Um mundo além do mundo escrita por Lobo Alado


Capítulo 20
Eloquência inabalável


Notas iniciais do capítulo

Olá! Nem me lembro a última vez que venho postar aqui... Não foi fácil terminar esse. Sabia que demoraria, devido ao que já lhes falei, mas não esperava uma demora tamanha!
Só quero que saibam que eu não sumi, continuo escrevendo rotineiramente...
Aproveitem bem o capítulo.



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E se as pessoas não existissem? Afinal, ele só tinha consciência de sua própria mente, como poderia saber se as outras pessoas eram capazes de pensar ou não passavam de ilusões? Como poderia saber se o mundo inteiro não era apenas uma ilusão de sua mente?...

...E ele seria o único ser existente... A única coisa existente. Isso era mais que provável. Mas ele definitivamente não iria mais pensar sobre isso. Desde quando começara a ser um humano pensante intrigava-se com estas questões, e, embora fossem interessantes, não lhe levariam a nada, nunca levaram.

Lemond coçou o pescoço com vontade de arrancar a pele irritada e com caroços. Quando não se atreveu a coçar mais e a nuca já ardia, olhou para as unhas. Estavam negras e cheias da sujeira de sua pele.

Um ser totalmente dependente da água para não virar uma porcaria imunda... e ainda acham que estar vivo é uma dádiva. Gargalhou com aquele pensamento.

Seu pai o aprisionara numa de suas celas que tanto amava, principalmente quando ocupadas, e, no entanto, logo havia se acostumado com o lugar. Lá não tinha responsabilidades que teria de cumprir apenas por que havia nascido.

Nascer? Será que no momento em que venho ao mundo sou condenado a comportar-me da forma que os outros acharem melhor? Ninguém me perguntou se queria vir ao mundo... Quem foi o idiota estúpido que teve a brilhante idéia de me colocar na porcaria do mundo? Dessa vez gargalhou mais alto.

– Hei, cale a boca. – Advertiu o guarda que lhe vigiava.

Se existia um ser que não tinha qualquer missão no mundo era Lemond. Para que nascera? Para ser filho de Haddes e ser aprisionado numa cela? Virar uma criatura imunda cheia de caroços? Viver, acima de tudo era inútil, e, no entanto, ele ainda gostava de estar vivo... Por quê?! Por mais que pensasse ainda era um escravo dos seus extintos. Claro que algumas coisas na vida eram boas, mas não eram menos inúteis por isso. A verdade era que ele não ligava se fosse morrer naquele momento... não mais...

...Mas é claro que se ele fosse expor todas aquelas idéias, a maioria das pessoas o chamaria de louco... E eu as chamaria de loucas por não pensarem dessa forma.

Mas Lemond não ligava para o que cada idiota vivo pensava.

É uma forma de pensar interessantíssima... Ecoou uma voz, masculina e claramente de um idoso, em sua mente.

Por um momento Lemond achou que poderia ser um próprio pensamento seu, mas era uma voz clara e não enevoada demais para ser apenas isso.

Estou eu ficando louco? Não sou capaz de controlar meus próprios pensamentos... eles vêm sem ordem alguma. Sorriu ao perceber isso, talvez estivesse realmente ficando louco, ou talvez ser louco fosse apenas compreender melhor as coisas.

Está totalmente enganado... Não sou sua mente, não está ficando louco. Dessa vez a voz ecoou tão claramente de Lemond não teve dúvidas de que não era realmente coisa de sua cabeça.

Medo e desespero quase irromperam dentro de si com a possibilidade de estar realmente louco, mas acalmou-se, provando a si mesmo o contrário.

Quem é você? Perguntou Lemond curiosíssimo. Está falando comigo por algum motivo em especial? Viu-se franzindo o cenho.

Sou algo tão inexplicável que não tentarei de forma alguma revelar minha identidade... acredite. No entanto posso lhe ajudar.

Posso lhe ajudar” A frase era estranha demais aos ouvidos de Lemond. Se pode me ajudar, me dará minha harpa e deixará que eu apodreça com a consciência do lixo que são todos os homens. Respondeu, mas... é claro que estava disposto a ouvir como aquele... ser, estava disposto a ajudá-lo.

