As Crônicas das Lágrimas escrita por H M Stark, Daniel Grimoni


Capítulo 7
S01E07 - Noite Ardente


Notas iniciais do capítulo

Espero que goste, caro amigo apreciador da boa e velha arte de escrever - e ler, afinal, quem foi que disse que ler não é arte? Capítulo escrito por H. M. STARK & Daniel Grimoni.

Sinopse: Sem saber o que é real e o que é ilusão, Shara vaga na penumbra, com fome e com sede, e apenas os deuses conhecem o seu destino. Adam se vê na beira do abismo que separa a loucura da sanidade, e isso acarretará numa decisão derradeira para a sua vida. Enquanto isso, Atani, imerso em seus grande tomos empoeirados, depara com mistérios obscuros, que podem ser a chave pro que realmente está acontecendo em Arcádia.



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Adiante jazia a esperança de Shara. Não havia deus ali para ter fé. O deus das estrelas fora oculto pela escuridão. O deus da floresta não ousava penetrar no Inferno. E o deus da noite reinava, absoluto, e ajuda não oferecia. Restou à Lorde acreditar em si mesma. Confiou em seus instintos, seguiu o seu olfato e sua audição. Ouvia gotejos viscosos em algum lugar à frente e seguiu o som. O cheiro de uva queimada era sutil para homens comuns, mas não para a selvagem.

Piche, discerniu.

Alguns passos adiante e um arco de pedra convidou Shara a sorrir de felicidade; comemorou sombriamente: iria matar a sua fome e a sua sede de morte.

Ela se lembrou de quando os selvagens conseguiram todo aquele piche. Um saque a Botston, a cidade portuária dos Bottons. Foi um dia sangrento, ela ouvira falar. Ainda estava com os Thieves na época e tudo o ela que sabia era o que Antony deixava escapar após discussões calorosas com o irmão, Adam. Shaw atacou com todos os Lordes, numa batalha sangrenta. Tudo o que ele desejava era invalidar a cidade, privando o Forte dos Tigres de seu abastecimento principal. E no oeste do reino viviam famílias antigas, desde os tempos em que a Companhia dos Nove era apenas alguns clãs da floresta, de forma que uma rixa impedia o comércio entre as duas partes. Era impossível sobreviver apenas com o que a capital enviava, por mais que fosse o porto mais movimentado de Arcádia; dezenas de pequenas cidades e inúmeras aldeias se punham entre os Thieves e os Bayers, logo, não sobrava muita coisa para os Tigres.

Abençoado seja o meu pai, Shara pensou, tristonha. Shaw era inteligente e se não fosse por isso, os Lordes teriam visto seu fim há muito tempo. Do que adiantou?!, esbravejou em mente.

– Nada! – Respondeu com a ira das palavras. – Todo o sacrifício! Toda a luta! – A selvagem se martirizava, finalmente atacada pelo sentimento de ser a última Lorde viva. - As mortes... O sangue... – Shara se via num desespero perigoso. – Tudo pelos Lordes! E eu estraguei tudo! Acabou... Anos incontáveis de histórias... Deuses! – Gritou para o céu não visto, mas imaginado. – Há pior martírio que ser a última dos seus? – E chorou. Explodiu em lágrimas quentes que esvaziavam o seu coração pesado. Sua alma, antes cinzenta como uma nuvem carregada, agora se aclarava, esvaindo o cinza de suas gotas tristes que desciam pelas bochechas. Não importava que fosse ouvida. Precisava daquilo. Que chorasse. Que berrasse alto o suficiente para os tigres vierem lhe ceifar a vida! Que o aperto largasse o seu peito por fim! Que a morte limpasse os seus anseios.

A melancolia deu lugar à ira. Shara cerrou os punhos, lágrimas a banhar os seus seios nus. Ela notou uma presença. Pôde sentir olhos de compaixão deitados sobre si. Ouviu o murmúrio de asas batendo. Ou seriam patas correndo?

A selvagem olhou em volta. Nada viu, exceto os malditos barris que estampavam a face de Ptaro, o vil traidor, aquele que pôs fim aos selvagens, aquele que condenou a alma da última Lorde ao eterno sofrimento. Não havia palavras para descrever a cólera que refulgia nos olhos róseos da mulher.

– TRAIDOR! – Bradou, furiosa, puxando um dos barris com uma força inumana. Lançou-o para o chão, quebrando-o. Repetiu o movimento mais duas vezes, derramando piche por todo o recinto. Empurrou barris, puxou barris, lançou os vazios contra as paredes rochosas, e ainda assim a sua fúria permanecia.

