As Crônicas das Lágrimas escrita por H M Stark, Daniel Grimoni


Capítulo 2
S01E02 - O Mestre do Arcano


Notas iniciais do capítulo

Espero que goste, meu caro leitor! Capítulo escrito por Daniel Grimoni.

Sinopse do episódio: Atani Lenora é um renomado Mestre do Arcano, sempre imerso em livros e palavras. E quando o rei Edwin Bayer se vê afundado em problemas insolúveis por meios convencionais, recorre ao misterioso conselheiro, ansiando por dicas acerca do sombrio desconhecido.



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O homem desceu uma escadaria de madeira, a passos pesados e sonoros, como se anunciando sua presença no enorme aposento. Adiantou-se através de um portal entalhado na rocha lisa e colorida do salão - a qual possuía uma estranha propriedade: não era exatamente colorida, naturalmente de uma coloração cinzenta; mas revelava-se mais escura sob as tempestades de outono, reluzia cor de pérola quando o sol brilhava alto no céu ou parecia encantada quando as ondas azuis que se chocavam no litoral espelhavam-se em sua superfície, tão próximas àquela parte do castelo, tão belas em seu movimento. Suas cristas brancas como nuvens de verão e seu corpo tão escuro quanto às profundezas do misterioso mar sobre a qual bailavam. Aparentavam ter vontade própria, e eram mais certas de seu destino do que qualquer um dos homens naquele castelo.

– O senhor me chamou, meu rei? - o homem indagou, delineando uma cortês reverência diante dos olhos duros, mas sábios, d'aquele que sentava ao trono.

– Atani, prestigiado Mestre, sábio conselheiro, chamei-te, de fato. Problemas alastram-se por toda parte! Meu maravilhoso reino ergue-se, imponente, sobre esse vasto oceano e além! - disse o rei, gesticulando com a mão na direção do mar, o qual podia ser visto do salão do trono por uma enorme janela, esculpida na rocha na parede ao lado esquerdo do rei - E, no entanto, aparenta a todo o momento encontrar-se a um passo do abismo, à beira do esquecimento e condenada entre as presas de aço de nossos inimigos. Nossos exércitos e navios prosperam, enquanto nossa própria fundação encontra-se em ruínas. Isto é um caos, meu caro conselheiro.

O homem ergueu-se de sua posição submissa após esta última frase, esboçando um quase imperceptível sorriso em sua face, que aparentava sempre estar a marcá-la. O rei tomou-o como um sinal de que ele teria a solução e deixou escapar um suspiro de alívio. Logo após, dispensou os poucos homens que se encontravam no salão do trono, de modo a ficar a sós com o recém-chegado. Atani Lenora - este era seu nome; raro, antigo e portador de um pesado fardo - sentou-se em uma cadeira de madeira recoberta por uma espessa, mas macia, pele de lobo, próximo ao trono real. Ali era seu lugar, como um dos conselheiros do Rei Edwin da família Bayer, cujos filhos e filhas nasciam predestinados a grandes feitos, seja pelo sangue real que corre em suas veias ou pelo enorme poder, influência e sabedoria que pareciam pertencer a todos os membros daquela linhagem; sejam eles heróis ou tiranos.

Edwin Bayer era um homem com um grande senso de justiça, o qual orientava-o acima de tudo. Era também um rei sábio; ou, ainda, não era imprudente, mesmo que houvesse um toque de ganância em seu espírito forte e ainda imbuído, ainda que tão pouco, do toque impetuoso das selvagens terras de Arcádia. Desta forma, era respeitado por seu poderio militar e amado por suas ações - em sua maioria - justas, bem consideradas e inteligentes; mas, acima de tudo, temido pelo conflito interno que muitos sabiam que sofria, mesmo que Edwin subjugasse-o tão bem. A besta que rosnava dentro do homem sensato e, de vez em quando, fazia-se ser ouvida.

