As Crônicas das Lágrimas escrita por H M Stark, Daniel Grimoni


Capítulo 5
S01E05 - A Última Noite Selvagem


Notas iniciais do capítulo

Espero que goste, caro amigo apreciador da boa e velha arte de escrever - e ler, afinal, quem foi que disse que ler não é arte? Capítulo escrito por H. M. Stark & Daniel Grimoni.

Sinopse: Lembranças roubadas tomam a mente de Atani e os selvagens precisam dar tudo de si para defender a sua vida contra um inimigo implacável, enquanto um demônio espreita nas profundezas do Inferno.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/506516/chapter/5

Atani Lenora desceu o grande declive que levava-o da extremidade de Tormenta - onde estava o castelo de seu rei, no topo da colina coberta por relva e ladeada de água - até o interior da cidade, capital do reino de Arcádia.

O castelo e seus arredores eram magníficos. Enquanto as paredes de seus cômodos e salões eram principalmente de madeira, ou da surreal rocha polida de mil cores, seu exterior mostrava-se rústico e imponente, sobre a colina à beira-mar. O grande castelo fora erguido em tempos imemoriais, sobre uma língua de terra que partia de um pequeno morro escarpado na costa; esta se alargava na extremidade, na região do castelo. Tormenta, em sua maioria, estendia-se pelo monte e além, por campos mais ao sul.

No castelo residia uma forja, cujos arredores estavam sempre abarrotados de mercantes a vender seus produtos; lá prosperava uma taverna, com as canções de homens a entoar por suas janelas com a afinação da cerveja. Homens exercitavam os corcéis de guerra em uma praça - a fim de treinar os animais nestes tempos, de certo modo, pacíficos. No entanto, a verdadeira beleza do castelo não se espelhava em seu exterior de pedra rústica ou nos ornamentados brasões que pendiam na empena de seus portões ou acima da coroa de seu rei. Residia nas ondas que se quebravam em suas praias nuas de fortificações e no som místico que entoavam à luz do luar. Um som hipnotizante carregado pelo vento e imbuído com o canto das aves noturnas.

E do topo da colina, Atani observava o movimento dos barcos que circundavam o castelo e das pessoas que caminhavam pelas extensas terras e jardins em torno da construção principal da península. Estudava aquele lugar tão familiar a ele e que, no entanto, carregava em suas rochas o suor de homens já esquecidos, até mesmo pelas lendas. Era um lugar velho, em terras ancestrais. O Mestre tornou o olhar às nuvens cinzentas que pairavam, densas, acima do mar; ele girava uma moeda entre os dedos longos de uma mão, e logo percebeu que uma fina camada de geada acumulara-se no metal. Era uma manhã fria de outono, celebrada pelos gritos estridentes das aves marítimas.

O porto de Tormenta era enorme. Centenas de navios mercantes entravam e saíam de seu cais todos os dias, abarrotados de produtos de todos os cantos do mundo. Eram patrulhados e vigiados por todo um pequeno exército de navios de guerra - cada um carregado de soldados armados; estes eram embarcações esguias e velozes, dracares arcadianos construídos de modo que fossem fortes, mas não suportassem muito peso - diferente dos cargueiros. Eram os verdadeiros defensores de Tormenta e de seu rei, Edwin Bayer. Muralha nenhuma fora jamais necessária ao redor do castelo. A cidade em si, contudo, era rodeada por altas muralhas - ou, ao menos, a velha cidade, já que Tormenta expandia-se constantemente, para fora destas. Agora, elas passaram a proteger apenas a população importante da cidade, sua alta cúpula - homens ricos, nobres, a guarda real, entre outros; como o próprio Mestre do Arcano.

