61ª Edição dos Jogos Vorazes escrita por Triz


Capítulo 8
Capítulo 8 - A serpente




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Acendo as luzes do apartamento, iluminando a imensidão vazia que ele é nesse momento. Sento no sofá e olho para o relógio, que indica onze horas da noite, o que significa que está tarde e todos estão descansando para amanhã.

Porém estou inquieto. Não conseguiria simplesmente fechar os olhos e dormir sem ter pelo menos uns trinta pesadelos sobre os Jogos. Minha mente trabalha criando diferentes situações na arena que podem resultar em minha morte. Certamente esse será o único assunto que virá na minha cabeça no instante em que fechar os olhos.

Reparo em coisas nesse andar que nunca tinha visto. Alguns vasos em formatos e estampas diferenciadas, os detalhes curvos das cadeiras da mesa de jantar, as cortinas pesadas que enfeitam a janela. Não fiquei muito tempo aqui, portanto não conheço absolutamente nada, só que agora que é minha última noite nesse lugar, finalmente presto atenção em coisas insignificantes. Talvez isso esteja acontecendo porque quero me distrair.

Preciso dormir para conseguir um bom desempenho amanhã.

Antes de mais nada, levanto e pego um copo de água. Bebo como se fosse a última vez que engolisse uma água tão pura. Provavelmente é, já que na arena terei que beber água vinda diretamente de rios ou esgotos. Aproveito o assalto à cozinha para pegar um último pedaço de chocolate.

É incrível como tudo parece tão diferente agora. Até um copo d'água tem um valor maior para mim. Pois é, eu deveria ter aproveitado melhor a vida, mas como se não tive nada?

Eu definitivamente não quero morrer.

Silenciosamente volto para o quarto. Escolho o pijama mais macio de todos, um branco com o tecido leve, a melhor opção para uma noite de clima ameno como esta. Escovo os dentes de uma maneira tão desanimada que até eu mesmo me surpreendo. Depois disso, apenas me jogo na cama com a cara no travesseiro, para tentar ter uma boa noite de sono.

Um pouco depois de deitar, a porta se abre e uma figura quieta e silenciosa se senta ao meu lado na cama. Ela me cutuca levemente.

— Geoff? — Dominique chama, a voz soando muito baixa e chorosa. — Desculpe atrapalhar, mas preciso mesmo falar com você.

— Estou acordado — digo, virando o rosto. Mesmo na escuridão, reparo que Dominique está com a ponta do nariz avermelhada e os cabelos lilases muito bagunçados. — Pode falar.

— Geoff, você é meu favorito. Eu... eu nunca gostei de um tributo assim, e você é quase que um filho pra mim, então te trouxe uma lembrancinha.

Dominique me entrega uma pulseira prateada no formato de uma serpente. Quando a coloco, reparo que é como se ela tivesse se enrolado ao redor de meu pulso. A luz da lua que entra pelo meu quarto reflete nos olhos de esmeralda da cobra.

— Ela é muito bonita — digo, abraçando Dominique rapidamente. — Mas por que uma serpente? Eu sou venenoso?

Ela ri.

— É que você é mortal.

— Uau, não sabia que tinha todo esse potencial. Obrigado.

— Quero que use quando estiver na arena, ok?

— Ok, não vou me esquecer.

— Agora durma bem, Geoff. Amanhã precisa estar disposto. Boa noite.

— Boa noite.

E em um gesto materno, Dominique me dá um beijo na testa antes de ir. Isso com certeza me ajudou a relaxar, e assim será mais fácil dormir confortavelmente pela última vez.

[...]

Dominique me acorda muito cedo, e então reparo que dormi com a pulseira na mão. Em um pulo, já estou praticamente pronto para partir. Dessa vez ouço os gritos de Jass mais altos que nunca, e quando parto para a sala, percebo que ela é quase que arrastada por Bree. Dominique (com lágrimas manchando sua maquiagem alaranjada exageradíssima), Bree e Taylor estão prontos para as despedidas. Taylor me dá um aperto de mão.