Atani bebia um gole de uma taça prateada de vinho enquanto ponderava sobre as palavras que diria ao rei. Sua aparência era, sem dúvidas, tão imponente quanto sua reputação. Era um homem não muito alto, mas forte e austero. Seus olhos possuíam um tom rubro e pareciam faiscar em sua face pálida e magra; o que o conferia, junto com seu nariz reto e longo e angulosas sobrancelhas, feições duras e um aspecto constantemente reflexivo. Possuía uma barba grisalha que se estendia até um pouco abaixo de seu queixo e tinha início pouco abaixo da altura de seu maxilar; Atani constantemente a aparava, assim como seus longos cabelos negros, os quais caíam por suas orelhas e que, eventualmente, eram amarrados em uma grossa trança. O rei apoiava sua cabeça em suas mãos, passando-as por entre os fios loiros e bagunçados de seu cabelo.

– Isto diz respeito aos navios atacados, meu senhor?

– Ataques? Por acaso sabemos se são ataques, Atani? Ou melhor, quem nos ataca? Esse estranho... fenômeno... esses navios... fantasmas - Edwin sussurrou instintivamente ao pronunciar essa palavra, mesmo que não houvesse ninguém ali além de Atani; como se não ousasse se intrometer nesses assuntos.

Atani brincava com uma estranha moeda, rolando-a entre os dedos. Uma paz duradoura morrera lentamente no reino, sendo substituída por revoltas, sangue e caos. Já existiram, outrora, batalhas e ataques aos navios Bayer - motivo e origem de sua poderosa frota marítima. No entanto, guerras e até mesmo saques podem destruir um navio, ou simplesmente aquele que o saqueia tende a tomá-lo para si, facilmente. Atani acariciou sua barba, pensativo, enquanto Edwin o fitava, observando seu sorriso.

– Se ri devido ao meu medo, caro Mestre - e sim, eu admito que tema seja lá o que estamos a enfrentar -, espero que possa me esclarecer, ou será sua presença nesse salão inútil? Nos seus estudos do Arcano... já viu algo semelhante? Uma tripulação que se perde no mar e seu navio atraca na mesma costa na qual zarpou?

– Não, meu senhor, não há nada semelhante, a não ser que o senhor pretenda basear suas decisões militares em alguns tomos antigos e empoeirados - Atani viu uma fagulha de ansiedade em Edwin, e decidiu oferecer seu pensamento - Contudo... Existem terras para além deste mar, como meu senhor sabe; e os homens que poderiam nos oferecer a verdadeira resposta desapareceram, deixando seus navios para trás.

"O Arcano não me ensinou a entender o que leva um barco sem tripulação a navegar pelo Mar do Norte e voltar, por conta própria, às praias de meu rei. Mas ensinou-me sobre os mistérios do etéreo, os poderes que habitam a esfera do invisível, onde a névoa de realidade e ceticismo que cobre os olhos de humanos comuns não tem lugar. Digo-te uma incerteza, meu rei, com a certeza de que não poderia ser de outra forma: pode ser um ataque, uma afronta, uma tentativa mesquinha e covarde de sabotar nossas forças, nosso comércio, instaurar medo no coração dos homens, ou pode ser algo sombrio; mais adequado: pode ser o desconhecido, meu rei, e nunca saberemos lidar com ele. Se eu disser a meu senhor, neste momento, que meus livros falam da existência de seres grandiosos ou estranhos, habitando as terras e os mares; de Deuses tão grandiosos que sequer se preocupam conosco, ou então poderes que o deixariam boquiaberto, meu senhor me ignoraria. Então ofereço meu conselho, rei: conheça o desconhecido. Veja, com seus olhos e os de seus homens, o que se esconde na neblina que as sentinelas juram ver acompanhar os navios abandonados; o que é este estranho fenômeno. E talvez..."

Atani Lenora foi interrompido por dois soldados da guarda pessoal do rei, que adentraram o salão ruidosamente, abrindo com força os grandes portões de carvalho e vigas de ferro, carregando um homem quase inconsciente pelos braços. Seu rosto estava marcado por diversos hematomas e arranhões; seus olhos fechavam de segundo em segundo, marcando os momentos em que sua consciência desvanecia; fruto dos atos de seus agressores. Ele tinha cabelos escuros, mas esparsos e desgrenhados, e uma pele ressecada e amarelada. Os guardas o lançaram ao chão, forçando-o se ajoelhar.

– Do que se trata este ultraje, guarda? Pensei ter detalhado nitidamente que eu não desejava ser INTERROMPIDO! - rosnou Edwin, golpeando um dos braços de seu trono com um punho cerrado, exaltado pela ousadia dos guardas.