Ele andava a passos rápidos pela cidade velha. Sentia o cheiro de corrupção e vadiagem por todos os lados, apesar das aparências enganosas e limpas d'aquela parte de Tormenta. Ali, as pessoas eram belas, mas mesquinhas; ou, ao menos, assim era há alguns anos. Lembrou-se do que Edwin dissera: "... enquanto nossa própria fundação encontra-se em ruínas". Aquilo o cheirava estranho, enquanto pensava naquela frase, e seu nariz nunca o enganara antes. Caminhava com sua postura rígida e imponente, ignorando os homens que o olhavam e indagavam por que o Mestre ia em direção ao exterior das muralhas - sem escolta. Ao aproximar-se dos portões, Atani sinalizou a um dos vigias que gostaria de passar.

– Sozinho, meu senhor?

Atani cravou seus olhos faiscantes no guarda, que lentamente se afastou, cambaleante, e ordenou que abrissem o portão. O Mestre passava sob o enorme arco de pedra da muralha - que se estendia em um longo meio arco, dividindo Tormenta em suas duas cidades. Enquanto o atravessava, ele avistou, de relance, alguns homens a atender dois dos guardas que relataram o navio abandonado atracando na praia, alguns dias atrás. Ambos estavam pálidos e tossiam muito; uma mulher tendia a eles, dando-lhes remédios de ervas e espalhando água gelada por seu pescoço e pulsos. Um dos homens parecia resistir - era alto e forte -, apesar de tossir, delirar, tremer e suar. Parecia destinado a sobreviver. O outro, entretanto, principiara a sangrar - pela boca, inicialmente, e então pelos olhos. Suas veias se tornavam, lentamente, negras; enquanto sua pele continuava a empalidecer e a vida se esvaía de seu corpo. Eventualmente, seria apenas uma carcaça vazia.

Desviou os olhos e continuou seu caminho, ainda mais perseverante após a visão. Seu objetivo era descobrir o que causara aquilo ao bruxo e agora aos guardas; que relação perversa o escuro teria com tudo que vinha acontecendo há muito tempo. Sua viagem pelos casebres insalubres foi apressada. Não temia ser agredido por algum bando de ladrões - era mais provável que estes temessem um ataque por parte do Mestre do Arcano, cuja reputação o precedia muito além das muralhas. Não, algo diferente invocava a repulsa que sentia. Os olhares repletos de ódio que direcionavam a seu rosto arrogante, mas repleto de um profundo pesar - algo que trazia consigo há eras. Desprezava aquele lugar pobre e imundo, assim como tudo que aquilo lhe lembrava. Portanto, apressou-se em direção à praia distante onde o navio atracara, de modo a retornar o mais breve possível para seus livros - com sorte, aqueles que ele esperava já repousariam na soleira de sua porta.

Assim, Atani Lenora chegou a uma praia de areia branca no sol da tarde; logo antes de um promontório rochoso, a enorme embarcação de madeira repousava. Tratava-se de um navio militar de maior porte, aptos a percorrerem longas distâncias além dos limites do litoral; diferente daqueles que patrulhavam o porto de Tormenta. Atani se aproximou, ainda sentindo o cheiro característico de problemas. Um tênue vapor ascendia da madeira escurecida da proa do navio, ainda iluminado pelo último brilho do sol poente. Atani se aproximou e encostou sua mão direita no casco do navio.

Morte. Gritos. Névoa. Em um breve momento - talvez segundos - no qual o mago tocava no navio amaldiçoado, sua mente fora inundada por imagens e sensações dos antigos tripulantes da embarcação. Em suas visões, Atani viu homens desesperados, doentes e aflitos. Seu capitão gritava ordens enquanto suava copiosamente em uma noite gelada, à mercê dos ventos. Uma densa neblina cercou por diversas vezes o navio, ofuscando qualquer visão e enlouquecendo ainda mais os homens. Alguns adoeceram e morreram em seus leitos, sua carne apodrecida e seus olhos vazios. Outros, mais espertos, jogaram-se ao mar; preferiam arriscar sua sorte com os tubarões. Uns apenas desapareceram à passagem da névoa, deixando pouco em seu rastro. Eventualmente, como se carregado por baixo das ondas por alguma força mística, o navio encontrou seu caminho ao toque sensível de Atani.

