As Crônicas das Lágrimas escrita por H M Stark, Daniel Grimoni


Capítulo 6
S01E06 - Intuições Soturnas


Notas iniciais do capítulo

Espero que goste, caro amigo apreciador da boa e velha arte de escrever - e ler, afinal, quem foi que disse que ler não é arte? Capítulo escrito por H. M. STARK & Daniel Grimoni.

Sinopse: Perdida na escuridão insuportável do Inferno, Shara se vê obrigada a lutar ao extremo para sobreviver. E Edwin revela a Elena segredos obscuros, há muito queimados no fogo da vergonha. Enquanto isso, Adam Thieve, gravemente ferido, é carregado por Bruma, e apenas os deuses sabem o seu destino.



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Seus passos eram como o vento silencioso da primavera, sem ruído algum, a avançar pelos túneis assombrosos do Inferno. Os fios de prata dançavam em meio a escuridão, querendo saltar, fugir dali. O que prometia à frente, com toda a certeza que se podia juntar, era perdição. Não havia comida naquele lugar esquecido pelos deuses. Não havia água. Não havia vida. Nenhum tipo de felicidade reside onde as sombras fazem morada.

Somente os deuses tinham o conhecimento sobre o fim daquele lugar nefasto; poderia levar dias, semanas, até meses para que Shara encontrasse uma saída que não fosse próxima à Sede. Ela já estava esfomeada e com uma sede excruciante devido ao tempo em que passou na prisão. O Inferno estava guardando o que para Shara era motivo de maior temor: a conversão ao instinto natural de um humano.

Apesar de ser uma selvagem de nascença, ela passara boa parte de sua vida com os Homens de Castelo, vivendo no Forte do Tigre quase como uma filha de Antony Thieve. De forma que pôde conhecer os dois lados. Apesar disso, ela nunca titubeou quanto a qual lado escolher. Nunca. Nem mesmo a fagulha de um pensamento infiel. Seu coração, sua alma, seu corpo pertencia aos Lordes.

No entanto, ela também compreendia que os selvagens não mais sabiam pelo que lutavam. Tal conhecimento se perdeu entre os ventos contrários do tempo. Shaw foi o último que, além dela, sabia e tentava disseminar o motivo da rebeldia dos Sem Castelo; o ser humano devia obedecer aos seus instintos naturais, ele precisava retornar ao ventre da floresta e viver entre os animais, entre os pinheiros e sob a terra. Caçando e sobrevivendo, dia após dia. Não se escondendo em castelos ou armaduras. Tampouco em suas mentes ditas civilizadas. Mesmo o homem natural sendo um dos mais perigosos monstros que os deuses conceberam, a natureza precisava de predadores, era a ordem das coisas; predadores para as presas, num ciclo paradoxal – finito, porém, infinito.

Um rugido gutural assassinou o silêncio, e despertou Shara de seus devaneios. Ela apertou o passo, a despeito de as pernas latejarem e das dores de cabeça causadas pela escuridão interminável.

Súbito, três corredores se abriram adiante; um para direita, um para esquerda e outro seguia reto.

Um plano lhe ocorreu; a selvagem arrancou do corpo os trapos que a cobriam dos seios à cintura e largou na soleira do caminho à direita. Ela sabia que os montadores não cairiam nessa. No entanto, por mais que os tigres fossem inteligentes, eles nunca contestariam seus instintos; seguiriam o odor de Shara nos farrapos e, mesmo que se dessem conta depois, a selvagem já teria ganhado uns bons segundos de diferença.

A Lorde seguiu pelo túnel esquerdo, arfando, aos tropeços. Não conseguia mais manter o ritmo; principalmente quando o corredor afunilou. O ar fugiu de seus pulmões, e a própria escuridão se tornou nebulosa. De supetão, o chão escavado na rocha se inclinou, projetando as pernas da selvagem para o nada. Shara despencou por horas, ou pelo menos assim pareceu. No entanto, quando a mulher se ergueu, apoiando-se na parede fria, viu que ali não havia nada mais que uma rampa, e que caíra por nada mais que alguns segundos. O declive seguia por meros dois metros, até dar numa vasta caverna. Um lago negro, quieto como uma sentinela das trevas, repousava em seu leito, no coração da gruta.