Os dois homens fitavam o rei, em uma posição de reverência, com uma mão apoiada sobre a espada embainhada e a outra junto ao peito; suas cabeças levemente curvadas, mas ainda observando seu prisioneiro. Este estava estirado no chão de pinho escuro d'aquela parte do salão - em meio às compridas mesas de refeição, tão longas que toda a guarda pessoal do rei poderia sentar-se em apenas uma; eram dispostas no centro do salão e em uma plataforma, elevada em um degrau na parede oposta à grande janela pela qual era possível vislumbrar o mar. Olhando-as de ponta a ponta, pareciam serpentear, mas não era certo se aquela aparência era causada pelos talentos de um antigo artesão ou se seria uma ilusão que o som das ondas e a luz mística que envolvia o ambiente causavam. Acima dessas mesas pendiam candelabros de ferro de intensa luz, cujo brilho iluminava as noites de festividades tanto quanto as de melancólica solidão; das paredes de pedra lisa não pendiam ornamentos, tal era a beleza que seu efeito hipnotizante causava, a não ser por um: acima do trono foi pendurado o brasão da família Bayer, e lá repousava há gerações. Um punho prateado, representando seu domínio sobre Arcádia, envolto por ondas coléricas, uma alusão ao enorme mar: berço de tempestades e bonanças, caminho-de-navios, envolto por seus caprichos e delimitado pelo desconhecido.

O prisioneiro trajava apenas um manto esfarrapado, e começava a recobrar seus sentidos. As sentinelas esperavam o julgamento de Edwin, que respirou fundo e continuou.

– Conte-me agora o motivo desse intrometimento, meu guarda, e eu julgarei se foi necessário. Quem é este homem?

– Meu senhor, este é o homem acusado de feitiçaria que nós procurávamos, de acordo com suas ordens; ou não teríamos o desobedecido, meu rei. O encontramos após um vagabundo denunciar ter escutado estranhos sons e aromas vindos de certo beco abandonado. Eu e Ulf - disse o guarda, de maneira amigável, apontando para o homem ao seu lado - estávamos em uma taverna, de folga, meu rei, quando o vagabundo começou a tagarelar sobre isto. Parecia querer uma recompensa quando o interrogamos, mas soltou a língua após mais umas canecas de bebida.

– Muito bem, muito bem! Irei providenciar recompensas para ambos. Diz a mim que ele foi encontrado em um beco de minha cidade?

– Sim, senhor. Especificamente, em um porão, no nível do subterrâneo da cidade. Encontramo-lo a ler alguns grandes e empoeirados livros. Todo o cômodo fedia a feitiçaria... magia negra - o guarda, assim como Edwin fizera, sussurrava - Seus ferimentos se devem a... resistência à prisão.

O homem levantou a cabeça, com a intenção de se defender de sua acusação, mas seus olhos encontraram os de Atani, e não os do rei. Ele tinha um comportamento estranho, constantemente murmurando algo baixo demais para qualquer um ouvir - apesar de que Atani percebia seus lábios se moverem -, ou subitamente entrando em um devaneio, provavelmente devido às suas lesões. No entanto, quando viu Atani, o homem se ergueu, ainda de joelhos, com uma expressão de surpresa estampada em seu rosto; abriu a boca, hesitante, e as palavras demoraram a encontrar seu caminho, mas enfim disse algo, com os olhos fixos no mestre.

– Eu... o conheço... - o homem murmurou primeiramente, mas proclamou em voz alta nas vezes sucessivas - Eu o conheço! Sei quem você é! Eu... ARHHH!

Um grito de dor e medo o fez curvar-se novamente, colocando uma das mãos sobre seu peito e apertando-o com força, rasgando o manto puído com as unhas. Gritava enquanto tremia e todas as suas veias se dilatavam, enquanto seus músculos se tencionavam e seus olhos se arregalavam. Em alguns breves momentos, carecia da força para gritar, e apenas permanecia lá, a encarar Atani, que devolvia o ato, com seu olhar penetrante, fixo. Era o único que não estava completamente horrorizado pela cena. Um dos guardas estava paralisado enquanto o outro pretendia ajudar o homem, mas hesitava; aquilo era diferente de espancá-lo: era muito mais brutal, horrível. Em poucos segundos, o homem começou a vomitar, enquanto sangue vazava por seus olhos, seus ouvidos, sua boca, até que, finalmente, caiu ao chão, sem vida; sua expressão de sofrimento e horror imortalizada em sua face gelada e uma poça de sangue escuro estendeu-se à sua volta. O rei encarava-o com olhos arregalados; um dos guardas caiu de joelhos, abalado. Atani agora desviara seu olhar, para tender ao seu rei.