A voz gargalhou em sua mente... uma gargalhada suave. Você é um ser interessante, Lemond Grorvan. Logo terá sua harpa de volta, mas não é essa a ajuda que lhe darei... Uma pausa seguiu-se com as palavras ressoando suavemente. Posso lhe conceder todas as verdades que busca, mas é claro que isso terá um preço.

Lemond Gargalhou.

Claro que terá um preço, me certificarei disso, afinal, tudo nesse mundo tem um maldito preço inútil.

Você sempre é rebelde? E fala sempre de forma tão filosófica?

Só quando estou animado... Mas, diga-me, quando começará a me fornecer essas verdades de que preciso?

Muito em breve... Mas primeiro tem dívidas a cumprir com seu pai, não é verdade?

Eu não diria dívidas... Diria compra de liberdade.

Que seja... agora, descanse. Amanhã terá de comprar sua liberdade.

Espere! Pediu Lemond antes que o ser pudesse se retirar. Você realmente existe ou é um fruto de minha imaginação?

Como é sua imaginação? E com aquilo a voz sumiu sem voltar mais.

Lemond pouco dormiu. A cela já não era confortável... e o que acabara de acontecer merecia sua atenção. Mas quando o tédio misturou-se com o cansaço sua cabeça desabou para frente o sobressaltando. E, nessa altura, decidiu que era sensato dormir.

Acordou com dor no pescoço, que se acentuava sempre que virava a cabeça para o lado direito. Levantou devagar, apreciando o pouco da luz do archote do lado de fora da sua cela.

Tentou procurar a voz da noite passada em sua consciência, mas não obteve sucesso. O mais certo é que estivesse delirando. Quando sentiu-se idiota o suficiente para parar de procurar a voz de sua cabeça, pôs-se a apenas esperar pelos guardas que o tirariam dali. Logo ver-se-ia livre novamente, e o preço era quase nada. Apenas uma pequena jornada a qual suas pernas se recuperariam facilmente.

Mas retornar ao recanto de Marbrayes seria algo que não desejava mais fazer. O homem tinha lhe dado uma oportunidade de ser realmente o que era, e não a farsa que perambulava pelo castelo de Dras-Leona, mas o homem que havia lhe dado aquela oportunidade não era o mesmo maquinador que sentava na porcaria de um trono falso quando Lemond regressou com Martelo forte.

Foi ai que Lemond percebeu que Marbrayes nunca fora a pessoa compreensível e tolerante que aparentava ser quando ele resolveu ajudá-lo a causar alguns problemas ao Império.

Sempre que Lemond achava que já não era tão tolo quanto um momento antes, acabava fazendo outra tolice... pelo menos era sábio ao saber que ainda faria mais tolices. Quando percebeu o quão havia sido manipulado pelo homem, sentiu vontade de correr para Dras-Leona e ajoelhar-se diante do pai, mas a insanidade logo passou.

Finalmente encontrei alguém que compreende exatamente o que penso... Pensara Lemond quando teve o primeiro contato com Marbrayes, quando ainda achava que ele era um simples músico que partilhava de seus mesmos pensamentos. Só depois o homem revelou sua verdadeira identidade, e pediu humilde e sensatamente a ajuda de Lemond. Como fui tolo... Mas na época os interesses pareciam tão nítidos e justos...

Mas sua liberdade era um preço que valia levar o pai até o lugar. Lemond devia aquilo à Martelo Forte, o homem faria tudo por sua família, uma coisa que Lemond nunca descobriria, não enquanto não tivesse filhos, e ele achava que nunca teria, ou simplesmente era melhor assim. Não conseguia ver muitas coisas em Roran, mas não lhe parecia que fosse uma pessoa tão rude quanto aquele que imaginava e lhe causava medo. Fosse como fosse o homem não estava mais ali para receber sua gratidão, e Lemond duvidava que ele aceitasse. O que importava realmente era o pai que teria de enfrentar, e não demoraria muito.

Para enfatizar seus pensamentos, a grade abriu-se rudemente. E lá estava seu querido e atencioso pai, cercado de seus guardas. Vestia uma camisa de escamas e um manto vermelho sobre os ombros. Sua espada lhe acompanhava, e tinha um arco preso às costas. Entre a barba branca, sua boca era uma linha dura, e seus olhos penetrantes e cerrados. Aquela era a expressão que fazia quando Lemond era criança, sempre que deixava o pai decepcionado sem nem sequer saber o motivo. Na época Lemond encolhia-se de medo ao olhar do pai, mas agora era o prisioneiro de Haddes e não o filho. E aquele olhar não significava nada para si.

