Seu último amor - 2ª temporada escrita por Jeniffer


Capítulo 6
Paraíso


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus queridos leitores!
Querem uma dica? Leiam este capítulo ouvindo esta playlist incrível do Superplayer: http://www.superplayer.fm/musicas-francesas Ela inspirou e impulsionou a escrita deste capítulo.
Sem mais delongas, vamos à Paris! :D



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/503570/chapter/6

“ — O paraíso está escondido no fundo de cada um de nós – (...) – Neste momento, o paraíso se encontra encerrado dentro de mim; se eu quiser, ele vai se realizar amanhã; então, eu vou viver no paraíso, por toda a minha vida.”

Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, citação da página 335 na edição de 2013 da editora Martin Claret.


— Você nunca dorme?

Joguei o lençol para o lado e saí da cama, vestindo a camisa de Klaus esquecida no chão. Enquanto a vestia, observei Klaus, sentado à mesa do café, posta na varanda para aproveitar o sol. O café estava quente e lançando uma delicada coluna de vapor que espalhava um aroma delicioso pelo quarto. Fui até lá, descalça, e o abracei.

— Quando você alcançar minha idade, Love, irá perceber que dormir é perda de tempo. – eu ri e o beijei delicadamente. – Bonjour mon amour

― Bonjour. – sentei-me na cadeira ao seu lado, servindo-me de café e um croissant. Estiquei minhas pernas sobre a outra cadeira e aproveitei a vista privilegiada de Paris que tínhamos da varanda.

Estávamos na cidade há quatro dias, aproveitando tudo o que podíamos, dela e de nós mesmos. O humor de Klaus havia melhorado imensamente, e ele agora ria e sorria o tempo todo, calmo e relaxado. A saudade que senti nos dias em que ele esteve conquistando New Orleans aos poucos foi se desfazendo, dando espaço para os sentimentos bons que foram soterrados.

— O que acha de um passeio? Ainda é cedo... – Klaus sugeriu. Olhei para o relógio na parede oposta. 09h:15min, muito cedo para quem, aparentemente, estava de férias. Contudo, assenti, aceitando o convite. Afinal de contas, estávamos em Paris.

Quando saímos do hotel, colocamos nossos óculos escuros, enquanto procurávamos um táxi. Klaus desistiu imediatamente.

— Que tal irmos caminhando?

— Acho ótimo. – eu não tinha pressa nenhuma, apenas queria aproveitar o máximo destes dias de calmaria.

Andamos pelas calçadas de Paris de mãos dadas, sendo constantemente forçados um contra o outro, devido ao grande número de pessoas que passavam por ali, carregando câmeras e conversando nos mais diversos idiomas.

— Agora eu vejo por que Paris é a cidade dos apaixonados. – falei, enquanto tentávamos desviar de um grupo de italianos. – Impossível ficarmos longe um do outro no meio desta multidão.

Klaus riu e me guiou até o outro lado da rua, um pouco menos movimentado. Nós caminhávamos como se pertencêssemos ao lugar, como se vivêssemos aqui há anos. Fiz compras no primeiro dia aqui, observando a moda francesa e ficando cada vez mais inspirada a cada loja que visitava. Klaus pouco se importou com a pequena fortuna que gastei em apenas um dia, só elogiou minhas escolhas, dizendo que eu parecia uma francesa de corpo e alma.

Quando avistei a Catedral de Notre-Dame à nossa frente, apertei o passo e ignorei a risada de Klaus. Ele estava se deliciando com a minha alegria infantil ao ver tudo aquilo pela primeira vez. Ele estava tão acostumado com Paris que se misturava às pessoas e reagia como se tudo fosse muito comum.

— A arquitetura dela é tão bonita. – falei, com a voz baixa, em um tom de pura admiração.

— Não sabia que você gostava do universo gótico. – ele disse.

— Não do universo triste e melancólico, mas admiro a arquitetura. Amo os vitrais. – observei a quantidade de pessoas lá, e nem mesmo cogitei entrar.

— Você me encanta, Esmeralda. – ele pegou minha mão e me puxou para um beijo.

— E você, quem seria? – perguntei, entrando neste jogo de referências.

— Por vezes sou Frollo, mas talvez minha alma seja de Quasimodo.