O antro era de uma beleza soturna, brindado por Shara com uma admiração sedenta, pois ali, no cerne do espelho d’água, jazia um feixe de luz, nascido do negrume do céu cavernoso; alguma fenda aberta pelos Homens de Castelo em suas caças aos animais ou selvagens – não que discernissem uns dos outros.

Ela avançou na direção do lago e da luz, como um eremita arrependido que encontra uma grande cidade. Seus pés, feridos e tomados por bolhas, mergulharam no lago com avidez. A água estava gelada a ponto de abafar as ardências nos ferimentos.

Shara suspirou de alívio, encarando o topo da caverna. Segui-se que ela caiu de joelhos, se rendendo aos encantos da noite submersa.

Só um mergulho..., pensou, enquanto mordia o punho do facão e arrancava os trapos sórdidos que lhe cobriam o sexo e as belas pernas; o sangue, antes impregnado, escorria, morrendo no lago. A selvagem lançou-se às profundezas, nadando graciosamente, qual uma sereia que há muito não via água.

Foi quando um som abafado venceu a película obscura da lagoa. Um grunhido atinado, similar a um trovão longínquo.

Shara emergiu cautelosamente, os cabelos prateados a grudarem em seu rosto. Ela afastou alguns fios que obstruíam sua visão e seus olhos rosados foram alvo de uma ira possante. Ali se desenhava um tigre, branco como a mais límpida neve, montado por um guerreiro feroz, de cenho enrugado e dentes cerrados.

A besta e o homem estavam sozinhos, o que levou a selvagem a pensar que eles perderam-se uns dos outros pelos túneis; o que era deliciosamente oportuno.

Não havia nada que Shara pudesse fazer que não fosse lutar. O montador atiçou o felino, ignorando o fato de a mulher estar no lago; ora, gatos não gostavam de água.

A Lorde empunhou seu facão, e com ambas as pernas se lançou para trás, deslizando pelas águas negras, como um cadáver navegando rumo ao nada. Porém, o tigre saltou da margem rochosa, surpreendendo Shara ao ignorar a água frígida.

O guerreiro ergueu seu martelo dourado, num golpe brutal, ainda no ar. A fera projetou suas patas na direção da mulher, rugindo, com as presas a estampar a cólera em sua face. No entanto, Shara submergiu, de costas, descrevendo um círculo exato, numa manobra digna de uma sereia. Então, ascendendo na direção da besta que mergulhava, cravou sua lâmina bem no olho da criatura. Ela precisou lançar suas pernas para o fundo, a fim de conseguir impulso para arrancar a arma de volta.

O Homem de Castelo foi estúpido o suficiente para não soltar seu pesado martelo; ele lutava para emergir, o que tornou fácil para a Lorde degolá-lo. Por fim, decidiu deixar que o guerreiro repousasse com a sua arma e a sua montaria em seu escuro leito espelhado.

O vento frio da noite era revigorante; acalmava seus nervos e refrescava seu rosto. Assim, Edwin observava os jardins do castelo, sobre uma varanda em seus aposentos - as flores agora pareciam esconder-se da suave luz do luar. Tão perdido em pensamentos, o Rei sequer pressentiu sua filha se aproximando por suas costas a passos silenciosos; a moça tinha um sorriso espirituoso desenhado em seus lábios.

Ela tocou o ombro de seu pai com força, virando-o para trás ligeiramente. O homem assustou-se, como se tivesse sido acordado de um pesadelo, enquanto Elena gargalhava com um ar vitorioso.

Elena... O doce nome que o rei Bayer lhe dera não estava à altura da graciosidade de sua dona. A princesa possuía cabelos maravilhosos, da cor do fogo, que se estendiam como seda até abaixo de sua cintura; costumavam fluir livres de amarras, mas eventualmente suas servas teciam uma grossa trança com seus fios. Nestes momentos, ela parecia uma deusa; ou, ainda, uma sereia das antigas lendas dos marinheiros, aquelas que os atraíam para o fundo do mar apenas com sua beleza. Seus olhos eram cor de mel, e sua pele rosada aparentava brilhar quando a luz do sol a tocava.

– Nunca mais faça isso - Edwin repreendeu, ainda afoito, apoiando uma de suas mãos no peito. Já não era mais tão jovem.