– Meu pai. – Fez uma reverência polida. – Estamos prontos? Eu estou prontíssimo. Um tanto sujo, mas isso não importa. E você? Parece-me ótimo. – Levantou-se e foi de encontro ao pai. – Aposto que nada o atravessará... com essa sua armadura... – Estendeu a mão para tocar a camisa de escamas, mas os guardas o impediram.

– Me poupe de sua ironia, vamos logo sair daqui. – O senhor de Dras-Leona tomou uma lança de um guarda e seguiu pelos corredores apoiando-se nela.

Dois guardas agarraram Lemond e o guiaram para fora da sela. O rapaz suspirou ao rude tratamento dos guardas.

– Acham mesmo que eu tenho condições de fugir? – Os guardas não responderam. – E se eu tivesse alguma, deveriam torcer por mim, sou mais jovial que ele – Fez um gesto na direção de Haddes –, menos amargo, mais belo... um pouco sujo, porém mais belo. – Um dos guardas o olhou com incredulidade. Outro tentou esconder um sorriso.

Estar num ambiente aberto novamente foi estranho. O céu estava coberto de nuvens azuis acinzentadas e claras, dissolvidas até o horizonte, e o cheiro no ar traia a presença de chuva da noite anterior. Sentir os pés nus na terra úmida foi gratificante, e um pouco de ar puro no rosto sujo foi ainda mais.

Só os olhos das pessoas fixados nele eram desagradáveis, mas ele já estava esperando por isso. Foi da mesma forma quando chegara a Dras-Leona com os Urgals e Martelo Forte e quando fora levado para a prisão, também.

Enquanto enfrentava o olhar das pessoas, Lemond se deu conta de que estavam indo para o castelo. Não achava que o pai permitiria que voltasse lá, estava mais que decidido de que ele não era mais um filho seu. Isso deveria ter um dedo de sua mãe. O velho instinto de proteger a cria... Sua mãe era uma boa pessoa, mas não muito sensata. A proteção excessiva era um dos motivos de intriga entre ele e ela. Sempre lhe parecera estupidez e perda de tempo brigar com sua mãe, mas não conseguia deixar de fazê-lo.

Os corredores do castelo lhe pareceram estranhos. Só esteve no castelo uma vez depois que voltara da viajem e estava ansioso demais para sentir o sabor do lar, mas agora que estava ali, tudo o que queria era estar em qualquer outro lugar.

Mal percebeu quando as portas de seu quarto surgiram à frente. Haddes abriu a porta dupla e os dois guardas o empurraram para dentro.

– Tome um banho. – Disse o pai. – E prepare-se para ir. Quanto menos tempo ficarmos aqui, melhor. – Fechou as portas deixando Lemond sozinho.

Claro que o rapaz tentou abrir as janelas na esperança de fugir, mas elas estavam seladas, seu quarto, na verdade, estava sem móveis. Se ganharei minha liberdade, não é aqui que Haddes pretende me deixar.

Tudo o que restava no quarto era a banheira com água morna e vestes limpas. Banhou livrando-se da sujeira desconfortável e sentiu-se como outra pessoa ao sair da água. Parecia que o ar era mais fresco em sua pele.

Vestiu as calças negras e pesadas, calçou as botas negras e pôs a túnica-sobretudo vermelha que lhe batia nos joelhos. Tinha braceletes dourados junto às vestes, mas não os pôs, não queria ostentar nenhuma riqueza, não era sua. Na verdade as roupas também não, mas não as podia negar.

Só então percebeu o espelho e a lâmina próximos à banheira. Pegou o espelho, ansioso por ver o que se tornara seu rosto. Os olhos estavam encovados em olheiras escuras. O rosto estava mais magro fazendo parecer que seu queixo era maior, e este estava escondido por uma curta barba negra. Os cabelos estavam muito longos. Era uma pessoa totalmente diferente daquela que fitara há muito tempo, sabe-se lá em qual espelho.