Olhei para ele, intrigada. Klaus mantinha seus olhos fixos na Catedral, e não pude deixar de notar a tristeza que se abateu sobre ele. Mas ele a fez desaparecer tão rapidamente quanto ela surgiu, sorriu para mim e disse:

— Já sei onde podemos ir.

Ele nos guiou com destreza, optando por atalhos e caminhos alternativos evitando multidões. Deste modo, logo chegamos no Mercado das Pulgas. Encantei-me com a quantidade absurda de itens expostos, das mais variadas origens e com as mais diversas finalidades.

Caminhamos por ali, à procura de uma barganha. Não encontrei nada que me chamasse a atenção de imediato, mas ainda assim, analisei tudo demoradamente. Estava tão concentrada em alguns colares e pulseiras, severamente vigiados por uma senhora pouco animada, que nem mesmo percebi quando Klaus se afastou de mim, procurando algo por conta própria.

— Encontrei uma coisa. Vamos. – abandonei os colares, e nem mesmo tive a chance de procurar mais nada. Klaus estava tão animado que era contagiante.

Chegamos à Pont des Arts e Klaus me levou até aquelas grades repletas de cadeados, tradição do lugar.

— Todos os dias, centenas de pessoas vem até aqui e deixam cadeados na ponte. Alguns estão aqui para simbolizar amores eternos, outros para guardar segredos, ou até mesmo para realizar pedidos. – Klaus corria os dedos pelos cadeados, criando um som metálico quase musical.

— E então jogam a chave no Sena. – completei.

— Uma metáfora. Sem a chave, o amor nunca acaba, o segredo nunca é aberto e o pedido é eterno. Como se a água pudesse levar embora a única coisa que pode destruir tudo. – ele olhava para as águas do Sena. – Mas elas não vão embora, simplesmente afundam e ficam ali.

— Outra metáfora?

— Acredito que não. Ninguém mais jogaria a chave fora se soubesse que ela não vai a lugar nenhum.

— Talvez sim. – falei, também olhando para as águas calmas do Sena. - Heráclito dizia que é impossível banhar-se duas vezes no mesmo rio. A água que foi tocada segue em frente, e logo, não é mais o mesmo rio. Mesmo que a chave apenas afunde, o rio ainda segue. Acho que o Sena representa o destino, aquilo que não controlamos, que segue em frente não importa o que aconteça.

— Mas você pode controlar. Mesmo que você jogue a chave no Sena, ou ao destino, você poderia recuperar a chave, o controle. – Klaus olhava para mim agora, interessado no rumo da conversa.

— Se você pudesse mergulhar agora no Sena, encontraria milhares de chaves. Como poderia encontrar a sua? – provoquei.

— Tentativa e erro? – ele sorriu.

— Até que você encontre a sua e retome o controle sobre o destino, milhares de amores acabariam, segredos seriam revelados e desejos destruídos. Eventualmente, você chegaria no momento de se perguntar se realmente vale a pena. – voltei a olhar para o Sena, e imaginar a quantidade absurda de chaves que ele deveria estar guardando.

Klaus aproximou-se de mim e estendeu-me um cadeado. Ele era antigo, redondo, e com pequenos arabescos circundando o ponto onde a chave se encontrava. Eu o peguei e constatei o peso daquele objeto, obviamente feito de ferro e utilizado para guardar alguma coisa muito importante.

— Você comprou isso no Mercado das Pulgas? – perguntei.

— Uma antiguidade, vale muito mais do que eu paguei.

Ele o abriu e entregou a mim. Procurei um espaço na grade e o coloquei ao lado de um cadeado em forma de coração. Se ele foi utilizado para guardar algo importante, agora continuava servindo ao seu propósito. Ali, na Pont des Arts, aquele cadeado guardava uma coisa muito importante para nós dois.

— E isso fica com você. – disse ele, entregando-me a chave.

— Não quer jogá-la no Sena? – perguntei.

— Não gosto da ideia de deixar coisas como essa nas mãos do destino. Prefiro que você guarde.

Segurei aquela chave antiga entre meus dedos, e então a coloquei no bolso, pensando se ela não estaria melhor guardada no fundo do Sena.

— Vamos almoçar. – disse Klaus, trazendo-me de volta para o momento.

Enlacei meus dedos nos seus, e enquanto deixávamos a Pont des Arts, percebi que o Sena não seria o suficiente para proteger o amor que nos unia.

