. Preparou-se para receber um olhar de estranheza que sufocaria seus sentimentos, no entanto, eles puderam respirar. Haruka sorria para ele.

— Então me apresente aos seus outros amigos — disse a garota. E Seph retribuiu com um largo sorriso cheio de entusiasmo.

— Claro! Vem comigo.

Haruka seguiu-o mais uma vez, não sem antes voltar-se para o dragão da ameia e se despedir, fingindo ser sua companheira de conversa, como Seph fazia.

Eles visitaram todos os dragões hospedados na mansão, alguns expostos facilmente e outros tão escondidos quanto dragões de verdade. As horas transcorreram sem serem sentidas pelas duas crianças absortas na excursão para conhecerem os amigos de Seph.

Os últimos foram os dragões gêmeos de mármore no lado de fora, prostrados a alguns metros antes do portão. O sol a pino dava um brilho imponente às esculturas, e, observando-as, Seph ouviu Haruka indagá-lo:

— Por que será que são tão diferentes?

— Como assim diferentes? São iguaiszinhos.

— Não falo deles. Me refiro aos dragões… a todos os dragões.

Seph já havia feito essa indagação a si mesmo e resolvera tirá-la a limpo com Sabino. Lembrou-se de ter ido à biblioteca há alguns meses e encontrado o preceptor entre uma pilha de livros na escrivaninha. Quando formulou a pergunta, Sabino ajeitou os óculos, como sempre fazia ao iniciar uma explanação.

— Seph, nosso mundo não é exatamente povoado por pessoas, mas por grupos de pessoas, e cada um desses grupos possuem formas diferentes de viver. Por esse motivo, os deuses assumem formas distintas, de modo que eles se tornem familiar aos grupos que irão adorá-los. Assim como temos flores que só aparecem numa região e não em outra, ou frutas, ou árvores, ou animais, também temos deuses que pertencem a um lugar e não a outro. Mas isso não nos impede de apreciar a flor, a fruta, a árvore ou o animal de outra região, pois tudo isso é natureza. E por isso também adoramos todos os dragões, pois todos eles formam o mesmo panteão.

Recordando-se da explicação de Sabino, Seph procurou passá-la a Haruka, que, no entanto, mesmo após a reposta, não desfez o rosto duvidoso.

— Mas às vezes eu fico me perguntando…

— O quê? — incitou Seph ao notar a hesitação dela.

— Se… todos os dragões, na verdade, fossem um único deus.

— — — —

Seph sonhou com o dragão de sua infância duas noites após o encontro com o Feiticeiro de Olhos Dourados. No mundo onírico, regressou ao passado ao caminhar pelas lembranças da mansão Dracomir. Tinha de si a imagem de uma criança que, por alguma razão, sabia que não havia mais um dragão para alimentar. Mas esse dragão estava em todo lugar, em cada estátua e ornamento com que se deparava, eliminando os antigos nomes adotados por Seph e tomando apenas um: Tiamat.

Após o sonho, Seph despertou em meio a um tapete de folhas com formas e colorações diferentes. A brisa matinal as varreu do chão e fez farfalhar a árvore na qual ele estava encostado. Novas folhas se desprenderam da árvore e caíram no chão. Seph não soube por que esse evento natural lhe prendeu a atenção, talvez para ter uma impressão inicial e precisa do início do dia, ou… algo relacionado ao sonho que tivera. O que dragões e folhas tinham em comum? Olhou para cima, viu novas folhas caindo, diferentes entre si; e a imagem profusa dos ramos, da árvore como um todo, deu-lhe a reposta, uma resposta que se conhecida na infância teria impedido uma grande tragédia.

Mas não adiantava chorar pelas chamas apagadas, Seph tinha que conviver com as consequências do passado. Esfregou os cabelos castanhos e a roupa para enxotar as folhas e levantou-se para dar prosseguimento à viagem.

Caminhou por um descampado pontuado por árvores com copas recheadas de folhas, acompanhando com o olhar a estrada de terra que havia achado no final da tarde de ontem. Via muito pouco movimento nela, e por isso até arriscaria usá-la como um andarilho comum. Porém, preferia viajar à margem da estrada, sempre furtivo. Receava encontrar cavaleiros de fogo que se sentiriam tentados em revistá-lo, embora não tivesse qualquer pertence capaz de delatá-lo.