Escolheu deixar a barba, mas cortou os cabelos quase na altura do ombro. Assim está... aceitável? Meu pai merece a farsa dele de volta. Dirigiu-se às portas duplas e hesitou quando ia abri-las, respirou fundo e empurrou as duas portas de carvalho.

Os mesmos dois guardas que o carregaram estavam guardando o aposento e sua mãe esperava a frente, com os olhos maravilhados ao vê-lo.

– Meu filho. – Ela encheu a palavra de orgulho. Como se Lemond não tivesse sido o responsável por tudo aquilo que estava acontecendo ao reino. – Está de volta, meu querido... como sempre foi.

Lemond tinha alguma pena da mãe. Ela não conseguia ver a verdade, nunca conseguira, ele sentia-se tentado a dizê-la, mas não queria magoar a mãe.

– Mãe... é bom revê-la, porém não temos tanto tempo, quando voltar terei todo tempo que quiser para você. Agora, tenho de ir. – De um suave beijo no rosto da mãe.

– Seu pai... seu pai está louco, ele quer tirar você de mim. – Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

– Mãe... – Ele afagou os cabelos castanhos dela. – Meu pai é sensato, eu não sou o melhor dos homens, nem dos filhos... mas não se preocupe, voltarei para você o quanto antes, independente do que quer que Haddes decida. – E com aquilo, deixou a mãe, ignorando os lamentos dela.

No pátio seu pai o esperava, ele e mais duas fileiras de cavaleiros. Mas não havia um cavalo para si... Ele não vai me obrigar a ir andando. Disse para si mesmo.

– Suba, traidor. – Disse um dos cavaleiros, empacotado em uma armadura pesada, estendendo uma mão de ferro para Lemond. – Não terá um cavalo para ter a chance de fugir.

– Se eu tivesse um, não iria tão longe antes de me capturarem. – Lemond agarrou a mão fria de aço. – E, de qualquer forma, depois que mostrar o caminho do recanto de Marbrayes, estarei livre. Por que haveria de fugir?

O cavaleiro o puxou para o dorso do cavalo, mas nada disse.

Ver-se fora das muralhas o fez sentir-se desprotegido e aliviado ao mesmo tempo. Querendo ou não admitir, Dras-Leona era o local mais seguro o qual poderia estar, percebeu isso quando partiu para ajudar Marbrayes. No entanto sentia-se mais do que aliviado fora delas, era como se uma parte de si libertasse-se, uma parte mais verdadeira e segura.

Durante todo o trajeto do dia, Lemond perturbou o cavaleiro que lhe carregava com gracejos e perguntas infinitas. E sempre que lhe era dado um ultimato para que calasse a boca, dava um jeito de falar novamente, o que ele podia fazer? Falar e irritar as pessoas era o que fazia de melhor, pelo menos assim achava.

– Você é persistente. – O cavaleiro teve de reconhecer com um sorriso aborrecido.

Levantaram acampamento para lá do início da noite, quando as águas do Toark alcançaram a entrada da Espinha. A viajem fora longa demais para um dia, mas valera a pena, só mais um único dia daqueles e estariam no maldito recanto de Marbrayes, e então o que o pai faria daí em diante não era problema seu.

Só depois de entrar na espinha é que sua parte do acordo começava, e fazer papel de guia para uma fileira de cavaleiros idiotas não o animava.

– Então, Pequeno Lorde – Disse o Cavaleiro que lhe era responsável torrando a ponta de seu pedaço de carne na fogueira, no centro do acampamento. – Como foi que resolveu tornar-se um traidor? – O homem parecia ter tomado gosto por conversar com Lemond.

– Se fosse um homem inteligente, tentaria ganhar o meu favor ao invés de me dar apelidos zombeteiros. – Disse Lemond abocanhando com prazer a gordura do canto de seu pedaço de carne. – Logo estarei livre, e o Pequeno Lorde pode tornar-se grande... ah sim, e poderoso também. Sou a chave para resolver os problemas do império, tão valioso quanto uma moeda de ouro para um aldeão. – Estava sentido falta de usar a língua que passara os dias na prisão amolando em rancor.

O cavaleiro estreitou os olhos.

– Se tornar-se-á assim tão poderoso, como há eu de conquistar o seu favor?

Lemond estalou a língua, decepcionado com a falta de visão do homem.