A selvagem estava com as pernas e os braços negros de piche, arfando enquanto pegava uma pequena pedra que jazia ao lado.

Ela ouviu passos no corredor adiante. Patas céleres, furiosas, patas felinas.

– VENHAM! MALDITOS! ESTOU AQUI! – Ela incitou, perdida em seu furor.

Quando o primeiro tigre entrou correndo no antro, ela apertou a pedra contra a palma da mão. O resto veio logo em seguida, com ódio pintado em seus olhos; tanto tigres quanto homens.

– QUEIMEM, BASTARDOS! QUEIMEM COMIGO! IREMOS JUNTOS PARA O INFERNO! – Shara ribombou, riscando sua pedra contra o chão. Uma faísca nasceu e o fogo se alastrou pelo piche como uma serpente indomável investindo contra a sua presa.

Os gritos dos homens se misturaram aos ganidos das feras. Ambos se debatiam, agonizados pelo calor extremo, morrendo aos poucos, sofrendo como nenhum tipo de vida deveria sofrer. O horror se misturou ao prazer nos olhos de Shara Cabelos de Prata e um sorriso deliciado se abriu em seu rosto.

Porém, quando ela se abaixou para pegar seu facão, o sorriso se esvaiu.

Seja por ato dos deuses ou de um demônio cruel, o que ali aconteceu jamais ela esquecerá; seus braços não mais estavam negros, tais como as pernas. Ao redor, o piche se afastava, levando consigo o fogo e a morte desumana que almejava aquele corpo esguio da selvagem.

Desejosa de abandonar o sofrimento insuportável da falha, Shara caminhou na direção das chamas, com o som dos berros esgoelados ao fundo, reverberando por todo o Inferno.

E mais uma vez, seja por ato dos deuses ou de um demônio cruel, as labaredas se afastaram, empurradas pelo piche, que recuava na rocha sem deixar vestígio, fugindo da selvagem.

O que acontecia ali? Porque ela não podia morrer em paz?

Uma lágrima de frustração nasceu em sua bela face.

A Lorde sentiu outra vez aquela presença maligna atrás de si. Um calafrio correu pelo seu corpo. Então ela se virou. Seus olhos rosados se arregalaram diante da situação surreal.

Ela cambaleou para trás, amedrontada. O que era aquilo? Sim, era uma pena que jazia na rocha negra, mas de onde viera? Que medo extremo era aquele que ela sentia? Aquela coisa... Parecia penetrar na alma de Shara. E, uma vez lá, rasgava o tecido espectral, arrancando berros ensurdecedores da mulher amaldiçoada.

Horrorizada, ela cambaleou para trás outra vez e caiu, passando pelo arco do recinto fumegante.

A selvagem viu sair do coração das chamas uma besta colérica, gritando e esperneando, enquanto avançava em sua direção.

A bocarra se abriu sobre o corpo caído de Shara, a despeito do fogo que consumia o tronco do demônio descorado.

No entanto, aquela mesma pena que aterrorizara a selvagem, pousou sobre seus seios, na linha de visão do tigre. E nem mesmo os deuses poderiam descrever tamanho horror que se apresentava sob os olhos da criatura.

A fera recuou enquanto era consumida pelo fogo.

Quando Shara olhou para baixo, à procura da maldita pena, tudo que viu foram as chamas engolindo tigres e homens, num caos horrendo, e a pena sumira na tristonha escuridão.

A chuva era uma constante no outono de Arcádia. Raramente parava, e quando finalmente o fazia, era apenas para respirar aquele vento frio que precede o inverno.

Adam encarava as gotas translúcidas mergulharem nas poças do jardim. Era a única coisa que prendia sua atenção, visto que estava confinado no segundo andar da ala dos curandeiros. Não estava autorizado nem mesmo a se levantar da cama, embora fosse o Amo do Forte agora. Seus ferimentos ainda lhe atormentavam à noite, a despeito das inquestionáveis habilidades de cura de Alna.

Maldito seja o destino, pensou, amargo. Que inferno é esse em que vivo, onde o sangue da batalha é o consolo das lágrimas da vida?

Ele apoiou as duas mãos no parapeito rochoso. Estava úmido e gelado; uma rocha morta.

A vida é quente... Quente como o inferno. Mas a morte não... Ela é fria como o inverno, matutava, lutando para afastar as angústias do coração. Exercitar a mente é a melhor maneira de manter os sentimentos do coração afastados, lembrou-se da citação de seu pai.