Elena sorriu, esticando seu novo vestido com as mãos e dançando em volta de seu pai. Era um tecido da cor do trigo, do sol e do ouro; realçava sutilmente o seu formoso e ainda intocado corpo.

No entanto, o rosto do homem continuava impassível, de um ar soturno.

– O que o incomoda, meu rei? - Elena perguntou, preocupada. Já se acalmara e estava de pé, junto a seu pai, sem danças ou brincadeiras; a princesa conseguia sentir o humor do monarca.

Edwin cerrou os punhos com força; suas veias se tencionaram e seus ossos rangeram. Elena percebeu, e nada mais disse. Ele voltou-se ao jardim novamente, enquanto ela sutilmente se afastava, temerosa.

– Eu... Eu não consigo... Eu não entendo... - Edwin murmurou. Sua voz estava tensa e repleta de emoções; seu timbre falhava como se segurasse lágrimas.

Elena permaneceu em silêncio, parcamente iluminada pela luz bruxuleante de um candelabro. Achou melhor não interromper.

– Sua mãe saberia o que dizer, sempre soube - disse, aos sussurros. - Nunca mais me senti realmente tranquilo depois... Depois... - respirou fundo. - Depois do que aconteceu.

Elena aproximou-se do rei, comovida; seu medo da raiva de Edwin mostrou-se menor que sua compaixão, e assim fez menção de tocar o ombro do homem outra vez, de leve. Não se lembrava de sua mãe. A rainha morreu dando a luz a Elena; como Edwin preferia não falar sobre sua amada, a princesa pouco sabia sobre o assunto.

– MALDIÇÃO! - Edwin rosnou.

Elena recuou, assustada, enquanto o homem irrompia no aposento. - Ah, só pode ser isso - riu, sarcástico; logo começou a esbravejar, cuspindo as palavras entre os dentes. - Uma maldição, um... Uma vingança do destino, alguma... Força maior por trás disso tudo. Os deuses bem sabem que merecemos!

Elena o fitava, assustada, enquanto o seguia para dentro, incerta. "A besta", pensou.

– Hah! DEUSES! - disse com escárnio. O rei apoiou suas duas mãos em cima de uma escrivaninha de madeira. Respirou por um breve momento, em silêncio. - Os reinos conhecem a paz há muitos anos. – Ele não falava com ninguém em especial - Homem nenhum sente falta dos tempos de guerra, e, no entanto, parecem-me tão mais simples; terríveis, sim, mas simples. Lançavam-se exércitos em batalha; homens corajosos, lutando por seu rei. - Parou, como se refletisse. - O reino que derramasse mais sangue vencia. Não sei bem o que se podia conseguir, além de glória– resmungou -, mas era assim.

– O senhor nunca entrou em guerra, meu pai - apontou Elena.

– Não. Ao invés disso, falhei com meu reino - Edwin respondeu, abaixando a cabeça, agora se dirigindo à moça.

– Você está errad... -

– O que você sabe sobre certo e errado?! - o rei rosnou, interrompendo Elena. Em sua cólera, arremessou uma jarra de vinho contra a parede. A jovem assustou-se, sufocando um grito com as mãos, enquanto o piso e a tapeçaria absorviam o líquido. - Você não sabe, Elena! Não sabe os deveres de um rei, apenas os imagina; não sabe a pressão que sofro. – O homem cerrou os punhos. - Esses malditos aristocratas - abutres, em sua grande maioria -, que esquecem como precisam de um rei! - Edwin gritava, enfurecido. - A paz lhes sobe à cabeça, os lunáticos; pensam que só tenho privilégios em minha posição. Alguns - tenho certeza – espreitam, às sombras de Tormenta, apenas aguardando um fraquejo meu para que possam tomar o trono que será seu por direito, assim como sua vida!

Elena o fitava, atônita. Deixou-se cair em uma poltrona, com as mãos apoiadas nas coxas, tomada por uma desilusão súbita.

