As Crônicas das Lágrimas escrita por H M Stark, Daniel Grimoni


Capítulo 3
S01E03 - A Colina de Sombras


Notas iniciais do capítulo

Espero que goste, caro amigo apreciador da boa e velha arte de escrever - e ler, afinal, quem foi que disse que ler não é arte? Capítulo escrito por H. M. Stark.

Sinopse: Adam Thieve é o comandante da guarda de elite do Forte do Tigre, um lugar onde homens ferozes montam tigres bestiais e o vento conversa com a rocha escurecida. Após Adam pedir permissão ao Amo Antony Thieve para atacar os malditos selvagens, ele é convocado à presença do senhor do Forte. Mal sabe ele que um destino macabro aguarda o Thieve.



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Os altos pinheiros escarlates emanavam uma energia tépida e destoante, como o som de uma harpa desafinada. Doces lágrimas recaíam sobre os longos cabelos cacheados de Adam. Seus duros olhos cinzentos divisavam um grande tigre albino de olhos foscos e alma feroz, que contrastava com a vermelhidão da Floresta dos Lamentos. As sobrancelhas franzidas do guerreiro eram sólidas e tão ruivas quanto os seus fios anelados. O queixo áspero e reto ocultava-se por um fino manto encarnado, aparado constantemente, sempre rente às bochechas marcadas por pequenos focos de uma rugosidade insólita. Era um homem musculoso, porém magro e ágil. Uma cicatriz tão cinzenta quanto o céu cingia-lhe a face direita na diagonal, penetrando em seu matagal de sangue; uma lança de inverno em meio às chamas rubras do verão.

Adam Thieve era um homem abrasivo, difícil de lidar, acirrado até o fim. Muitos diziam que a frequente perda de amigos nas Caçadas o moldara assim; outros diziam que sua personalidade fora forjada pelos Deuses do Vento gélido como era ao norte de Arcádia. Ele gostava de sentir as lágrimas dos deuses lavarem-lhe a pele; por isso ali permanecia, sem roupa, não fosse a calça de pele de urso pardo, todos os dias, a contemplar a aurora e olhar bem nos rebentos daquele tigre descorado; íris tempestuosas, confusas e melancólicas. Um animal, antes debelado e montado, agora feral e indomável.

Assim acontecia em Forte do Tigre: quando o montador de um tigre perecia, seja em combate, seja por doença, sua montaria estava fadada a vagar entre os altos pinheiros lamuriosos, nos arredores do castelo, como se fantasmas de seus antigos domadores. Tornavam-se criaturas ferozes e bons defensores da casa dos Thieves - contra qualquer um que cruzasse seu caminho, independente do nome que carregasse.

Poucos eram os montadores de tigres atualmente; seis precisamente formavam a Guarda de Elite de Forte do Tigre e eram considerados os guerreiros mais ferozes de Arcádia. Escassos eram os viajantes que visitavam o castelo, por horror às bestas albinas. Sendo assim, os Thieves eram aprovisionados por suas próprias plantações ao norte e pela caça. Havia lendas que contavam sobre tempos árduos, quando os antigos Thieves precisaram caçar selvagens e comê-los em fogueiras, banhados pela luz da maldita lua que insistia em fitá-los acusadoramente com seu olhar argênteo; mas não passavam mais de lendas.

Memórias do Tempo do Pó. Nada muito relevante para Adam. Só o que importava era caçar. Caçá-los! Os selvagens. Aqueles que ceifaram a vida de Eldreth, o Forte, durante a Grande Caçada. A sede de vingança cegava Adam, qual a chuva que embaçava seus olhos invernais.

Sua concentração foi quebrada por um guarda que corria afobado pelas ameias, vindo em sua direção.

– Amo Antony... - ele arfava, as mãos apoiadas nos joelhos. - Solicita a sua presença... Senhor - anunciou, enfim, o homem.

Adam mirou os olhos do guarda íris avermelhadas, como se uma gota de sangue estivesse presa, aspirando deflagrar. O montador de tigres sentiu-se mal por um instante; uma ínfima tontura o atingiu por menos de um segundo, até que se afastou, empurrando o guarda para o lado e caminhando - um tanto incerto -, através das ameias banhadas pela fraca luz da aurora.