Adam fechou os olhos, se entregando à escuridão da culpa.

Uma semana se passou e nenhum dos seus montadores de tigres retornou. Tudo pelo imaturo desejo de vingança de um Amo perdido. As mortes em suas costas eram como as extremidades de aço de um chicote. A Grande Caçada fora sua ideia. Centenas morreram! Seus companheiros mais fiéis foram levados pela onda colérica de vingança que salgava o seu coração. Por mais que aquele demônio de cabelos prateados tivesse a sua parcela de culpa, nada justificava o erro de Adam. Como ele pôde ver vitória ali? Por mais que vencesse, perderia metade dos seus. Num ambiente como aquele, era otimismo pensar que seria apenas uma carnificina. E ainda assim ele insistiu. Estuprou um garoto inocente, selvagem, sim, mas inocente! Pelos deuses... Estuprou a sua ex-cunhada!

Os gritos dela ainda retumbavam em sua mente. O que dera nele? Porque fizera aquilo? Não era ele... Não era. Não podia ser.

No que você se transformou, Adam?

Abriu os olhos negros e ali se viu, à esquerda, de pé, diante de um grande espelho. Ele estava um trapo. Usava um manto cinzento, manchado de vermelho em alguns pontos. Seus cabelos longos eram um emaranhado de palha suja e embaraçada. Mas o que ele realmente notou foi a expressão; aqueles olhos, eles não refletiam Adam, era outra pessoa ali, encarando-o de modo sombrio.

Para seu súbito terror, o Adam do espelho tirou uma mecha de cachos da frente dos olhos, sem qualquer movimento por parte do Adam original.

O homem cambaleou e caiu de costas na cama, gemendo de dor. Ainda assim, continuou a recuar, arrastando as cobertas e largando a sua dignidade. Por fim, caiu do outro lado do leito e ficou a choramingar no canto do quarto como uma criança assustada.

Alna entrou no quarto, a confusão tomou conta dos traços delicados de sua feição. Ela caminhou até o Amo, preocupada. Nada disse. Palavras não mais existiam. Adam era um homem árduo, moldado pelos ventos frios do norte de Arcádia. Era impensável vê-lo naquele estado.

Ela tentou afagar o ombro do homem, mas ele agarrou os seus pulsos, com uma expressão aterrorizada. Ele fungava enquanto tentava falar.

– Ali... Ali! Não! Não olhe... Venha! Se esconda! Ele ainda está ali! – Murmurava, descontrolado.

– Adam...

Ele pôs o dedo na boca, sinalizando para que ela se calasse.

– Não fale! Ele pode ouvir! Venha! Se esconda! – Dizia, puxando ela pra baixo.

– Me solta!

Mas o Amo a levou para o chão à força.

– Estamos a salvo aqui... Sim, sim, estamos.

– ADAM! ME SOLTA!

– Estamos a salvo, estamos...

Alna conseguiu se desvencilhar por um segundo e desferiu um murro no rosto de Adam.

Ela levantou e se afastou, tropeçando na cama e caindo outra vez. O Amo fez menção de ir atrás dela, mas a mulher recuou até a parede da entrada, assustada.

– Saia daí! Ele pode te ver! – Ele avisava, desesperado. Suas mãos tremiam enquanto lágrimas nasciam em seus olhos. – Não! Não! Não vou deixar!

Súbito, ele se levantou e atravessou a cama desajeitadamente. Alna tremeu de medo, temendo um ataque daquele... Monstro. No entanto, Adam dirigiu sua ira ao espelho, acertando-o com a pequena mesa de cabeceira e estilhaçando-o.

– Ele morreu! ELE MORREU! – Gritou, comemorando. – Eu o matei!

– Quem, Adam? – Alna perguntou, lentamente, enquanto se levantava, ainda temerosa.

Não houve resposta. O Amo caiu em prantos, ajoelhado, com os punhos fechados contra o chão.

O nojo estampava-se na expressão da mulher. Ela lançou uma carta para Adam.

– Rei Edwin Bayer convoca o senhor para a capital urgentemente – proferiu friamente antes de se virar para sair.

– Não! Espera! Alna! – Adam gritou, tremendo no chão.

Provavelmente sabendo que iria se arrepender, a mulher voltou.

– O qu...