Ele sentou no chão da praia, a poucos metros do navio, e principiou a murmurar algum tipo de reza ou encantamento. Acariciava um dos anéis que usava na mão esquerda - uma joia prateada, na qual cravara um selo de proteção. Ela estava quente e parecia vibrar em seu dedo, emitindo um sutil zumbido. Atani olhava para o selo, pensativo. O que despertara o encantamento? Rolava sua estranha moeda entre os dedos após ter desviado os olhos do selo; fitava o mar e a maré que subia. Quando enchesse, homens poderiam vir e empurrar o barco atolado de volta à água, de modo a conduzi-lo a outro local. Talvez ninguém viesse. Talvez as ondas o levassem, então, a terras distantes; para nunca mais ser visto por homem algum em Arcádia.

Por um momento, considerou esperar o anoitecer e o que quer que a noite carregasse em seus braços desta vez; contudo, seu nariz disse o contrário. Novamente, Atani o escutou, decidindo que sairia nos últimos momentos de luz do sol. Memórias evocadas por alguma força maligna que procurava enlouquecê-lo, talvez. Não... a corrupção não saiu daqui ainda, Atani pensou, tentando lembrar de tudo que já ouvira falar sobre as magias mais odiosas, as maldições mais perversas do Arcano; das sombras que se escondiam nas bordas do mundo, esperando seu momento de despertar– e sorriu.

O frio atormentava-lhe a mente. Suas tatuagens pareciam congelar a cada fria lufada. O cheiro da morte infestou suas narinas, enquanto sua respiração transparecia no ar; em matizes prateadas, pairando como nuvens no céu à noite.

Ptaro estufou as bochechas, assoprando, numa tentativa de expulsar o frio de dentro de si.

Dois dos seus homens chegaram correndo, afobados com a notícia aterradora.

– Pelos deuses! - um exclamou, com os olhos arregalados envoltos por traços negros de alguma tatuagem; era confusa demais para se notar naquela penumbra.

O segundo acendeu um archote a mando de Ptaro e arfou, nauseado e assustado pela visão.

– Ele não está morto - o Lorde traidor proclamou.

O guerreiro que carregava o archote o aproximou do cadáver, como se procurasse algum sinal de vida que Ptaro pudesse ter visto.

– Levem-no daqui - ordenou; uma pontada de desprezo escapou em sua voz grave - Pode ser que ainda o salvem.

Não sei o que seria pior, pensou, enquanto estudava o ambiente. Seus olhos discerniram a umidez da terra batida em um canto da cela - ali, passos confusos gravados em pegadas como letras no papel. Estava escrito: houve luta aqui. E sangue... muito sangue. Kramer havia se arrastado até a soleira, ainda empalado com uma adaga - esta que Ptaro empunhava, sórdida de sangue e fedor como estava. O guerreiro fitou a lâmina de prata, antes reluzente, agora escurecida pelos excrementos do selvagem.

Ptaro sabia também que Shara não se afastara muito dali. Ninguém conseguiria avançar por muito tempo nas sombras da prisão do Inferno; não sem companhia ou a luz de tochas.

– Eu quero meia dúzia de noturnos na busca! - ordenou, em um tom inquestionável - E que só retornem com ela!

Quando o outro tatuado se abaixou para pegar os braços do gigante, Ptaro o puxou pelo colarinho.

– Quero ela viva! - reforçou.

– Sim, senhor.

Ptaro o largou bruscamente. Abriu passagem para a cela, empurrando o tatuado com seus ombros.

Covarde de merda!, amaldiçoou em mente quando enxergou trapos rasgados ali no canto. Sua esperança de ver Shara viva encontrava-se ainda menor; não só agora perambulava inteiramente nua pelos corredores rochosos, como não desejava ser encontrada.

Ptaro retornou ao coração do Inferno, pensando no que poderia fazer. Os Noturnos encontravam-se invalidados naquele momento - seu líder fora humilhado e roubado de sua dignidade. Morreria logo, ou pelo ferimento ou por seus subordinados; que não mais o veriam como antes assim que a notícia se espalhasse - o que era certo de acontecer em breve.