***************

Paris tem gastronomia para dar e vender, e a variedade de restaurantes é extraordinária. Klaus acabou escolhendo o restaurante, dizendo que a carta de vinhos do lugar era a melhor das redondezas. O almoço foi delicioso, e acabamos conversando longamente sobre a história de Paris, principalmente sobre as aventuras que ele mesmo viveu aqui.

Deixamos o restaurante no meio da tarde, e caminhamos tranquilamente e sem destino, aproveitando a cidade. Até que eu parei para observar uma longa fila que se formava em um ponto específico.

— As catacumbas de Paris. – disse Klaus, esclarecendo-me. – Se você quiser visitar, vai ter que enfrentar uma longa espera.

— Não sei se é um passeio que eu gostaria de fazer. – falei e continuei andando. – Um tanto tétrico, não acha?

— Depende do ponto de vista. Algumas pessoas acreditam e defendem que só realmente pensamos sobre a vida quando enfrentamos a morte.

— Talvez seja por isso que algumas pessoas repensam suas vidas quando enfrentam uma experiência de quase morte. – eu disse, pensando a respeito.

― Sim, a lógica é esta. Contudo, visitar as catacumbas é uma maneira bem mais segurá-la de repensar sobre a sua vida. – ele riu.

Permaneci um tempo em silêncio, pensando sobre aquilo. É bem mais complicado refletir sobre a morte quando se é imortal. Antes, minha mente humana poderia criar mil e uma elucubrações acerca do assunto. Todavia, uma vez que o conceito de fim se desfaz, estas ideias parecem simplórias.

— Se você acha as catacumbas algo mórbido, talvez devêssemos tentar os cemitérios. Poderíamos visitar Simone de Beauvoir.

— Você a conheceu? – perguntei.

— Brevemente. Uma mulher brilhante, sem dúvida. – não mencionei o fato de de nunca ter lido nada da autora em questão, apenas frases aleatórias.

— Gosta da obra dela?

— “Parecia-me que a Terra não seria habitável se não houvesse alguém que eu pudesse admirar”. – ele disse, citando uma frase da autora. – Como não gostar de alguém que me define com tamanha precisão em tão poucas palavras?

Nem mesmo Simone de Beauvoir conseguiria descrever o sorriso dele em poucas palavras.

************

Quando o sol começou a abandonar Paris e eu me sentia cansada e desesperada por algumas horas de tranquilidade, mas Klaus estava agitado e nem mesmo pensava em voltar para o hotel. Sua felicidade contagiante me atingiu como um trem, e seguimos em direção a um bar que me lembrou tanto “Burlesque” que eu esperei Cher e Christina Aguilera a qualquer momento naquele palco.

Dançamos e bebemos, e em alguns momentos até mesmo cantamos, tão alto quanto a música, até um pouco ridículos. Dois ridículos apaixonados que não se importavam com o amanhã. Não pude deixar de lembrar do baile baseado nos anos 20, em que Klaus dançou comigo, um tanto a contra gosto devo admitir.

— Eu não tenho que provar nada, Love. Eu sou o macho alfa. – eu falei, enquanto dançávamos.

— O quê? – ele parou, subitamente.

— Nada. Esse lugar, esta música. Tudo me lembra daquele baile em que você dançou comigo e me disse isso.

Talvez, ao mesmo tempo, ambos acabamos pensando em Tyler. Espantei a memória com destreza e o puxei para mim novamente, rindo e tentando quebrar a tensão.

— Você está cansada? – ele perguntou, próximo ao meu ouvido.

— Um pouco. Por quê?

— Tem mais um lugar que eu gostaria de levá-la hoje.

Suspirei. “É Paris, Caroline”, pensei comigo mesma. Dormir era mesmo uma perda de tempo em um lugar como este.

**********

— É mesmo muita sorte que ninguém responsável pelo Louvre tome verbena com regularidade. – falei baixinho.

— Erro deles. – Klaus riu.

O Louvre era magnífico, mas um tanto assustador à noite, sem ninguém circulando pela sua imensidão de arte e cultura. Cada som parecia se intensificar, cada sussurro parecia se projetar e se transformar em um grito. O grito de alguém sendo morto pelos tiros que eram meus saltos contra o piso.

— Venha, eu vou lhe apresentar à ela.

Eu não queria dar mais nenhum passo sem apreciar tudo o que me cercava, mas o acompanhei mesmo assim. Antes mesmo de chegar lá, eu sabia quem era ela, e fiquei nervosa por finalmente estar frente a frente com a mulher mais enigmática da história.