A visão adiante apagou qualquer palavra que pudesse ser dita. O que ela viu não tinha explicação, não havia como compreender. Ali, acocorado no parapeito da janela estava algo triste, desgostoso da vida, desgraçado. Adam viu a alegria se esvair de Alna no mesmo instante. Ela caiu de joelhos e lágrimas brotaram. Mas quando o Amo se virou para ver o que a aterrorizava tanto, tudo que viu foi a chuva caindo sem parar.

Para proteger-se completamente do mal do espírito sombrio - ou sombra - que será invocado, o necromante deve vestir-se com as roupas do cadáver e beber de seu sangue em um cálice coberto por folhas trituradas de artemísia; isto não funciona com homens já enterrados, assassinados injustamente ou suicidas, cujas almas são muito mais perversas e...

Os livros encontravam-se cobertos por passagens semelhantes. Atani já os lia, talvez, desde antes que o sol desaparecesse no horizonte - e em breve iria raiar, nascendo um novo dia. O interesse do mago conhecia apenas os limites físicos, dos quais não se podia emancipar: seu corpo ordenava-o que comesse, bebesse e dormisse. Nada mais que isso.

Os pesados tomos e longos pergaminhos repousavam à frente de seus aposentos - pois guarda nenhum jamais entraria ali - quando acordou aquele dia; também encontrara baús e caixas dispersos pelo chão. Alguns eram adornados por runas entalhadas na madeira; continham qualquer tipo de artefato por demais macabro para que os homens o carregassem nas mãos.

Muitos arcadianos eram fortemente supersticiosos - o que tornou, por sua vez, incrivelmente difícil a tarefa de recuperar todos os pertences do bruxo. Guardas entravam e saíam, muitos de mãos vazias e a murmurar rezas a poderes e deuses ocultos. Mesmo os mais céticos tremiam inconscientemente diante o horror daqueles aposentos secretos. Atani questionou-os sobre o que viram - aqueles, claro, que não se encontravam em choque, trauma ou a breve insanidade de homens que viram o que não imaginariam jamais; e recebeu sua resposta em sussurros, apenas. Ainda revirava aquela imagem em sua mente - cada vez mais rica em sua reflexão - vendo claramente seus fins ocultos; pois o Mestre aprendia, lentamente, sobre os meios.

Peles esfoladas - de animais como de homens - pendiam de ganchos nas paredes rochosas, algumas ainda ensanguentadas e cobertas por moscas. Dois cadáveres sujos de terra dormiam sob um sono inquieto em um canto do covil; tudo indicava que haviam sido removidos de seus túmulos, um ato sacrílego e extremamente ofensivo. Não encontrariam mais descanso, sob a vigília de espíritos ou coveiros. Ervas peculiares pareciam dispersas aleatoriamente pela câmara, e nenhum homem soube ou ousou dizer se algum encanto provinha delas, apesar do forte aroma que impregnavam no ambiente. Crânios, ossos ainda cobertos por tiras de músculo estirado, membros sexuais decepados, uma cabeça coberta com pó de lápide e extorquida de seus olhos e língua, pássaros separados de suas asas e um corvo grasnando, aflito - como se ele próprio, fadado emissário da morte, temesse aquelas artes obscuras; um breve relance de olhos distinguiria tudo isso.

Atani Lenora não sentiu tanto a repulsa natural por este covil perverso - o homem encontrava-se curiosamente intrigado, acima de tudo. Que tipo de magias infames, pensou, à cena lhe sendo descrita, sobreviveriam apenas em um ambiente tão profano, semelhante em maldição e aparência aos domínios mais escuros narrados por homens? Homens como Kull Rhala, deste livro de rituais que tinha em mãos; abençoados com o dom de visão de mundos etéreos ou, ao menos, de relacionar-se com aqueles que já os viram ou neles vivem.

Os homens tendem a crer apenas na proteção de escudos, deuses e qualquer pedaço de osso ou madeira com a runa certa entalhada em si. Atani acreditava no Arcano como o sentia: algo fluído, mais uma essência que a força de encantamentos. E, sendo assim, não agiria apenas quando conjurado por um feiticeiro! Lembrava-se de seu professor; o homem que o encontrara a vagar por ruínas antigas, sozinho em terras ancestrais e sedento por explicações, por conhecimento, por poder - não era ganancioso, mas ainda assim desejava-o. Palla explicara sobre sua visão do Arcano: existe como o tempo; podemos, de certas formas, dobrá-lo à nossa vontade, mas nunca controlá-lo por completo; nunca ousar acreditar que sua existência depende ou se limita a nós, e não o contrário.