– Esse nome que carregamos, Elena... – O monarca pesou as palavras à seguir. - É amaldiçoado - Edwin murmurou por fim. Seu olhar mirava o céu sobre o oceano. Parecia distante, vasto. - Rei Edwin Bayer... Há alguns dias, reuni-me com Atani Lenora. Vi um homem - um necromante - apodrecer diante de meus olhos antes que meus guardas pudessem sequer reagir. Não sei o que o matou; nem mesmo Atani sabe. - O rei já falava com mais calma, mas ainda parecia tenso. Caminhou até a varanda, novamente, e apoiou-se no parapeito. - Imagino que você já tenha escutado sobre as tripulações que desapareceram no mar - Edwin olhou para Elena, que assentiu. - Um de seus navios atracou em nossa costa; na praia. Essas malditas águas... Dizem que os nevoeiros que envolvem os navios são mais escuros e densos, diferentes da névoa natural que paira sobre as ondas - Edwin refletiu. - Meu pai costumava dizer que os Bayers são maiores que o mar, e eu o admirava por isso. Hoje, envergonho-me de carregar esse nome – disse, abaixando a cabeça.

– Chega! - Elena gritou, reprimindo-o. Edwin ergueu o olhar para sua filha, surpreso. – Você não pode... Não pode! É o nome de nossa família! Você ensinou-me por toda a vida o quão grandioso era ser um Bayer! Não pode falar assim!

– Você não entend... – Edwin tentou dizer.

– Eu... Eu exijo que você me conte o que está havendo. O que aconteceu nessas águas, pai? - ela apontou na direção da janela. - Por que seu passado te atormenta tanto?

Sei que não está assim por causa de mamãe, Elena pensou; mas não ousou dizer. Edwin, no entanto, parecia ter cedido. Deixou escapar um longo suspiro, como se o que estava prestes a fazer fosse contra seu melhor julgamento.

– Está no passado de todos nós, Elena. Alguns simplesmente escolheram esquecer - disse, soturno. Fechou os olhos à brisa noturna que suavemente embaralhava os fios claros de seu cabelo. - Aconteceu muito antes de você nascer. Já leu sobre Eddard Bayer? - Edwin indagou, claramente com a intenção de levá-la a algum pensamento.

– Sim. O rei apoiou Kedhraz em sua guerra contra a terra de Aislin, há algumas centenas de anos. O que isso... -

– Ele queimou todos eles - Edwin a interrompeu. - Os refugiados do massacre - não uma guerra, Elena, um massacre - vieram a nós, a Tormenta, buscando auxílio. Não encontraram misericórdia; apenas as chamas. - Edwin ponderou sobre suas palavras por um momento. - O rei preferiu não provocar Kedhraz - disse, com firmeza. - É um reino forte e belo, e tive a fortuna de visitá-lo certa vez. Tem um povo disciplinado e cauteloso. Como Arcádia, místico e primordial. Às vezes, em devaneios, anseio por seus campos, suas florestas, seus riachos... Estão tão longes disso tudo; parecem tão misteriosos, tão... puros.

Elena o observava. Sua voz morrera na garganta. Edwin despertou de seu súbito devaneio.

– Essa foi a primeira das Noites Sem Luar de Arcádia; apesar de só chamarmos sua irmã por este nome - Edwin acrescentou o detalhe após uma breve pausa. Olhou para Elena. - Lembro-me da segunda vez. Lembro-me de gritos distantes carregados pela brisa - ela própria, ressentida, amarga pelas vozes. - Lembro-me de uma intensa luz acima das ondas e abaixo do firmamento. A fumaça dos navios incinerados no mar ascendeu às nuvens; densa, negra, fétida. Envolveu a lua e as estrelas como um manto; todos os homens de Arcádia passaram a noite a fitar o céu. Era como um presságio enevoado pairando sobre nossas cabeças - ou, ainda, uma maldição. Muito tempo se passou. O sol não incendiou o céu com seu brilho, e não vimos a lua avultar, pálida, pela borda do mundo, mais duas vezes. Então a bruma se dissipou - deu de ombros. - Forço-me a acreditar que não por completo. Isso nunca irá nos deixar.

– A... A segunda vez? - a princesa gaguejou.