No pátio, guerreiros trocavam golpes de espadas e lanças de madeira, enquanto rapazes torciam e apostavam. Guardas observavam as moças a andar de um lado a outro, ignorando o leve chuvisco; chovia a maior parte do ano por ali. Havia homens dos Bottons por toda a parte, o que fez com que Adam estranhasse.

Uma tigresa tão cinzenta quanto o outono se aproximou, roçando o focinho em sua calça parda. Adam afagou-lhe as orelhas e deixou que a fera lambesse seus dedos. Ele a batizou de Bruma pela sua coloração enevoada há anos quando a domou. Fazia uma eternidade agora ou assim o homem sentia.

Rowling o ruivo chamou. Um garoto, com aparentes dezesseis anos, se aproximou correndo.

– Apronte-a - comandou, acariciando a dócil felina. - Viu a fogueira ao sul, garoto?

O escudeiro assentiu, acanhado como sempre; olhos cravados no chão como pregos fustigados pela forte presença do Thieve.

– Erga a cabeça, rapaz! Ordenou. É quase um homem!; comporte-se como tal.

Rowling sustentou o olhar de Adam por alguns segundos, respirando fundo, movido por ser taxado de quase homem. Então virou os olhos para Bruma ela parecia mais simpática.

Adam tomou o queixo do escudeiro em suas mãos cálidas e o revolveu.

– Em mim! Um homem olha direto nos olhos do outro quando se conversa. Se não tem força para sustentar o olhar de um reles humano, jamais conseguirá encarar os olhos obscuros da morte. - Ele largou o rosto do garoto. - Assim está melhor. - Fungou. - Viu a fogueira? - Repetiu a pergunta.

– Sim, senhor - Rowling disse, um tanto rouco.

– Selvagens. - Adam cuspiu. - Marcharemos sobre eles em duas horas.

– Farei como sempre, senhor: irritar Bruma.

Adam assentiu. Mas antes que o rapaz fosse embora, ele o segurou pelo braço.

– Porque há tantos Bottons aqui? - Perguntou, irritado. Gostava tanto dos Bottons quanto um tigre gosta de quiabo.

– Eles contam que dois navios abarrotados de trigo e cevada zarparam numa lua e regressaram na seguinte, sem tripulação alguma; atracaram perfeitamente no Porto Além das Montanhas. - Ele se acolheu, abaixando o tom de voz, temeroso, falando em uma sucessão rápida de palavras. - Dias depois, algumas pessoas adoeceram e morreram; seus rostos deformados por imensas bolhas de sangue, suas peles apodrecendo e suas gargantas cerrando inteiramente, asfixiando-as.

– Como sabe tanto assim? - Adam desconfiou.

– Repeti o que me falaram, senhor. - Dito isso, o garoto se afastou, chamando Bruma, Bruma, vem garota, vem, batendo palmas, incitando a tigresa a segui-lo.

Ele teme algo, Adam ponderou. Mas o quê?

Rowling era um bom garoto, hábil tanto com uma espada quanto com a timidez. Podia facilmente ser confundido com um herdeiro de um grande castelo, em contrapartida à introversão. Era tido como belo com os seus fios sedosos, da cor da aurora na primavera; um verde tão claro quanto a areia das praias sulistas. Olhos tênues, galantes, até que abrisse a boca gaguejante.

Na noite anterior Adam avistara uma grande fogueira ao sul. Teve certeza de que se tratava dos selvagens alguma peleja entre as duas seitas restantes. Então aguardou o despertar de seu Amo; sempre à aurora. Havia pedido que um guarda notificasse Antony disso, de forma que, assim que abrisse os olhos, convocaria Adam aos seus aposentos.

Será que os selvagens estariam se movimentando? Sequestrar galés mercantes não era muito de seu feitio, mas... Nunca se sabe, ponderou em sua mente rochosa. Eles eram imprevisíveis e brutos, e Adam sabia bem disso.

Ele atravessou o pátio, avaliando o pensamento. Algumas moças causaram inveja nos guardas ao esboçarem sorrisos afetuosos com a passagem do ruivo. O Montador de Tigre não lhes deu atenção. Fazia tempo que seu irmão, Amo Antony Thieve, arrumara-lhe uma esposa.