Atani era guiado por essa crença; e para ele, como para poucos, a verdadeira fé - em um deus como na lâmina de uma espada ou na língua que se contorce na boca e cospe palavras - era um desses instrumentos imbuídos com o favor do Arcano; e coisas incríveis estavam fadadas a acontecer quando a fé era posta à prova. O Mestre sentia-se seguro como nenhum homem ao tocar aqueles macabros artefatos, quando apertava com força o anel rúnico e sentia seu calor; às vezes pensava se seu antigo mestre realmente encantara aquele selo de proteção ou apenas o fizera crer nisso. Nunca demorava-se muito nesses pensamentos...

... é, talvez, a criatura mais desgostosa e amaldiçoada a que nos é permitido conhecer. Atani tomara outro livro em mãos - um largo tomo, suas páginas envelhecidas e pesadas como lascas de madeira. Esta, em especial, parecia costurada às outras separadamente; também parecia menos antiga que a maioria. Atani achou aquilo muito curioso: que poderia ter mudado? As inscrições na capa esverdeada - em uma tradução rude e enferrujada feita pelo Mestre daqueles símbolos esquecidos - diziam: "Bestiário - criaturas físicas e interplanares". O nome do autor encontrava-se parcialmente apagado, suas letras desgastadas pelo tempo; ou rasuradas por algum objeto. Continuou a leitura. Procurava algo.

...caminha, como poucos seres existentes, entre o plano etéreo e o nosso próprio, atuando de sua maneira misteriosa em ambos. Alguns sacerdotes de Kedhraz recusavam-se em sequer considerar sua existência, então conduzi uma pesquisa mais à fundo em lendas esquecidas pelos homens; uma subestimada fonte de conhecimento (relatos destas lendas sobre ghouls mais à frente). Alguns se referiram a ele como um Guardião, mas "anjo" foi o termo mais usado - um anjo das lágrimas, não de luz ou justiça como os de Kedhraz. Alimenta-se delas, de sua essência, assim como vela por aqueles que as derramam, sempre a observar, curioso, os que choram. O xamã que me contou isto disse-me que conseguia vê-lo e sua aparência era horripilante, até mesmo a ele; os espíritos lhe contaram que já fora, em tempos ancestrais, um anjo forte e belo. O homem crê, sem dúvidas, que a escuridão que assola nosso mundo é a responsável pela aparência soturna e decrépita que agora porta.

Uma ilustração à carvão acompanhava o intrigante texto. Mostrava uma criatura de forma semelhante a um homem, mas dotada de longas asas cobertas de penas. Em mãos longas e esqueléticas - não tanto humanas quanto à maneira das garras de aves de rapina - seguravam um instrumento com força; uma flauta de osso, ao que parecia. Seu crânio era deformado e esticado; no lugar dos olhos, o ilustrador rabiscou dois grandes círculos escuros e vazios. Até mesmo um homem sem medo se arrepiaria.

Atani Lenora refletia naquilo - finalmente, algo que não rituais necromânticos ou os lântares residentes de cavernas e mares profundos ou qualquer outro ser monstruoso. Seus olhos repousavam sobre a palavra guardião. De quê?, se indagava. Folheou, obsessivo, algumas poucas páginas, mas nada encontrou sobre.

– MALDITO! - gritou indignado, então, levantando-se; derrubou alguns livros da escrivaninha ao fazê-lo, levantando consigo uma nuvem de poeira. Andava em círculos e esbravejava - Por que não me dizem o que desejo saber?! Por que escrevem pela metade e deixam-me incompleto, assim como esses livros profanos e ilusórios?! - resmungava, tomando a cadeira em mãos e arremessando-a longe no aposento; por pouco não sobrepôs as escadas em formato de meia-lua que rodeavam o salão. Algum tipo de estátua caiu com um estrondo, à distância.

Voltou à escrivaninha, tossindo pela fumaça que o sufocava e vociferando em gestos. Apoiou suas duas mãos na mesa, tentando se acalmar; então levou-as à cabeça, massageando suas têmporas. O que o infeliz guarda?, matutava, tentando raciocinar.

Abriu os olhos e sua visão focou, de relance, em um dos livros que derrubara. Como no outro, a página em que este se abrira ao cair era estampada por um desenho à carvão, muito similar ao primeiro; e uma única frase, rabiscada às pressas nas páginas profanas.

Sua esperança reside na morte do paraíso.


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Notas finais do capítulo

A vantagem de brincar com o fogo é que se aprende a não se queimar. - Oscar Wilde.

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