– Veja bem: Aislin buscou auxílio de nosso reino mais uma vez, há não muito tempo atrás - se pensarmos na idade das prosas sobre nossa terra e nossos reis. Vieram a Arcádia quando meu pai ainda era rei e eu era sequer um garoto, mais jovem que você, Elena - Edwin hesitava. - Não havia guerra desta vez. Chamamos aquilo de "Dádiva do Inferno", quando os nomes mostraram-se escassos e as explicações inexistentes. Uma doença terrível, minha filha; pior do que qualquer febre ou praga que assola os fracos mortais. Homens morriam em seus leitos à noite. Seus corpos, decompostos pela manhã; cobertos por chagas e feridas, a pele escurecida e, em alguns casos, expondo músculos e ossos. Pareciam vazios, como se a vida lhes tivesse sido sugada em seus sonhos.

Elena imaginava a cena, horrorizada. Já tremia antes; agora, principiara a chorar, baixinho. Edwin demorou a perceber, mas logo se aproximou dela e se sentou ao seu lado.

A princesa sentia uma estranha sensação de compaixão sombria desde que as lágrimas lhe escorriam a face; como se uma presença os observasse, um vulto nas sombras. Julgou ser sua imaginação, ainda que com um calafrio a incomodar-lhe.

O rei apoiou a cabeça em suas mãos envelhecidas.

– Foi então que Lain Bayer, seu avô, comandou o que viria a ser a última das duas Noites. Atani Lenora, o Mestre em meu conselho, estava lá também; ele era como é agora, um homem firme e misterioso. Já emprestava seus pensamentos calculistas e surreais a meu pai; ele sempre fora mais influenciado pelo mago. Mais uma vez, uma frota de Aislin veio a nossos mares; mais uma vez, eles insistiram em sua resolução, ignorando nossa recusa de abrigar as pragas vivas, os doentes - iriam derrubar toda a Arcádia com sua dádiva se os trouxéssemos para cá. Eu os entendo. O que mais poderiam fazer? "Ah, grande rei Lain, entendo que o senhor queira condenar todos nós a vagar pelo mar até que sejamos engolidos por suas ondas." - Edwin interpretou, de forma sarcástica. Fixou seu olhar nos olhos úmidos de Elena, e então para suas próprias mãos. - Mais uma vez os queimamos.

Suas patas reviravam suavemente a grama macia, resvalando em raízes retorcidas acima do solo. Sua respiração, ofegante e quente, elaborava-se em uma névoa diante de seus olhos dourados. Bruma caminhava; exaurida, mas perseverante. Carregava um fardo importante em suas costas, jogado lá como se já não possuísse mais vida, cambaleante a cada salto da ágil tigresa. Ela sabia, no entanto, que seu amo não estava morto. Sentia a chama da vida dentro de Adam, tão forte era a sua ligação; tanto quanto sentia seu peito dilatar-se a cada respiração entrecortada, tanto quanto ouvia seus curtos gemidos de dor a cada tentativa de apressar o passo.

O Thieve carregava muitos ferimentos, e sangrava há um tempo; o corte na costela cuspia vermelho constantemente. Não fosse por Bruma, teria sucumbido nas mãos de Ptaro, talvez uma tomada de fôlego após seu último sussurro consciente. Sua tigresa observara o duelo, atenta, à espreita; Adam nunca permitiria que ela intervisse em um combate pessoal, mas não teve dizer. A besta descorada lançou-se quase de imediato em direção a Ptaro após a queda dele. Saltou, pousando suavemente a uma curta distância do homem - mas fora do alcance de seu machado. Primeiro ergueu-se, sorrateira, examinando seu alvo, o intimidando. Logo atacou, e então pouco restou do selvagem nas profundezas da fortaleza de pedra. Ela se esgueirou por baixo de Adam, de modo a carregá-lo no lombo, e avançou de volta pelo caminho de onde vieram em sua investida.

Presságio de chuva. Bruma ergueu seus olhos ao céu e viu nuvens cinzentas e densas vindo em sua direção, carregadas por ventos frios. Gotas de água aterrissavam em seu rosto e estranhos pássaros voavam pelas árvores, procurando abrigo da tempestade que viria. A tigresa sabia que tinha de fazer o mesmo, mas a Floresta dos Lamentos não era conhecida por seus portos seguros. Sombria, inflexível era sua terra; tanto quanto seus bosques, suas cavernas, seus rios.