Olivia Sance, uma mulher de um corpo esguio e acariciado pelo sol; assim rememorava Adam. Tristemente, ela fora estuprada e assassinada pelos Noturnos durante um saque a Pinheiral sede dos Sances. Desde então ele se recusou a perdoar o Amo Sance, seu cunhado, que vivia agora recluso em uma fortaleza isolada, numa ilha ao norte longe de qualquer contato com os arcadianos. Lá ele planta, lá ele faz comércio com outros reinos, lá ele caça, lá ele vive. E, provavelmente, lá ele morrerá assim desejava Adam. A morte de sua esposa enraizara-se em sua mente, e certamente aumentara seu ódio pelos selvagens.

O castelo foi erguido com pedra negra, dizem, e, tantas foram as batalhas entre selvagens e Thieves, que o Forte fora salpicado com o sangue de seus mortos ao longo dos séculos. Lenda ou mito, Adam não sabia dizer.

Eldreth poderia falar mais sobre isso, pensou. Era um homem sábio, em contrapartida ao seu tamanho.

Adam recordava os tempos em que Eldreth faltava aos treinos de esgrima para ir à biblioteca ou explorar ruínas esquecidas pela floresta. Certa vez, eles encontraram uma torre com o cimo desmoronado. Ele contou que, há muito, vivia ali um Necromante, um mestre da noite, engenhoso em artes desconhecidas.

O deus da floresta engole os fracassados como se não fossem nada. Erradica-os de nosso mundo e nos força a esquecê-los.

O Forte dos Thieves se posicionava logo atrás de uma pequena cidadela, cingido por maciças muralhas sanguinolentas, de forma que duas destas apartassem o exterior do complexo do castelo propriamente dito.

Uma vasta esplanada abriu-se diante de Adam assim que venceu o imenso portão e as muralhas que o flanqueavam. Uma escultura de nove metros de altura se erguia, imponente, sobre um altar circundado de água; tão cristalina quanto os dois diamantes que abalizavam os olhos do gigante entalhado na pedra.

Ronnal Thieve, o Pai dos Tigres, reconheceu.

Ronnal fora um poderoso chefe dos Clãs da antiga Floresta dos Lamentos, que unificou nove clãs selvagens. Ele os fez serem reconhecidos como Homens de Castelo após erguerem o naqueles tempos tímido e longe de sua atual glória Forte do Tigre. Então, numa estratégia militar, Ron, após enriquecer esplendidamente com o alto preço da carne de urso, ergueu mais oito castelos pela Floresta dos Lamentos e enviou os oito clãs ao seu encargo para lá residirem e erradicarem os selvagens do mundo sob a premissa de que eles eram parte do reino e deveriam proteger a capital contra os selvagens. Mas isso também fazia com que tivessem nove castelos próximos ao coração de Arcádia; uma disposição, política e militarmente, poderosa.

Eldreth narrou uma vez os acontecimentos da Rebelião dos Tigres, mas Adam pouco se lembrava:

Após o rei Eddard Bayer fechar os portos do norte, devido à Dádiva do Inferno uma praga terrível que se alastrava ferozmente por Aislin o reino ao sudeste, além do mar , os Thieves ficaram sem ter como exportar seus produtos.

Então os nervos aquentaram e se formou a Companhia dos Nove que São Oito; as nove famílias que há tempos eram clãs selvagens, apesar dos Bottons terem sido presos, sendo esse o estopim do conflito. Eles cercaram Tormenta a capital.

Mas o rei Eddard havia convocado os guerreiros do extremo norte para a cidade duas luas antes.

No entanto, no momento em que a Companhia avistou as muralhas da capital, divisou também, acolá, navios abarrotados de refugiados vindos de Aislin, reino esse que estava em guerra com Kedhraz, o reino ao sul, além do mar. Aquilo certamente pôs os arcadianos diante de uma decisão tão dura quanto o inverno nortenho: receber os refugiados, correndo o risco de a guerra chegar ao reino, ou expulsá-los na espada, ao lado dos homens do rei, sujeitando sua retaguarda a apunhaladas?

Foi então que Rony Thieve, herdeiro de Ronnal, se disse enviado dos refugiados, para saber qual seria a intenção do Monarca para com os estrangeiros. Rony viu que Eddard Bayer os receberia de bom grado e, tamanha era a sua confiança nos novos provavelmente esperava que ajudassem a conter a Companhia, ignorando o estado de saúde deles que concedeu audiência ao enviado em seus aposentos privados, podendo assim tratar de assuntos menos oficiais a sós. Então Rony sacou um punhal e degolou o rei. Rony ainda conseguiu fugir da cidade e retornar ao acampamento da Companhia.