Ou quem sabe o maldito se mate?, pensou Ptaro, otimista.

Shara era o seu maior problema. Ela não sairia dos túneis. Não... ela pegaria um por um, lentamente, até que não sobrasse ninguém. Poucos - ou talvez nenhum entre os selvagens - tinha chances contra ela. Kramer conseguiria, pensou, rindo com escárnio. Talvez Ptaro fosse páreo. Era um guerreiro invejável - suas tatuagens traduziam tal. Era também mais maduro que muitos dos rapazes de sua idade. O guerreiro acreditava que nem mesmo os deuses poderiam prever o que aconteceria até o Tordo Escarlate cantar novamente.

Shara não possuía tatuagem alguma - no entanto, sua destreza era notável. Esta sua peculiaridade remetia a tempos há muito passados; quando menina, fora deixada para trás numa caçada aos selvagens. Mais tarde, seu pai, Shaw, líder dos Lordes, revelou aos seus que ela se passaria como uma criança abandonada e maltratada pelos selvagens; quando, na verdade, ela comunicava aos Lordes todos os movimentos dos Homens de Castelo. Era uma criança amável - e, por isso, tão sutil em sua verdadeira lealdade. Cresceu no Forte do Tigre; lá foi educada e lá aprendeu a lutar - contra a vontade do simpático Amo Antony, sempre atencioso com as crianças. Sua lealdade nunca foi abalada. E, provando tal, um dia Shara investiu contra Antony, em uma investida dos Lordes na calada da noite. Ela certificou-se de que os guardas d'aquele turno se atrasassem - bêbados e seduzidos pela selvagem -, apenas o suficiente para que os muros fossem transpostos por um pequeno grupo de guerreiros.

No entanto, um guerreiro alto e forte, chamado Eldreth - Antony gritara o seu nome naquele dia -, tentou salvar o Amo, duelando com a Lorde por um longo tempo. Um homem chamado Adam acometeu contra as costas de Shara, mas foi repelido por Shaw. Ptaro duelava bravamente com Antony.

Em meio ao caos, um nome foi convocado: Bruma.

Um demônio nascido da névoa derrubou Shaw e arrancou as suas tripas brutalmente, cortando sua carne e ossos com as garras como não passassem de banha de porco - e deliciou-se nelas igualmente.

Como uma última ordem - ainda firme o suficiente para não ser ignorada - Shaw mandou que fugissem. E foi o que fizeram; mas não antes de Shara lanhar a cara de Eldreth enquanto urrava de ira, logo após penetrando o coração do oponente com sua lâmina escarlate. Bruma saltou, mas a mulher de cabelos prateados desviou de sua investida e, girando o corpo habilmente, conseguiu desferir uma poderosa coronhada em Adam, pegando-o desprevenido e nocauteando-o.

Ptaro também escapou. Antony lamentava por Eldreth, ajoelhado no chão do salão.

Nesse mesmo dia, Shara tomou a liderança. Não por ser filha de Shaw, pois não havia heranças entre os selvagens, mas porque era firme, forte e inteligente; além de bela e sensual. O que, de certa forma, apagava o seu lado cruel que Ptaro presenciou antes de ela ser enviada para o Forte. As tatuagens do jovem guerreiro ocultavam um passado nefasto de Shara - passado este que Ptaro escolheu não revelar, pois era orgulhoso e sedento por glória. Acreditava que reergueria os selvagens como uma só seita e retomaria a Floresta dos Lamentos. Seu único obstáculo, por ora, era Shara Cabelos de Prata; e ele se vingaria.

A queda de algo metálico estilhaçou o silêncio que se formara no amplo salão, arrancando Ptaro de suas lembranças. O som viera da despensa. Shara, estremeceu ao pensar. Ela deve estar faminta, matutou, esperançoso.