— Ela é... pequena. – falei, o que fez Klaus rir mais ainda. Seu riso ecoou por aqueles corredores vazios e se perdeu nos ouvidos dos grandes artistas que este teto abrigava e protegia.

— Tenho certeza que ela ouve muito isso.

A Mona Lisa possuía sua imponência, com certeza, mas ainda assim era pequena. Menor do que os pôsteres que poderíamos comprar em qualquer lojinha por aí. Contudo, ela ainda era incrível, e certamente estas reproduções não faziam jus a sua classe.

— Eu adoraria voltar no tempo e ver Da Vinci pintando-a. – falei. – Só para saber o segredo deste sorriso.

— Se você conseguir voltar no tempo, procure algo mais interessante, Love. Da Vinci não lhe contaria seus segredos por nada no mundo.

— Você o conheceu? – perguntei, espantada.

— Sim. – ele respondeu, ainda admirando o quadro. – E ele conhecia verbena.

— Aposto que esta chave o Sena levou para bem longe. – brinquei.

— Ela é incrível, não é? Mas não foi para isso que lhe trouxe aqui. – ele pegou minha mão. – Eu a trouxe aqui para te mostrar minha favorita.

Eu o segui, sem saber para onde ia. Klaus se movia com tanta tranquilidade, como se esta fosse sua casa. Ele parou em um corredor, indeciso se continuava ou não.

— Por favor, não diga que estamos perdidos. – falei.

— Não, é só que... Eu quero lhe mostrar outra coisa primeiro.

Ele seguiu apressado pelo corredor, fazendo uma breve interrupção no plano original. Seguiu alguns passos adiante, até parar em frente a um quadro.

— Este é o seu favorito? – perguntei, tentando identificar o que fazia aquele quadro algo tão especial.

— Não, de modo algum. – ele não tirava os olhos do quadro. – Esta obra é minha.

Aproximei da pequena placa que dizia “Destruição”, de K. Mikaelson. Lembrei do dia em que ele me mostrou uma de suas paixões, como ele chamou, naquele baile suntuoso oferecido por sua família. Ele disse que uma de suas paisagens estava exposta no Louvre, mesmo que ninguém a notasse. Ela estava no final de corredor secundário, o que explicaria a falta de admiradores.

Olhei com mais atenção o quadro em minha frente. Era uma pintura feita com carvão, retratando uma casa parcialmente destruída, cercada por árvores retorcidas e mortas, sendo que uma delas estava em chamas. O fato de tudo ser preto e branco acrescia uma melancolia opressora à imagem, e eu me senti um tanto perturbada.

— O que é isso? – sussurrei.

— Esta é minha primeira casa, onde minha família viveu antes de nos tornarmos o que somos. Algum tempo depois do começo das tragédias que assolaram minha família, eu voltei para lá, e a encontrei assim, destruída.

— Porque a árvore está queimando? – perguntei.

— Este é o carvalho branco. Nós o queimamos, pois era a única coisa que podia nos matar. – se ele se entristecia com aquilo, disfarçou bem.

— Porque o chamou de “Destruição”? – eu não conseguia compreender aquela pintura.

— Este quadro representa a destruição, desde a mais simples até a mais profunda. A destruição de minha casa, um dos poucos lugares que chamei de lar. A destruição de minha antiga vida, de meu antigo eu, de minha família. A destruição do carvalho, de Tatia, de uma parte da natureza. A destruição de tudo.

Não comentei que todas as obras de sua autoria que eu vi até hoje possuíam uma tristeza quase palpável.

— Você não assinou seu nome completo. – assinalei.

— Não. – ele suspirou. – A verdade é que minha arte mostra quem sou. Este sou eu, Caroline. Alguém destruído, e que tenta fazer o melhor com o que sobrou. E aqui estou eu, destruído e exposto para centenas de pessoas.

A partir desta ótica, era compreensível que ele não quisesse seu nome vinculado à obra. A falta de assinatura garantia o anonimato necessário para prevenir a fraqueza e a vulnerabilidade provenientes desta triste confissão. Senti meu coração se apertar ao olhar o quadro, e nem mesmo consegui imaginar tudo pelo que ele havia passado.

— Isso é terapia suficiente por uma noite. Vamos em frente.