– A começar pelo respeito. – Meneou com a cabeça, concordando consigo mesmo. – Ganharia muito com isso. O resto vem de você, pode improvisar pelo caminho. – Sorriu e retirou-se com seu pedaço de carne.

O cavaleiro e os vigias do acampamento eram agora os últimos homens fora de suas tendas. Se o homem tinha ou não levado em consideração o que Lemond disse, ele não sabia, mas era provável que não, a coisas que dizia nunca eram levadas a sério.

A tenta estava absurdamente quente e abafada. As luzes da fogueira o irritavam, e em certo ponto da noite cansou-se de virar-se de um lado para o outro nos panos de dormir. Levantou-se e saiu da tenda cautelosamente.

O cavaleiro ainda estava sentado em frente à fogueira, imóvel e tedioso.

– Pensa em ir a algum lugar? – Perguntou ele saindo de seu tédio pessoal. – Não tente fugir, não quero cortar sua cabeça, embora seu pai possa gostar recebê-la. – O cavaleiro aparentava estar em sua terceira década, com cabelos castanhos, longos e finos, testa enrugada, sobrancelhas grossas e um rosto não muito amigável.

Lemond suspirou.

– Quero apenas um pouco de ar fresco, não ficar uma cabeça menor. Fique tranquilo, não fugirei. – Lemond caminhou para fora das tendas enquanto o cavaleiro o fitava de olhos estreitos.

Este aí não me ajudará... Pensou enquanto entrava por entre as árvores da margem do rio. A tocha que pegara do lado de fora da tenda mais aquecia seu rosto do que iluminava o caminho, mas estava queixando-se demais para quem saíra de uma cela. As árvores eram uma confusão à sua volta, e por um instante perdeu a direção para o rio.

– Senhor... se fizer isto... não sei, está certo do que irá fazer? – Lemond ouviu uma tênue e distante voz, mas decifrou sem problemas as palavras.

Imediatamente apagou a tocha e seguiu cautelosamente na direção da voz.

– Me diga o que mais posso fazer? – Outra pessoa disse. – Algumas coisas têm de ser feitas para alcançar um objetivo maior. – Era a voz de seu pai, percebia claramente, agora. – Mesmo que eu libertasse Lemond, Nasuada não o deixaria perambulando por aí depois de tudo o que fez, ele é um criminoso acima de tudo.

As palavras acabaram com o humor esperançoso de Lemond, e um pouco de raiva o cegou, mas não raiva o suficiente para ir lá e estrangular o pai. Devia imaginar que ele não me libertaria assim tão facilmente.

– Depois de chegarmos ao tal recanto de Marbrayes, capturará Lemond, fui claro? Não hesite... nem quero ouvir seus resmungos sobre traição e quebra de palavra por aí.

– Nunca deixei de fazer o que me é ordenado. – A voz era de Dorâne, o capitão dos soldados de Dras-Leona.

– E não deixará. – Disse o pai.

Então é isso? Aprisionado novamente? Pensou ele enquanto esforçava-se para sair dali antes que fosse descoberto. Passou pelas tendas desnorteado enquanto pensava em algo que poderia fazer, além de deixar-se prender. Não que tivesse muito que fazer, mas devia considerar as possibilidades. Deveria considerar desesperadamente as possibilidades! Se não fizesse nada, no final do outro dia já poderia ser capturado.

Poderia simplesmente dizer ao pai que tinha ouvido toda a conversa com Dorâne e recusar-se a guiá-los até o esconderijo sem que lhe garantissem que permaneceria livre após isso, mas qual era a certeza de que eles lhe soltassem? Afinal, como o pai disse, algumas coisas têm de ser feitas para se alcançar um objetivo maior.

Levantou dos panos de dormir e sentou-se, descartando a possibilidade. Algo tem de funcionar... Poderia fugir quando chegasse ao recanto de Marbrayes, o pai não considerava, ainda, que Lemond soubesse que ele pretendia prendê-lo. A surpresa poderia ser uma ajuda. Se ao menos o cavaleiro que lhe vigiava se dispusesse a ajudá-lo, mas seria dois contra dúzias de cavaleiros.