Foi quando um grito de dor ecoou pelos corredores obscuros do Inferno, seguido por um rugido gutural e seco. Olhos na escuridão, demoníacos. Presas perfurando fundo em carne e o medo estampado em sua face; morte. Uma criatura dos infernos foi engolida pela luz dos archotes do salão principal - arrancava o braço de um desafortunado selvagem. Noturno ou Lorde, pouco importava; foi abraçado pela escuridão avermelhada do fim. Um golpe de vento veio em sua direção, exalando o cheiro pútrido do terror - quando os homens à beira da morte olham fundo em seus olhos, e suas tripas se soltam.

Meia dúzia de montadores de tigres perfurara a película das sombras que separava os corredores do amplo recinto.

– ACORDEM! VAMOS, MALDITOS! ESTAMOS SENDO ATACADOS! - a voz de Ptaro ribombou no Inferno - Dobey! – Ptaro chamou, irado. – Dobey, seu puto! Venha aqui!

O jovem guerreiro bloqueou o martelo de um dos Homens de Castelo enquanto gritava. O selvagem se apresentou, coluna colada com a de Ptaro.

– Senhor!

Senhor, Ptaro repetiu em pensamento, sorrindo levemente; enfim era respeitado como o líder que nascera para ser.

Juntos, defletiram três golpes em sucessão antes que pudessem tentar um ataque - sem sucesso. O machado de Ptaro rasgou o ar vazio quando um tigre recuou, para então a besta investir outra vez, a ira flamejando em seus olhos dourados.

Ao redor, alguns selvagens ainda dormiam, imersos em pesadelos, algo comum naquela parte da Sede; estavam sendo estraçalhados em seus leitos de palha pelos tigres. Gritos esganiçados ecoavam por todo o lugar, sem poder escapar para o mundo acima; as súplicas ricocheteavam nas paredes rochosas, e eram sufocadas aqui e ali pelo som dos duelos. Ptaro não se deixou abalar pelo horror que infestava a Sede; não podia, por mais que as vozes rememorassem tão claramente a sua desgraça nas mãos de Shara, há anos - não devia se entregar ao medo da morte ou ao trauma da dor.

– Traga Derek e Narrah! – bradou enquanto se esquivava de uma investida mortal do felino - Preciso dos seus homens! AGORA!

Seu machado abriu um corte superficial nas patas bestiais daquele ser indomável. Os dois homens estavam cercados por três montadores de tigres.

Até mesmo os bastardos e covardes inimigos veem em mim a liderança, pensou.

Ptaro avançou corajosamente na direção de uma das bestas e investiu, confiante, escapando das patas colossais do animal; apenas para ser golpeado duramente pelo montador. Quando caiu, uma segunda fera avançou, esfomeada.

Com isso, Dobey tinha mais chances de escapar do último demônio e alcançar o corredor – havia oito deles que partiam do salão, dois em cada parede, tão assombrosos e escuros quanto a morte.

Ptaro escapou por um triz das presas da besta, enquanto Dobey saltava para a esquerda e para a direita, desviando-se de seu adversário com grande velocidade.

Ele merece uma tatuagem, Ptaro pensou; e foi interrompido por um vulto dourado arremetendo brutalmente em sua direção. Tudo que pôde fazer foi rolar no chão duro - ainda não tivera a chance de se levantar. O montador brandiu a arma maciça sem hesitar, girando-a acima da cabeça enquanto seu tigre rosnava e Ptaro se erguia. Ele levantou seu machado no momento exato. As lâminas se encontraram, mas o selvagem perdeu a disputa e foi lançado para trás, cambaleando pela força do impacto.

O martelo retornou à ofensiva ao mesmo tempo em que outra maça de ouro acometia-o pelo outro lado. Seria esmagado, não fosse uma flecha – negra como era, só poderia ser dos Noturnos – que atingiu com precisão o braço de um dos montadores. O outro montador sofreu um abalo no golpe, assustado pela flecha que feriu seu companheiro, vinda das sombras; Ptaro pôde rechaçar o golpe, ainda que com grande dificuldade - sua própria lâmina resvalou em sua veste de couro, arranhando-a.

Súbito, um berro ensurdecedor ecoou pelo Inferno.

Dobey, sobressaltou-se Ptaro.