— Boa sorte, garoto — ele diz, sério. — Você vai longe. Farei o máximo possível pra te ajudar.

— Obrigado.

Bree me dá um abraço seco, sem nenhuma emoção e nenhuma troca de palavras. Logo depois, é a vez de Dominique.

— Eu quero que sobreviva. Faça isso por mim. E-eu não quero que morra, quero que volte e então podemos passar muito mais tempo juntos. Eu quero te ver feliz numa casa nova e...

Dominique simplesmente desaba. Abraço-a e sinto suas lágrimas molharem minha blusa. Ela não quer me soltar, assim como não quero soltá-la. Até sinto algumas lágrimas se formando em meus olhos, mas seguro-as para parecer forte. Seus soluços são tão altos que chegam a me assustar, porém continuo calmo. Ela realmente se importa muito comigo.

— Eu voltarei — tento dizer sem expelir lágrimas. — Eu prometo pra você, apenas torça por mim, Dominique. Você é a única pessoa do mundo que posso chamar de mãe. Por favor, torça por mim.

— Você não pode morrer, não pode mesmo.

— Farei o máximo, de verdade. Não posso te decepcionar de jeito nenhum.

Ela se solta de mim e começa a secar a face molhada com lencinhos. Os Pacificadores então aparecem no 5º andar e dizem que está na hora de entrar no aerodeslizador e partir para a arena. Eu e Jass andamos atrás deles e entramos no elevador. Olho para Dominique uma última vez.

— Boa sorte, Geoffrey! — ela grita, e então, as portas se fecham sem dar tempo de respondê-la. Fico em silêncio, ouvindo apenas os soluços de Jass.

[...]

Os tributos ficam distribuídos aleatoriamente nos assentos pelo aerodeslizador. São duas fileiras frente à frente, e dá para sentir o clima de tensão pairando no ar. Ao meu lado direito, está Antonia, que é tão pequena que praticamente afunda em seu assento. Ela corre o olhar pelos tributos, provavelmente para procurar o primo. E ao meu lado esquerdo, está a Carreirista do Distrito 4, Anya. Ela tem cabelos loiros curtos e pele bronzeada. Parece séria.

O caminho até a arena é torturante. Assim que o aerodeslizador decola no ar, fecho os olhos e tento dormir, porém uma mulher gorda e grisalha com roupas brancas vem me interromper:

— Com licença, garoto — ela diz. — Preciso que me dê o braço para injetarmos o rastreador.

— Rastreador? — pergunto.

— Para sabermos onde estará, caso precisemos buscar seu corpo ou apenas te localizar — ela abre um sorriso horrível, mostrando seus dentes amarelos.

Quando ela sai, lembro-me de Astrid. Localizo-a bem longe do local onde estou, mas ela nota que a procuro. Ela move os lábios como se estivesse sussurrando à distância, e o que consigo entender é vou sair correndo.

Ah sim, o banho de sangue.

Astrid revira os olhos, porque provavelmente notou que não fiz um plano para o banho de sangue. Ok, ela me conhece perfeitamente bem. O que farei?

As janelas do aerodeslizador se fecham, e isso significa que estamos chegando e que não podemos observar a paisagem da arena. Os minutos passam tão depressa que parece que o tempo virou meu inimigo. Na arena, o relógio será meu inimigo. Como torcerei para tudo acabar mais rápido, o tempo passará mais devagar.

O aerodeslizador começa a abaixar. A arena está mais perto que nunca, parece que em minhas veias corre gelo. Minhas pernas tremem quando a porta se abre e somos guiados até o Curral.

O Curral, nome popular para a Sala de Lançamento. É lá que os tributos se preparam para a arena, colocando os trajes adequados e em seguida, entrando num cilindro de metal que os leva diretamente à seus pedestais em frente à Cornucópia. Pise fora antes do tempo e morra com explosivos levando seus órgãos ao ar. O nome Curral foi dado por lembrar os animais que estão sendo preparados para o abate. Nada muito diferente da minha situação atual.