Eu o segui, agradecida. Ele parou subitamente e segurou sua respiração, em admiração.

— Aqui está. – ele indicou uma escultura à nossa frente. – “Psyche Revived by Cupid's Kiss”.

— Por que é sua favorita? – perguntei.

— Lembra-me de nós dois. – ele disse, dando de ombros.

A escultura consistia em Psiquê, em uma posição que indicava uma possível queda, sendo revivida por um beijo do Cupido. Era linda, sem sombra de dúvida, mas em todo o Louvre certamente não seria minha favorita.

— Conhece a história? – Klaus perguntou, enquanto observava a escultura de todos os ângulos possíveis.

— Não.

— Cupido é o deus do amor, assim chamado pelos romanos. Os gregos o chamam de Eros. Independente do nome, ele é este anjo que faz com que as pessoas se apaixonem, quando atingidas por suas flechas. Psiquê foi o seu primeiro e único amor.

Ele me olhou de maneira intensa, e eu comecei a entender porque ele associava aquela estátua com nossa própria história. Sentei-me em um dos bancos ali perto e aproveitei a aula de mitologia.

— Psiquê era uma jovem lindíssima, tão deslumbrante que as pessoas faziam oferendas a ela, tal qual uma deusa. Isso enraiveceu Vênus, a deusa do Amor, por sinal, mãe do Cupido. Ela ordenou que o filho fizesse com que Psiquê se apaixonasse pelo ser mais vil e desprezível que houvesse, para que ela sofresse. – Klaus estava ficando animado com a narrativa. – Cupido esperou que Psiquê adormecesse, mas quando se aproximou dela encantou-se com sua beleza e ficou admirando-a. Com essa demora, ela acordou e se assustou com aquela presença. Isso também assustou Cupido, que acabou se ferindo com sua própria flecha, que também tocou Psiquê. Assim sendo, ambos correspondiam àquele amor.

A memória daquele trágico aniversário em que pensei que iria morrer por uma mordida de lobisomem voltou à minha mente com força total.

— Temendo a ira de sua mãe, Cupido levou Psiquê para um palácio, onde a visitava somente à noite, e a proibia de vê-lo. No início tudo correu bem, mas Psiquê começou a se sentir sozinha e pediu que suas irmãs a visitassem. Elas ficaram encantadas com todo o luxo que Psiquê possuía, e com inveja, começaram a questioná-la sobre este misterioso marido, e a supor que ele deveria ser um mostro para não se permitir ver.

— Tantas suposições deixaram Psiquê curiosa. – continuou ele. – E naquela noite ela esperou que ele dormisse e então acendeu uma lamparina para poder vê-lo. Ela ficou encantada com a beleza de Cupido e ele acabou acordando. Vendo que Psiquê traíra sua confiança, ele desapareceu dizendo que nunca mais poderiam ficar juntos. Psiquê, com saudades, pediu ajuda aos deuses para encontrá-lo novamente, e foi aconselhada a falar diretamente com Vênus.

— Justamente com a que sentia inveja? – falei.

— Exato. E foi esta inveja que a fez estabelecer diversos testes impossíveis para Psiquê, como separar uma montanha de grãos de cereais de tipos diferentes em apenas uma noite. Com dificuldade, Psiquê foi realizando uma a uma, até que Vênus a desafiou a descer ao Inferno e trazer a caixa com os segredos de beleza usados por Perséfone, a rainha do mundo subterrâneo.

— E ela conseguiu? – perguntei, intrigada.

— Sim e não. Quando Psiquê estava no caminho de volta, ela não resistiu à sua curiosidade, e abriu a caixa, como Vênus sabia que ela faria. Era tudo uma armadilha. O que havia lá dentro era um sono pesado, invencível e total, parecido com a morte, que dominou Psiquê. De longe, vendo tudo, Cupido ficou desesperado e pediu ajuda a Zeus, o deus Supremo. Ele, com pena, trouxe Psiquê para o Olimpo e a libertou daquele sono. Assim, transformou-a em imortal, para que eles pudessem viver juntos para sempre.

Eu sorri para ele.

— As lendas não eram criadas para explicar alguma coisa?

— Sim, e esta fala sobre a alma, que é o significado de “Psiquê”. Segundo a lenda, a filha de Cupido e Psiquê se chama Volúpia. Ela é o resultado de um amor sem fim.