Ronnal foi pessoalmente negociar com o sucessor de Eddard, Robin Bayer; o rapaz ansiava há muito pelo trono.

Ronnal e Robin acordaram em expulsar os refugiados juntos.

Piche foi lançado ao mar, entre as galés dos doentes desesperados. O fogo se espalhou e milhares de vidas se esvaíram na fumaça enegrecida que beijou as nuvens outonais do norte.

A Companhia dos Nove que São Oito foi inocentada e trazida outra vez à paz de Arcádia por terem defendido bravamente o reino contra os inimigos. O assassinato do Rei Eddard Bayer foi atribuído a um enviado dos refugiados que não aceitou bem a recusa do Monarca em recebê-los. Os portos foram abertos. Aislin foi atacada por forças enviadas de outros reinos, com um dedo de ajuda de Arcádia, e seu povo foi drasticamente reduzido. Por ser uma terra muito rica, foi colonizada e alguns pontos logísticos erguidos, a fim de se administrar o local. E paz reinou na terra.

Além da grande escultura de Ronnal Thieve, nascia um longo corredor de pedra escura que penetrava no coração do castelo como uma lança negra. As estátuas de finados heróis fitavam Adam intensamente; olhos de pedra, mortos, mas vivos. Em suas mãos repousavam espadas, martelos, massas, clavas ou flores. Ao lado oposto de cada alcova, as chamas se retorciam de agonia, coroando grandes tochas pregadas às paredes negras como o mais tardar da noite.

Atravessou um grande arco e se viu num amplo salão, ornamentado com centenas de entalhes de cabeças de tigres na base das colossais pilastras. Estas desenhavam um caminho reto até uma longa e estreita escadaria que, por fim, dava em um trono esculpido diretamente da rocha, no fundo do recinto. Sobre as cabeças das duas feras albinas entalhadas nos braços do assento deitavam-se um par de mãos cinzentas e ásperas como a rocha açoitada repetidas vezes pelas ondas ferozes do mar. Esparramado no imponente trono de pedra negra, estava o Amo Antony, caro irmão de Adam.

Estranho...

Antony era respeitado por sua postura ereta. Era sempre um cavalheiro, gentil como uma flor que nasce entre a fenda de uma rocha áspera e dura. Costumava dar mais atenção às crianças que aos cavaleiros. Tinha um sorriso estampado nos lábios bem delineados e uma felicidade indomável naqueles olhos acinzentados. Os cabelos de sangue caíam-lhe sobre a vista constantemente, de forma que sempre estava a afastá-los e sacudir os longos fios, lançando-os para trás outra vez. Quarenta anos era uma afronta à sua beleza jovial e sua felicidade às vezes singela naquelas terras selvagens.

Mas ali não. Não naquele dia. Seu sorriso estava presente, sim, mas manchado e fendido, forçado pelos lábios que apodreceram e viraram pó. A face chupada, com o osso à mostra em diversos pontos, resguardava uma expressão feliz, porém quase melancólica. Os olhos não passavam de poços negros sem vida. A roupa estava vermelha de sangue, esse que escorria numa cascata macabra que morria num breve lago de esperanças e sonhos destroçados. No peito, um buraco cruel, como se todo o amor tivesse sido sugado de seu ser. Mas não... Não era isso que faltava... Não fisicamente.

Adam subiu as escadas, temeroso, as botas entrando num tom escarlate, entre o negro sombrio e o vermelho fúnebre. Seus olhos outonais divisaram o peito esquerdo do irmão...

Deuses... deixou escapar. Uma lágrima triste, negra como a noite que chega sem misericórdia, nasceu, descendo pela sua face até a cicatriz. Ela percorreu a trilha dolorosa do ferimento, deixando rastros úmidos no matagal vermelho que era a sua barba. Por fim, a lágrima sombria explodiu no colo sem vida de Antony Thieve.

Adam errou para trás, seu pé direito escorregou nos sonhos e esperanças do irmão e ele caiu. Despencou para a escuridão do chão duro e frio do salão, ao sopé da colina de sombras que se erguia diante de si, coroada por um rei pútrido.

Sua cabeça bateu fortemente contra a rocha e a última coisa de que lembrou foi de um peito vazio, sem coração.


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Notas finais do capítulo

Além da terra, além do infinito, eu procurava em vão o céu e o inferno. Mas uma voz interior me disse: O céu e o inferno estão em ti mesmo - Omar Kháyyám.

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