Chegando lá, me encontro com a pessoa que menos gostaria de ver nesse mundo (ainda mais quando estou à beira de uma carnificina): Frida. Somente de olhar para sua expressão presumo que ela não está nem um pouco feliz em me ver.

— Pois veja bem, Geoffrey — ela começa a dizer, buscando um pacote com roupas para mim. O traje da arena. —, não estou nem um pouco afim de comentar sobre o que aconteceu no dia das entrevistas, então apenas vista o traje e entre na porra do cilindro.

Sem dizer absolutamente nada, me troco.

O traje é composto de uma calça marrom, camiseta azul clara de mangas curtas, casaco de couro e botas do mesmo material. A calça é leve e resistente, portanto dá para correr confortavelmente (as botas também são ótimas para corrida e caminhadas), além de ter muitos bolsos. O casaco indica que o clima à noite pode ser duro, porque a parte de dentro é revestida por um material que esquenta rapidamente. Seu capuz protege as minhas orelhas e é confortável por dentro. Já a camiseta azul possui um tecido suave, o que facilita muitos movimentos, perfeita também para climas quentes por conta do frescor que ela proporciona ao ter contato com o ar. É como se a camiseta tivesse poros minúsculos que transformassem a entrada do vento em um ar condicionado para o corpo. Tudo isso me faz pensar sobre a arena. Como será? Uma floresta? Um deserto? Ou quem sabe uma cidade em ruínas?

Pelas minhas roupas, presumo que não será uma arena congelada e nem um ambiente frio. Provavelmente fará calor durante o dia e frio pela madrugada, a julgar pelo casaco. Porém essa é minha única pista, então apenas saberei assim que estiver lá.

Frida continua quieta, sentada em seu sofá. À sua frente, está o cilindro, e é lá onde devo estar em alguns minutos.

Há uma pequena refeição antes do início dos Jogos, e como o suficiente para me satisfazer. Se comesse além da conta, poderia ter mal estar, então evitei ao máximo abusar da maravilhosa refeição. Me distraio quando uma voz anuncia ao alto falante:

— Tributos, por favor entrar em seus cilindros em trinta segundos.

Frida se levanta do sofá, para arrumar os últimos detalhes da roupa. Ela tira o capuz de minha cabeça e sacode meu casaco, depois deixando-o aberto por cima da camiseta. Também dá um nó mais apertado nos cadarços da bota e, finalmente, ajeita a minha pulseira para deixar os olhos de esmeralda da cobra para cima.

— Está pronto? — pergunta ela.

Meus olhos encaram o chão por um instante.

— Não — viro-me para o cilindro de metal. — Mas não há outra opção, não é mesmo?

— Tente não morrer.

— Tentarei.

Quando a voz anuncia que todos os tributos devem posicionar-se em seus círculos de metal, já estou ali, tentando manter minha cabeça erguida. Frida me observa ainda com sua expressão neutra, porém sem desviar o olhar, como se estivesse, bem lá no fundo, com um pingo de pena.

O cilindro é fechado por um material transparente, provavelmente vidro. Nele, brilha meu reflexo.

Minha expressão é aterrorizante. Os olhos esbugalhados de terror, a boca visivelmente em uma tremedeira agoniante e a respiração fazendo vapor no vidro. Tento usar o reflexo para me auxiliar a conseguir melhorar, então penso na expressão que fiz quando fui sorteado. É bem mais difícil nesse momento, porque não sei quanto tempo durarei. Será que estarei morto no banho de sangue, no meio dos Jogos ou serei vitorioso? Estou prestes a descobrir. E é isso que me mantém tão aterrorizado.