— Então, a curiosidade quase matou Psiquê?

— Também a fez correr muitos riscos. Mas sim, esta é a ideia.

Não entendi o que ele quis dizer com tudo isso, mas assinalei isto como algo a analisar posteriormente.

— Que tal voltarmos agora? – ele sugeriu.

— Claro.

Deixamos para trás aquela escultura tão elegante e, de certo modo, triste, e que agora assumira uma significativa importância para mim.

************

Soltei meus cabelos e fui para a cama, onde Klaus me esperava. Sobre o meu travesseiro descansava uma caixinha preta com um laço branco.

— Um último presente. – ele disse.

Abri a caixa e encontrei um cristal, no formato de uma gota de chuva, mas maior do que isso. Era lapidado em mil facetas, o que garantia um ar de preciosidade. Na tampa, estava gravado: “48º48'17"N 2º7'15"E – 14:35” em letras prateadas.

— O que é isso?

— Você descobrirá amanhã. – ele me beijou. – Agora durma.

A aula de mitologia havia me ensinado a controlar minha curiosidade, então apenas deixei a caixa de lado. Descansei minha cabeça no travesseiro e cai em um sono profundo, que nem mesmo me custou uma ida ao inferno.

************

Acordei suavemente, levemente desorientada.

— Você prefere almoço ou café da manhã? – Klaus perguntou. Olhei para o relógio que marcava 11:37.

— Não sei. – respondi, saindo da cama e sentindo o peso daquelas longas horas de sono tinha sobre mim. Eu ainda me sentia cansada.

— O que significa aquela inscrição? – perguntei, lembrando subitamente do meu presente da noite passada.

— Coordenadas. – explicou ele, enquanto me oferecia uma xícara de café. Aceitei.

— Para onde?

— Você terá que descobrir.

Despertei a minha Psiquê interior e fervi de curiosidade, o que me levou a pesquisar tais coordenadas rapidamente no meu celular. Levantei os olhos, surpresa.

— Vamos para Versalhes?

Klaus olhou para o relógio e me disse sorrindo.

— Sim. E é melhor nos apressarmos.

***********

— Se precisamos estar lá dentro pontualmente às 14:35, você deveria ter me acordado mais cedo.

Não importava onde fôssemos, Paris estava sempre lotada, sempre viva, como se suas ruas fossem veias pulsantes, e as pessoas fossem o seu sangue.

— Só precisamos de alguns momentos.

E então Klaus utilizou-se de todo o esplendor de sua natureza vampiresca e fez com que todos os turistas fossem mantidos do lado de fora do Palácio de Versalhes, devido a uma manutenção de emergência.

Nós entramos e eu desejei que ele o tivesse interditado pelo dia inteiro. O Palácio de Versalhes era deslumbrante.

— Eu adoraria morar aqui. – falei.

— Sofisticado, mas solitário, acredite. – disse ele. Nem mesmo perguntei se ele já havia morado aqui em algum momento, o que claramente acontecera.

Ele abriu uma porta e esperou que eu seguisse em sua frente. Quando adentrei a sala, fiquei boquiaberta.

— A Galeria dos Espelhos. – sussurrei.

— Agradeça aos Duques d'Orleães por esta maravilha. – ele disse. – E por este presente, principalmente.

Ele indicou um pequeno gancho no alto da janela, que teria passado despercebido por mim, caso ele não o tivesse mostrado.

— Trouxe o cristal?

Abri a bolsa e retirei o cristal, entregando a ele, reparando pela primeira vez no buraco que existia em uma de suas pontas. Klaus colocou-o no gancho, e ele pareceu encaixar perfeitamente, como se tivesse sido feito para estar ali. A altura da janela não foi problema para ele, um vampiro.

— Agora é só esperar.

O relógio marcava 14:28. Suspirei, pois nem havia percebido que quase havíamos nos atrasado. Ele entrelaçou seus dedos nos meus, e ambos ficamos olhando para o cristal no alto da janela.

Então eu percebi por que havia um horário específico para estarmos ali. Naquele local o cristal não recebia nenhum raio solar, mas estava próximo disso. Quando o horário estipulado se aproximou, os raios de sol começaram a atingi-lo, levando apenas um minuto, às exatas 14h:35min, para preenchê-lo completamente.