No desespero, Lemond procurou, novamente, pela voz que conversara consigo na sela, na esperança de receber alguma ajuda. Mesmo que a voz fosse apenas fruto de sua imaginação, poderia chegar a uma conclusão mais rapidamente se conversasse. Mas a voz não surgiu.

Se ao menos um bando de Kulls atrapalhasse os planos dele... Logo que pensou seu coração parou de bater por um instante. É isso! Nem tudo estava perdido... Existia um lugar que ele tinha certeza ser desconhecido ao pai. Conhecera uma aldeia de Kulls quando Marbrayes foi ate lá tentar conquistá-los ao seu favor. Os Kulls expulsaram as tropas do rebelde sem nem ao menos ouvir uma palavra do que ele tinha a dizer.

Se Lemond conseguisse levar o pai até lá... então teria uma chance de fugir. Os cavaleiros estariam preocupados demais com os enormes chifrudos, então teria uma chance de fugir. Bem... se não conseguir fugir, pelo menos posso dizer que tentei, e os cantores poderão cantar sobre o filho rebelde do Senhor de Dras-Leona depois de eu ter apodrecido nas celas. Sorriu. Tinha realmente uma chance, e estava despejando toda sua esperança nela. Não esteja blefando, seu tolo.

Lemond obrigou-se a dormir. O que pretendia fazer podia tornar-se um grande problema e as chances de acabar morto ou capturado eram muito grandes. Não poderia estar desorientado ou mal dormido quando tivesse que escapar dos urgals. Apenas uma pequena certeza sustentava a esperança de Lemond: O pai não fugiria dos urgals, os cavaleiros do pai não fugiria dos urgals, ninguém daquela tenda fugiria dos urgals a não ser ele. Lorde Haddes Grorvan prefere morrer a fugir de seus intitulados piores inimigos.

Preferiria morrer... O pensamento deixou Lemond hesitante e melancólico. O pai poderia morrer se Lemond o levasse para a aldeia urgal, era isso que ele queria?

Suspirou e descarregou a mente. O que quero é liberdade. Se meu pai morrer será um acidente... uma consequência ocasional de minha fuga... Algumas coisas devem ser feitas para se alcançar um objetivo maior.

Lemond não esperou o dia nascer e lhe levantar. Fora da tenda o chão era cinzento e a floresta, profundamente negra. A tênue luz do sol não era nada mais que um feixe purpúreo por entre nuvens escuras. O nascer do dia é tão sombrio quanto o fim do dia. O pensamento aleatório veio em sua mente. Deve ser da mesma forma com as nossas vidas. Ele se lembrava de ter pensado a mesma coisa num crepúsculo há muito, nas muralhas de Dras-Leona, enquanto dedilhava a harpa e uma antiga companheira pousava a cabeça em seu ombro. Ela não fora o suficiente para afastar a melancolia daquele momento. Lemond seguiu para a floresta enquanto o céu clareava aos poucos.

Atravessou a floresta, com os olhos ainda acostumando-se à pouca luz do local, até a margem do rio Toark. Seu reflexo nas águas escuras ainda era uma figura estranha para si, havia aprendido a relacionar o prisioneiro sujo à sua personalidade revolta. Agora nem parecia-se com o prisioneiro sujo nem com o antigo Lemond de antes de tudo.

– Rapaz vaidoso... – Lemond ergueu os olhos e fitou o cavaleiro responsável por si. – Mas não temos tempo para cuidar de aparência, temos que partir. – Segurou o braço de Lemond e o ergueu sem gentileza. – E da próxima vez que se afastar tanto do acampamento corto sua cabeça.

Lemond soltou-se da mão de aço do cavaleiro e o seguiu obedientemente.

– Está falando demais em cortar cabeças, não sei... a sua não me parece mais firme no pescoço do que as outras. – Provocou Lemond.

...Mas logo depois de fechar a boca o cavaleiro rasgou seu lábio inferior com um soco metálico e frio.

– Isso deve tornar um pouco difícil abrir a boca.

O acampamento estava desfeito quando voltaram, os cavaleiros estavam em suas posições. E o pai, mais ansioso do que nunca para continuar viajem.