O círculo começa a se elevar, e a última coisa que vejo do Curral é Frida dando as costas e indo embora. Por alguns segundos, apenas vejo uma faixa de terra. Depois, a luz cegante impede minha visão por um tempo, porém já consigo sentir o vento agitando meu cabelo. O cheiro de lama misturado com o aroma de uma floresta invade as minhas narinas, e sinceramente achei que fosse vomitar.

A voz de Claudius Templesmith, o locutor, soa no ar:

— Senhoras e senhores, está aberta a 61ª Edição dos Jogos Vorazes!

A contagem regressiva se inicia. O tempo em que somos obrigados a ficar em nossos pedestais é de sessenta segundos, e se eu for idiota o suficiente para descer antes, acabarei com minhas entranhas explodidas por minas terrestres. Evito pensar nisso, então resolvo dar uma olhada ao meu redor.

Estamos ao ar livre, rodeados por árvores de diversos tipos e celeiros de madeira, com as pinturas descascadas. Alguns tratores, enferrujados e totalmente destruídos, estão espalhados por aí. Também há algumas plantações, provavelmente com espécies cheias de veneno para enganar os tributos. Atrás de mim, há uma floresta, e esta se extende até onde posso enxergar em todas as direções.

Acho que já entendi. Essa arena é uma fazenda abandonada.

A gigantesca Cornucópia dourada brilha à minha frente. Dentro dela, posso ver uma variedade enorme de armas e suprimentos, porém é arriscado chegar lá perto — os Carreiristas sempre ficam com todo aquele estoque. Ao redor da Cornucópia há outras coisas para coletar, porém não são tão boas quanto as que estão em sua boca. Quanto mais longe da Cornucópia, menor o valor dos itens.

Os tributos são posicionados ao redor da Cornucópia, aleatoriamente. Nem consigo localizar Astrid, provavelmente está do outro lado do chifre dourado.

Ainda restam-me trinta segundos para pensar no que fazer.

Lembro-me que ela disse que sairá correndo. É bem provável que fuja para a floresta, onde pode encontrar água ou até mesmo um esconderijo. Ela conseguiria sobreviver por um longe tempo lá, apenas se escondendo dos outros tributos, sem ter nada além do próprio cérebro. Infelizmente não tenho essa capacidade, porém ir para a Cornucópia é arriscado demais.

Observo os itens dispostos à minha frente. Bem perto, há uma garrafa de água vazia, um pedaço de corda e um kit de costura. Nada muito útil para mim. Ou talvez eu possa furar meus inimigos com a agulha contida no kit, sei lá. Perto da boca da Cornucópia, vejo um lindíssimo estojo de facas, que parece atrair minha atenção. Porém é muito arriscado, nem ousaria chegar perto. Apesar disso, há um pequeno estojo no meio do caminho, com facas de aparência menos cruel e em número muito menor.

Ainda não estou com vontade de ir até lá, me arriscar tanto assim. Posso simplesmente sair correndo atrás de Astrid, e assim eu não me perderia dela e poderia protegê-la. Sem falar que aprendi muito sobre plantas, posso muito bem sobreviver indo até a floresta, e com Astrid ao meu lado, poderemos sobreviver por um longo período de tempo. Essa é a melhor opção. Espera, desde quando eu e Astrid temos uma aliança?

Os dez segundos finais estão correndo enquanto finalmente tomo minha decisão sobre fugir do banho de sangue ou enfrentá-lo. O sangue circula quente por minhas veias, como se essa fosse a hora de finalmente descontar todas as minhas frustrações.

Não tenho medo. Olho para a minha pulseira, refletindo a luz do sol forte. Sou como uma serpente.

Venenosa.

Mortal.

Então assim que o gongo soa, saio correndo em direção à Cornucópia.


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Notas finais do capítulo

Wee, Geoff resolveu correr para o banho de sangue. Será que ele sai vivo? Será que ele vai encontrar com a Astrid? Hehe, até o próximo e não se esqueçam de comentar o/