– O que... o que foi... - Edwin gaguejava. Não era covarde e estava acostumado a ver homens morrerem diante de seus olhos, mas aquilo fora diferente; a própria carne do feiticeiro morto agora apodrecia, rapidamente, à sua frente.

– Ele era um bruxo, meu rei... Parece que sofreu alguma maldição. Talvez um efeito colateral de alguma invocação ousada... Poucos são aqueles que intrometem-se em assuntos tais como esse e saem ilesos... E nunca se tratam de homens fracos, comuns - mais uma vez, Atani adicionou um toque de desprezo a esta palavra.

– Você o conhecia? Como ele o reconheceu, Atani? Sei o que ouvi antes dessa cena grotesca ocorrer... Explique-se agora!

Edwin era muito esperto, e prontamente achou tudo muito estranho; o momento oportuno da morte daquele homem, por exemplo. Atani percebeu isso.

– Sou um homem conhecido, meu senhor. Por diversas vezes andei pelos cantos escuros deste reino e por muitas mais por terras longínquas e esquecidas... E, certamente, por mais de uma vez fui forçado a lidar com homens patéticos como este, seja em que condições fora; não importa mais.

O rei acalmou-se, por enquanto; mas Atani sabia que essa dúvida permaneceria enraizada em sua mente, e se preocupou. Os guardas carregaram o homem para fora do salão real, à ordem do rei, após hesitarem por alguns breves segundos de tocar naquele cadáver amaldiçoado.

– Meu rei, tenho um pedido peculiar - disse Atani, quando estava a sós novamente com Edwin. Prosseguiu diante de um aceno do rei - Deve pedir a seus homens que novamente adentrem o lar do bruxo, e recuperem seus tomos e pergaminhos. Tenho algum conhecimento sobre essa ramificação da magia, meu senhor, mas temo não ser suficiente para que possa combatê-la. Julgo-me capaz d'aquilo que ele não foi; isto sendo, necessariamente, não ser corrompido por aquilo que a tudo corrompe: as sombras. Desejo estudá-las e, talvez, possa entender o que aflige seu reino... Seus navios...

Edwin estava hesitante - além do que jamais hesitou - e temia. Temia o desconhecido, as artes profanas que estavam à sua frente e temia sua confiança em Atani. Se ele, certamente mais poderoso que o homem, se corrompesse como este... Seria uma catástrofe, um caos. Edwin observou o homem severo e sábio à sua frente, que rolava a estranha moeda entre os dedos, considerando seu pedido. E então pensou nos navios que ele mencionara; no navio abandonado atracando na costa, a presença estranha que seus homens sentiram e a neblina...

– Muito bem, Atani Lenora. Providenciarei o que me pede. Mas manterei meu olho em você, Mestre do Arcano, e jamais pense o contrário. Espero que isso venha a me ajudar - disse, com um sorriso confidente e, de certa forma, agradecendo o risco que Atani se oferecia a passar.

O mago foi dispensado pelo rei, que retornou a seus aposentos, cabisbaixo e revirando seus punhos de uma maneira nervosa. Parecia enojado. Atani recolheu-se então, em seu enorme quarto, no topo das escadas adjacentes ao salão, na ala leste do castelo. O cômodo tinha um forte aspecto de biblioteca - tanto pela abundância de livros dos mais variados formatos e cores, quanto pela abundância de teias de aranha e poeira. Isso, entretanto, não incomodava o Mestre, que adentrou pelo portal ornamentado e incrustado de belas joias, respirando com prazer o aroma de tinta e madeira. Aquela era sua casa. Observou ao seu redor, procurando certo tomo, enquanto entoava uma antiga e macabra canção que aprendera há muito tempo:

– Ah, criança que teme a escuridão... / A luz não te guardará do frio, / Nem o manto ou tuas preces irão. / Resguarda-te enquanto rio / De tuas esperanças em vão.


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Notas finais do capítulo

Em momentos de crise, só a imaginação é mais importante que o conhecimento - Albert Einstein.

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