Horas mais tarde, após uma andança equilibrada, com passos rápidos e pausas frescas sob a sombra de árvores, parou no cume de um pequeno morro e avistou, ao longe, a estrada desaparecer dentro de um conjunto de casas. Era a vila que distava a vinte quilômetros ao norte de Brigodânia e onde compraria mais comida e água para seguir viagem direto à Agridain.

Porém, a poucos metros de cruzar a entrada do vilarejo, deteve-se em olhar duas crianças envolvidas numa discussão para saber qual dos brinquedos era o melhor: o soldado de madeira do menino ou a boneca de pano da menina. São brinquedos, de qualquer forma. A mesma essência, contudo… Seph observou o bate-boca infantil por algum tempo, e essa cena lhe suscitou na mente outro contexto onde as pessoas diziam ter algo que era melhor que o algo de outra. Pior ainda, pessoas que diziam ter algo como mais verdadeiro que o algo de outra. Esse algo era um deus, e essa concepção fez Seph rememorar a História aprendida nos livros.

Há muito tempo, antes do princípio da religião draconista, o mundo era dividido em clãs que adoravam seus próprios deuses. Alguns clãs se satisfaziam com os proventos divinos e gozavam do conforto de uma região, porém a maioria mais ambiciosa acreditava que somente um único deus poderia reinar sobre todos. Esse ideal religioso levou hordas a marcharem sob o estandarte de seus respectivos deuses para se enfrentarem. Não há registros de quanto tempo duraram essas guerras, que só findaram com a fatídica decisão de um clã, chamado Drac, que abaixou suas armas e começou a pregar que todos os deuses não eram inimigos, e sim companheiros benevolentes e fraternos que poderiam levar o mundo à prosperidade, e que esses deuses eram todos chamados de dragões. O clã Drac levou alguns anos para unificar todos os outros clãs, pelo diálogo ou pela espada. A guerra foi então substituída por uma paz de base religiosa — o draconismo — e novos ideais foram congelados para não aquecer o desejo belicoso entre os povos.

Seph procurou atuar da mesma maneira que o clã Drac quando resolveu intervir na discussão entre as crianças:

— Nenhum é melhor que o outro. Acontece que um se diverte mais com o boneco de brinquedo, e o outro com a boneca de pano. Mas os dois se divertem na brincadeira, é o que importa. Aliás, vocês podem até brincar juntos.

— Ah, é impossível brincar com mulher quando se trata disso — resmungou o garoto, sem sentir-se intimidado pelo forasteiro. — Ela vai querer brincar de casinha e fazer meu cavaleiro ser um lenhador.

Seph reconheceu que as crianças gostavam de projetar coisas grandiosas, de imaginar o que está fora do alcance delas. Talvez, na figura do soldado, estivesse um futuro almejado por aquela criança, que não se contentava com o lenhador que provavelmente viria a ser devido a sua condição de camponês. Seph lembrou-se, no entanto, que já tivera aquela idade, que já sonhara aventuras com dragões, que já relegara a nobreza adulta que o aguardava. E hoje vive um futuro que nunca imaginou.

— E o que tem demais nisso? — perguntou a outra criança, irritada.

— O que tem é que meu cavaleiro vai sair numa missão para enfrentar o dracocida e salvar o mundo — explicou o menino. — Ele não serve para brincar de casinha com você.

A fama impura do dracocida era conhecida em qualquer parte dos Quatro Reinos, e as fortes campanhas que colocavam sua cabeça a prêmio já se introduzia no imaginário infantil. Seph não sabia por mais quantos anos estaria matando dragões, mas sempre que achava uma criança com o sonho de se tornar um cavaleiro de fogo para matar o dracocida e receber a glória dos deuses, imaginava estar diante de um futuro inimigo.

— Eu tenho uma ideia melhor. — Seph retirou duas moedas de cobre de sua sacola e as ofereceu às crianças. — Que tal esquecerem os brinquedos e comprarem alguma coisa deliciosa na vila?

Seph anteviu nos rostos ansiosos dos pequenos a quantidade de doces que comeriam juntos. O garoto lhe perguntou se realmente podiam pegar as moedas, visto que generosidade de viajantes era algo raro.

— Vão em frente. Uma pra cada — incentivou Seph.

As crianças agradeceram com olhos brilhantes e sorrisos grandes. Enquanto partiam na direção da vila para alguma barraca de doces, Seph ouviu-os declarar o que iriam comprar. Cada um tinha sua própria moeda para fazer o que bem quisesse com ela, assim como os clãs de outrora com seus próprios pedaços de terra e seu dragão.


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Notas finais do capítulo

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