Um olho ensanguentado rolou pela terra, vindo da escuridão de um dos caminhos. O outro foi jogado em seguida, amassado e vertendo um líquido esbranquiçado. Em seguida, a língua, meia dúzia de dedos, um pênis; lançados à terra avermelhada como se nada fossem.

Deuses... - faltaram-lhe expressão até mesmo em seus pensamentos.

A luta havia parado. Todos encaravam a penumbra satânica que pairava no limiar da passagem.

Uma cabeça rolou - a de Dobey. Seus olhos haviam sido arrancados das órbitas e um sorriso sanguinolento abria-se em meio à uma expressão horrorizada - sua boca fora rasgada, assim expondo os dentes. Ele não sorriu durante seu último suspiro. Os fossos pútridos miravam a alma de Ptaro, provocando nele um medo perfurante - o qual sentiu tomar conta de si. Paralisado, o rapaz selvagem quase se rendeu à morte pelo horror, quando distinguiu fios prateados a se agitar com a brisa, em meio à escuridão macabra, sob o arco na rocha. Uma risada delicada - mas carregada de uma satisfação perversa - reverberou pelo salão, antes silencioso como um túmulo.

– YA! – uma ordem soou. Ptaro sentiu as patas colossais de uma criatura golpeá-lo pelas costas. Em seguida, girou o corpo, arfando, aterrorizado; para encontrar-se encarando a face de uma tigresa esfomeada, tão perto de si que sentia o cheiro de carne em seu bafo quente.

O jovem guerreiro reagiu, esmurrando-a em seu focinho e se erguendo rapidamente; cambaleou, mas logo investiu contra Adam, machado em punho.

Gotas de sangue se derramaram sobre a terra. Ptaro recuou e Adam caiu do dorso de Bruma.

À sua volta - e sob seu comando -, todos os selvagens haviam perecido. Não chegavam nem a cinquenta homens, visto que alguns Lordes se encontravam na escuridão dos corredores do Inferno. Certamente correriam, sem rumo, quando os sons da batalha os achassem; até encontrar seu fim. As paredes estavam salpicadas de vermelho e na terra amontoavam-se corpos sem vida, dilacerados, desmembrados ou degolados; não importava - os selvagens estavam todos mortos. Isto é, com exceção de Ptaro e Shara; e o primeiro arfava à frente de Adam, hesitante.

– Tragam-me a cabeça de Shara - ordenou, soberano - Tragam-me a vadia, morta. Esse aqui é meu - disse, empunhando o grande martelo.

Eles virão, ela disse para si, confiante. E quando vierem...

Um gemido retorcido despertou a selvagem.

– Querido gigante - disse, carinhosamente, enquanto acariciava seu rosto estraçalhado, mas ainda cruelmente consciente. - Você ainda tem um papel a desempenhar. Não se acanhe.

Shara abriu um esguio e belo sorriso, digno de uma princesa. Era como uma flor que desabrocha na primavera - apesar de ser outono -, mas a vida não floresce na escuridão; seu belo sorriso camuflava perigosos espinhos.

– Sabe, Kramer, sempre achei curioso o fato das mulheres terem dois lugares para serem fodidas, e os homens apenas um - discorreu, enquanto estudava o seu temido facão. Seus olhos vibraram em tons escarlates, por conta das chamas do archote na parede.

Além, sombras vivas. Aquém, uma luz morta, que rosnava para ela; eram as opções de Shara. Não havia como escapar. Se enfrentasse a noite eterna do Inferno Invernal, morreria de fome - ou algo pior. Se ousasse pisar à luz do salão principal da Sede, seria esquartejada - sendo otimista.

Mas a Lorde sabia o que fazer. Oh, sim... estava certa disso. Shara fitou Kramer, penetrando em sua alma com seu olhar selvagem.

Célere qual uma víbora, a mulher puxou o Noturno pelas longas e grossas pernas, encardidas de sangue e merda. O homem esperneou, implorou e gritou, mas a clemência não residia no coração de Shara Cabelos de Prata.

– Não grite agora! - ela advertiu. - Se não eu rasgo você inteiro, seu merda!