Montado atrás do cavaleiro revertido de armadura, a viajem era mais desconfortável do que nunca. E tinha de se esforçar para lembrar o caminho que levava à aldeia urgal. Na espinha o caminho era difícil e íngreme. Não posso me desconcentrar nem por um momento. Estava aflito. Não podia deixar transparecer-lhe no rosto o que estava planejando. E quanto mais pensava no que pretendia fazer mais encurralado pelo desespero ficava. Fugir não seria nem um pouco fácil se conseguisse realmente chegar à aldeia. Teria de se preocupar tanto com feras enormes, grotescas, selvagens e de chifres enormes e também com o pai, fugir seria sacrificantemente difícil... E estava montado às costas de um hábil e atento cavaleiro. Não tem mais volta... Pensou ele tentando enganar a si mesmo, convencendo-se de que conseguiria sair livre ou vivo àquele dia.

– Não estamos distantes. – Disse Lemond orientando a fileira à seguir por entre duas arvores que guiavam para uma depressão especialmente profunda do vale.

O sol já não era visível a um bom tempo entre as montanhas, mas só agora podia-se ter a certeza de que estava se pondo. O pouco do céu que via era um limpo e profundo azul escuro.

Lemond seguia na frente de todos os outros cavaleiros, só não de seu pai. Os urgals provavelmente o atacariam primeiro. Ao chegar à aldeia teria de agir mais que rapidamente. Não poderia dar chance ao pai de perceber o que o atacaria, e nem de impedi-lo de fugir.

O momento está cada vez mais próximo... Pensou. Seu coração acelerou descontroladamente quando avistou a escura e simples aldeia urgal, que era um amontoado de casas de madeira em uma clareira com o céu encoberto por árvores grandes e curvadas. Era agora ou nunca mais em sua vida.

Tocou delicadamente o braço do cavaleiro que guiava o cavalo.

– Lembra que falei que poderia improvisar pelo caminho? – Lemond sussurrou. – Talvez seja uma hora propicia para isso... – Falou o mais baixo que pode para que ninguém mais escutasse ou percebesse que trocara palavras com seu vigia. O homem permaneceu imóvel em sua cela. – Querido pai... – Disse agora em voz alta. – Sinto-me orgulhoso em afirmar que cumpri minha parte prometida. Realizo-me ao dizer que chegamos ao recanto de Marbrayes.

O pai fitou primeiro as casas à sua frente e depois Lemond, com desconfiança.

– Se isto é o Recanto de Marbrayes, o tal se esconde em uma vila como a dos...

– Iah! – Lemond não esperou o pai tirar suas conclusões e perceber a armadilha em que Lemond o havia colocado. Roubou o punhal do cinto do cavaleiro e espetou no cavalo, que explodiu para frente com um relinchar de dor.

– Raios! O que está fazendo? – Rugiu o cavaleiro à sua frente. – Oah... Oah! – O cavaleiro tentou parar o pobre cavalo apunhalado, mas já estavam no centro da aldeia Urgal.

– Maldito seja, Lemond! – Haddes gritou atrás de si.

Agora não havia volta. Haddes não teve escolha a não ser ir atrás de Lemond, o capturar novamente, mas os Kulls já haviam percebido a intrusão...

...E seus rostos pediam por sangue.

Um dos Kulls fitou Haddes com olhos ameaçadores, e rugiu uma frase inteira na sua língua gutural. Mais e mais Kulls apareciam, todos com clavas nas mãos. E a atenção de Haddes ou dos outros cavaleiros já não era mais voltada para si, mas isso ainda não o tirava do perigo maior.

– Isto é uma maldita armadilha... Uma ARMADILHA! – Haddes estava enfurecido, enquanto os Kulls corriam na direção de seus cavaleiros.

Tudo virou um caos rapidamente. Os cavaleiros de Dras-Leona recusavam-se a fugir, e Haddes menos ainda. A determinação estava evidente em seu rosto.

Não foi uma cena agradável quando a onda de Kulls atingiu os cavaleiros. Os números de Dras-Leona não eram poucos, mas a grandeza e brutalidade daqueles seres cinzentos eram chocantemente evidentes.

– Maldição! O que está fazendo? Quer morrer? – Perguntou Lemond ao cavaleiro. – Não vamos sobreviver a isto temos que fugir... Rápido!

– Maldito seja! Por que colocou-nos nesta situação? Nenhum de nós sobreviverá! – O cavaleiro segurou-o pelos ombros e o empurrou da cela.