Assim era, também, a besta que perseguia a tigresa. Ela não pôde ver mais do que vultos de relance, mas não era necessário nada além. Como a presença de vida em Adam, Bruma sentia também a presença soturna do tigre a persegui-los; logo se apressava, a despeito de mancar por seus ferimentos. Suas pernas latejavam a cada rápido passo, tanto lanhadas por sua breve luta com o selvagem, quanto doloridas pelos espinhos que recobriam as raízes da floresta.

Lentamente, o Thieve começara a recobrar seus sentidos. Respirava com mais força e remexia-se sutilmente sobre a pelugem de Bruma, agarrando-a firme perto de sua nuca.

– Olivia... não, meu amor... fazer isso... - murmurou, sua voz rouca e entrecortada. Delirava; meio imerso em sonho, meio acordado, olhava lentamente em volta. Fios cacheados empapavam seu rosto, misturados ao sangue. Acariciava a tigresa quando seus olhos entreabertos se fixaram em uma construção um pouco adiante.

Bruma havia vislumbrado a torre de pedra antes de Adam e já trotava em sua direção. Seguia uma trilha de relva amassada que levava em direção a uma pequena e escondida clareira, onde o seu possível abrigo fora erguido. Não passava de um amontoado de rochas com uma porta; mas isso seria seu escudo contra a noite, a chuva... e a besta.

– Forte do Tigre... - sussurrou, aliviado e cruelmente enganado. Levantou a cabeça, um pouco mais consciente, olhando entre as orelhas longas e pontudas da tigresa. - Vamos, Bruma. Vamos para casa.

O animal continuou seu passo, instigado pelo Thieve. Não mais corria, e por isso mancava a cada passo, andando aos solavancos e com os músculos a fraquejar. Adam não notou a situação de sua companheira, mas a acalmava com afagos e carícias. Ambos se sentiam aliviados.

Então Bruma estacou. Ainda com uma das patas erguidas no ar, pronta para o próximo avanço, parou de súbito e ali ficou, como se paralisada. Adam a observava; suas orelhas moviam-se, sondando seus flancos. Ela franzia o nariz, claramente incomodada por algo que o homem não compreendia; eventualmente farejava o ar ou mostrava seus dentes, rosnando baixinho. Sua respiração era densa e todos os seus sentidos foram aguçados, diante àquela estranha presença que sentia emanar da torre; o mundo parecia mais lento e claro. Podia ouvir cada bater de asas dos pássaros distantes, cada tênue gota de chuva pousando nos galhos. Sua própria essência se revirava dentro de si, expressando-se apenas no fôlego escasso e hesitante. Ali jazia algo sombrio. Bruma, assim como seus irmãos e irmãs, os tigres albinos do norte, era imbuída com uma estranha sensibilidade mística. Viam, ouviam, sentiam aquilo que tigres comuns não conseguiam. Sua harmonia com a natureza contrastava com os eventos profanos que entendia terem ocorrido naquela torre, e indicava, latejando como suas feridas, que algo ainda espreitava ali.

A tigresa disparou como uma flecha pela trilha, correndo entre as árvores – em direção a qualquer lugar que não aquele. Adam protestava, fraco, mas ela não voltaria; seu instinto havia dominado e cada músculo rijo do seu corpo a carregava, como se por vontade própria, para longe das sombras que reivindicavam a clareira. A chuva agora caía incessante e seu senhor tremia em suas costas. O mundo estava coberto por breu, salvo por golpes de relâmpago aqui e ali, eventualmente iluminando as nuvens escuras.

E em meio a um desses clarões de luz, Bruma o viu.

Percebeu o perigo apenas a tempo suficiente para que virasse seu corpo, escorregando na terra macia e escapando do furioso golpe - mas não por completo. A besta a derrubou em seu salto; suas mandíbulas estalando no ar com tanta força que alguns dentes se quebraram, espalhando seus fragmentos pela grama.

O tigre decidira atacar.

Adam havia sido arremessado do lombo de Bruma quando ela girou sobre suas patas, e agora gemia no chão, estirado.

As duas bestas agarravam-se e rolavam pelo chão, esquivando-se de cruéis mordidas e trocando poderosos golpes com as patas. Eventualmente se apartaram, e Adam pôde ver com mais clareza. Ambos os animais estavam feridos; mancavam e rosnavam e saltavam e ameaçavam atacar a qualquer momento. A adrenalina começava a tomar sua mente e toda a confusão começava a se esclarecer; até que se tornou uma visão que poucos homens jamais presenciaram - e com tal nitidez.