Um som esganiçado nasceu no corredor estreito; Shara alimentava seu facão com algo.

– Não... NÃO! - o gigante implorava, rouco.

Suas cordas vocais haviam sido severamente danificadas - de tanto gritar - quando fora penetrado por Shara na prisão. Seus dentes haviam sido estilhaçados, e a língua, cortada fora.

A selvagem desferiu um golpe com seu facão prateado, arranhando o maxilar do Noturno. Uma fileira de sangue respingou nas paredes.

– Como eu dizia... - a serenidade daquela mulher horrorizava Kramer profundamente; sua alma vibrava ao som de sua voz doce, mas bestial. - O que você acha de fazermos um experimento em você, meu caro gigante? - ela sorriu - Afinal, seu amiguinho aí - apontou para o seu membro desfalecido - Hum... Não serve para nada mesmo.

Sua gargalhada reverberou na noite impenetrável do antro; sua lâmina reluziu às chamas das labaredas dançantes. Kramer se esgoelou em urros inumanos, enquanto Shara, serena e sorridente, abria um rasgo profundo entre as pernas do homem.

O machado de Ptaro faiscou ao encontrar o poderoso martelo reluzente de Adam. Em sangue a terra onde pisavam se banhara, e em morte as almas se afogaram. Os montadores já haviam saído em perseguição, sedentos pela recompensa do Amo, prometida para quem lhe trouxesse Shara: o castelo dos Sances, em uma ilha no extremo norte de Arcádia. Podia ser longe, mas era um dos pontos de comércio mais movimentados do norte. Os Sances talvez fossem covardes, mas eram inteligentes.

O ouro colidiu contra o ferro outra vez. Nem Ptaro nem Adam ousavam desferir dois golpes seguidos, por medo de uma rápida retaliação. Eram por demais cuidadosos e cientes de suas capacidades e limites; como o ferimento no abdômen do Thieve.

No entanto, a vantagem de Ptaro - e qualquer chance de viver - morria nos olhos dourados de Bruma; ela caminhava ao redor dos dois guerreiros, soturna, sem produzir som, porém açoitando o selvagem com a expectativa constante da morte súbita. Mas Ptaro não desistiria. Preferia morrer a se entregar. Seu sangue, antes gelado pelo horror, agora fervia. A glória, afinal, era sua maior ânsia; e ele ainda acreditava na conquista da Floresta dos Lamentos. Se pudesse derrotá-lo e escapar de Bruma...

Seus devaneios foram cortados por um golpe brutal - que teria esmagado seu crânio, não fosse a agilidade extrema do rapaz. Porém, ao rolar para o lado, o demônio de pelagem enevoada desferiu-lhe uma patada devastadora, lançando-o de volta para o combate. O martelo de Adam deu a volta, fazendo a terra vibrar ao errar seu alvo.

Ao deslizar para a direita, Ptaro tinha o flanco do oponente mortalmente vulnerável. Adam, ferido, não se recuperou a tempo da investida. Sem hesitar, o selvagem cortou o ar com o seu machado, abrindo uma fenda vermelha na costela do Thieve. Nesse instante, um grito de agonia trovejou por todo o Inferno negro.

– Deuses... - Adam deixou escapar em um sussurro aterrorizado, enquanto cambaleava; as mãos tampando o ferimento profundo. O sangue descia como cachoeira entre os seus dedos cálidos. Por um momento, sua visão vacilou. E então tombou, ao perceber que os seus companheiros avançavam na direção da armadilha do diabo.

A última coisa que ouviu antes de sucumbir à penumbra de sua consciência foi o rugido de Bruma, sua tigresa, e o brado retorcido de Ptaro.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Soltar um demônio pode ser muito educativo em certas ocasiões. - Deepak Chopra.

Espero que tenha gostado, não deixe de comentar e compartilhar com os seus amigos!

Não se esqueça! A cada duas semanas, aos domingos, 13:00, um capítulo novo! Oremos ao Deus das Estrelas por uma semana maravilhosa!