Lemond caiu como um boneco frágil e ficou observando o cavaleiro fugir por entre as árvores. Isso não está acontecendo... Pensou ele tentando rastejar para fora daquele caos infernal. Era um milagre ter todos aqueles segundos ainda de vida. Sabia que não sobreviveria àquilo. Logo teria o crânio esmagado por pisoteadas daqueles monstruosos gigantes, ou por uma imensa clava ou troncos de árvores. Maldição! Aquilo já era esperado, tinha plena consciência dos riscos antes, mas agora parecia demais para si, e o fato de ainda estar vivo era ainda mais desesperador. Não vou conseguir sair vivo... não vou.

Podia ouvir os gritos dos cavaleiros e as clavas afundando armaduras. Um dos Kulls voltou o olhar para Lemond. O coração do rapaz já disparado ameaçou sair pela boca, e seu pescoço estava quente.

Quando o Kull estava a poucos centímetros de distancia e Lemond já considerava-se um homem morto, uma flecha atingiu o pescoço da enorme fera, e o corpo caiu por cima de si.

– Inferno! ­– Praguejou. – O quão perto estive da morte?

O Kull foi retirado se cima de seu corpo e Dorâne surgiu à sua vista.

– Pelo menos alguém vivo... – Ele resmungou enquanto segurava o braço de Lemond e o arrastava dali, abatendo qualquer Kull que aproximava-se o suficiente.

– O que quis dizer com isso? – Perguntou Lemond. – Haddes... Onde está meu pai?

– Temos que sair daqui... Então coopere e corra!

Os dois conseguiram milagrosamente sair da aldeia para a floresta. Correram por entre as arvores até os pulmões não permitirem mais um passo.

– Meu pai! Você o viu? – Gritou Lemond com esforço depois de arfar infinitamente. – Responda-me!

– Vi uma clava o atingir... – Respondeu Dorâne com uma flecha no arco, apontada para o peito de Lemond. – Nada é certo, não vi o que aconteceu com ele. Mas sei algo que ele me falou. Ordenou-me que não deixasse que matassem você, e nem permitir que você fuja. – Cerrou os olhos.

– Vá para o inferno, Dorâne. – Explodiu Lemond. – O reino está quebrando e você julga isso culpa minha. Os Cavaleiros não chegam, ovos são roubados, e tudo está na mão da Rainha, e você teimosamente aponta uma flecha pra mim com tantos Kulls por perto. Qual é, maldito inferno, o seu problema?!

Dorâne abaixou um pouco a flecha e olhou desconfiado para Lemond. Dorâne era uma década mais velho que Lemond apenas. Costumava brincar com ele quando Lemond era uma criança. Espelhava-se totalmente nele, mas, agora, aquela figura amigável havia sumido.

– Ovos, você diz? – Perguntou ele. – Ovos de Dragão?

Lemond sorriu.

– Sei de muito do que está acontecendo no Império. E, raios! ...Eu estou disposto a resolver muitos dos problemas que causei.

O rosto de Dorâne tornou-se furioso.

– Se está disposto a resolver tudo, por que nos levou para uma armadilha?

– Não seja estúpido, Dorâne... Eu sei que meu pai pretendia me prender depois de achar o recanto de Marbrayes e sei também que você ajudaria.

Aquilo pareceu abalar o capitão.

– E levar todos nós à morte foi a solução que encontrou?

Lemond não hesitou.

– Exatamente... Agora, me responda, me levará de volta à Dras-Leona para podermos resolver toda essa bagunça ou não?

O capitão recuperou a compostura.

– Levarei você de volta, que escolha tenho? Mas, Lemond?

– Sim?

– Sua mãe saberá o que aconteceu aqui.


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Notas finais do capítulo

E então? espero que a demora tenha valido.
Este capítulo foi feito com a finalidade evidente de mostrar o outro lado da moeda, mostrar como Lemond se sente e preenchê-lo com o que não ficou explicito de sua personalidade. (Tem algo bem oculto neste capítulo, também)
Vocês têm algo a dizer sobre este capítulo? Verdadeiramente? Deixem aí nos comentários suas verdades sobre o que leram.
Até, e o próximo capítulo não tem previsão... só tenham certeza de que ele virá, pois ele virá.
22/03/15



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