Chuva, relâmpagos, escuridão, rugidos que se confundiam com trovões. Hálitos enevoados envolviam as cabeças dos felinos de forma misteriosa e o vento frio açoitava-lhes os longos pelos.

Lentamente, Bruma se aproximou de seu amo; e consigo trouxe o demônio enevoado. Eles cercavam Adam, transpondo raízes e esgueirando-se entre árvores, estudando-se e rosnando, enquanto andavam em círculos em volta do homem; o Thieve sabia que sua vida dependia de Bruma agora. A tigresa estava às suas costas, erguendo-se imponente sobre seu corpo caído. E ela queria, acima de tudo, protegê-lo.

O outro, no entanto, olhava para seu jantar com uma intensidade surreal, quase palpável. Adam fitou os olhos da fera e ali viu olhos castanhos estranhamente familiares a envolver sua alma ferida. O tigre selvagem aproximou-se, furtivo. Sua face era marcada por cicatrizes e cortes de vários tamanhos; mas Adam concentrou toda a sua atenção em um pequeno detalhe, ignorando até mesmo os dentes que rosnavam à sua frente. Seus olhos se encontraram com os do tigre e seu coração pareceu parar de bater.

Reconhecia aquela visão enevoada, característica dos tigres selvagens, mas essa se mostrava diferente. Carregava toda a culpa, saudade, sofrimento e indignação de um que perdera seu amo e, assim, enlouquecera.

Estamos perto do Forte do Tigre, Edwin pensou. Era o animal de Eldreth.

Como não reconheceria aquele olhar que tanto fitou das muralhas do castelo, por tanto tempo? Aquele mesmo que penetrara em sua alma pouco antes do macabro encontro com Antony. O felino, entretanto, não parecia reconhecê-lo - ou, talvez, sua selvageria reinasse. Adam então entendeu o motivo para a hesitação de Bruma em atacar; ela, sim, reconhecia seu oponente, do qual já fora um dia tão próxima. O Thieve sacou um punhal de ferro, com mãos trêmulas; grunhiu enquanto tentava levantar-se, sem sucesso. Vendo sua fraqueza, a besta selvagem se preparou para investir, agachando-se sobre as patas traseiras e abrindo as mandíbulas.

Bruma foi mais rápida. Saltou sobre Adam assim que viu os dentes à mostra do tigre, movida por puro instinto - um impulso de proteção. Golpeava o ar à frente de seu inimigo, para afastá-lo; rugia tão alto quanto os trovões e uma ferocidade inigualável era estampada em sua face, de pele franzida e músculos tensos. Golpeava os troncos das árvores, que explodiam em farpas de madeira. Saltava em direção à besta sempre que esta recuava uns passos a mais; estalava seus dentes com força na carne do tigre e arranhava seu couro com suas afiadas unhas.

O animal não pôde manter-se à altura do demônio em Bruma. Sua vida não valia um tanto de carne humana estirada na lama; assim, bateu em retirada, ganindo como um filhote assustado e desaparecendo em meio às trevas.

Bruma voltou-se para Adam, ainda possuída pela fúria, e o próprio homem estremeceu ao ver seus olhos queimando. No entanto, sentiu-se mais seguro do que nunca. Arrastou-se até sua leal companheira e subiu em seu dorso.

Bruma o carregou novamente, ainda mais ferida; mas agora, ao menos, não pressentia o perigo. Guiada por sua memória e pela tímida energia restante em Adam - que eventualmente se expressava em um tapa no flanco ou uma ordem rouca -, fez seu caminho em direção ao Forte do Tigre.

Adam se lembrou dos olhos da fera...

“Não... Eram de Eldreth! Eu sei que eram!”, pensou em agonia. Eram parecidos até em seus olhos enevoados e aflitos.

Uma lágrima caiu na lama, seguida do som de asas murmurando na chuva. Sentiu-se como se um olhar gélido deitara sobre suas costas, carregado de compaixão.

A chuva apertou; tanto na Floresta dos Lamentos quanto em sua alma.


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Notas finais do capítulo

A melhor visão é a intuição. - Thomas Edison.

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