A luz do sol através do cristal se fracionou em milhares de pequenos arco-íris, como se cada faceta fosse um prisma. Este brilho foi refletido pelos espelhos da sala, e em questão de segundos não havia um único ponto do ambiente que não estivesse coberto com aquele brilho. Era mágico.

— A cunhada do rei dizia que era um lembrete de que até mesmo as pessoas mais desacreditadas poderiam criar coisas fantásticas, se fossem estimulados pela força correta. Assim como este pequeno cristal pode criar este grande espetáculo se exposto à luz certa.

Eu estava sem palavras. Era realmente um espetáculo fantástico. Klaus pegou minhas mãos e me fez olhar para ele.

— Lembre-se disso, Caroline. Lembre-se disso para sempre.

— Eu amo você. – falei.

— Lembre-se disso também. – ele falou, e então me beijou longamente. – Acho que nossa manutenção de emergência acabou.

Esperei no magnífico jardim do Palácio enquanto Klaus fazia com tudo voltasse ao normal, deixando alguns turistas extremamente irritados. Ele me encontrou enquanto eu caminhava despreocupadamente roçando meus dedos pelas flores.

— No que está pensando?

Suspirei, tentando dar uma ordem lógica aos meus pensamentos.

— Estava pensando em como minha antiga vida parece distante e descabida. – confessei.

— Por que pensa assim? - questionou ele, com uma leve preocupação no olhar.

— Eu estou pensando que, neste momento, eu deveria estar me preocupando com aspectos práticos da minha vida, como estudos, emprego e tudo o mais. Ou deveria estar procurando meus amigos para saber se eles estão bem, ou se não estão metidos em problemas.

— Você sente falta de tudo isso? – agora a preocupação era nítida.

— Sim e não. – falei, sem saber explicar. – Sinto falta de minha mãe e de meus amigos, mas não sinto falta de minha antiga vida como achei que sentiria.

— É uma simples ecdise, Love.

— Como é?

— Ecdise é a troca do exoesqueleto. Quando um inseto precisa crescer, e seu exoesqueleto já não mais lhe serve, o oprime, ele precisa se livrar daquela armadura. Isso faz com que ele cresça e desenvolva um novo exoesqueleto. Nós também passamos por isso, de maneira metafórica, é claro. Pode chegar o momento em que nossa vida já não mais nos serve, e precisamos nos livrar do que nos oprime para poder crescer.

— Não tem nada de simples nisso. – constatei.

— Não. Não há.

*********

Estando em Paris, é obrigatório visitar a Torre Eiffel. Assim sendo, seguimos para lá quando deixamos Versalhes. No caminho, compramos algumas coisas para realizar um piquenique por lá.

Eu me senti diminuída perto da Torre Eiffel, mas a amei logo que a vi. Era magnífica, imponente. E ali, embaixo dela, estendemos uma toalha e compartilhamos uma garrafa de vinho, ouvindo um homem tocar violão próximo a nós. Quando o sol começou a se pôr, Klaus levantou-se.

— Levante. Você precisa ver isso. – ele falou, estendendo sua mão para mim. Peguei sua mão e levantei.

Conforme a luz do sol desvanecia, a Torre Eiffel começou a se acender e a mostrar um fantástico show de luzes que iluminou a noite parisiense. Era de tirar o fôlego.

— Vamos subir?

— É claro. – assenti.

Se lá embaixo a vista era maravilhosa, não havia palavras para descrever o que se via do alto da torre. Era possível ver Paris de um modo único, e mesmo à noite, era fantástico. Klaus aproximou-se de mim, em silêncio, deixando-me absorver aquela paisagem incrível.

Quando olhei para ele, vi que ele brincava, distraído, com uma chave em um cordão, que ele trazia ao redor do pescoço. Eu não a havia notado até então.

— Outro cadeado na Pont des arts? – perguntei, apontando para a chave.

— O quê? – disse ele, sem perceber que estava brincando com a chave. – Não, isso foi um presente de um grande amigo meu, Émile Nouguier.

— Quem é este?

— Um dos engenheiros responsáveis pelo projeto de execução da Torre Eiffel. – explicou ele. – Um homem extraordinário.

— Pela grandiosidade desta torre, devia ser mesmo. – concordei.

— Nós éramos bons amigos. Ele era um dos poucos que sabia o que eu era, e aceitava este fato.

— Ele sabia que você era um vampiro?

— Sim, e nunca se importou com isso. – não pude deixar de notar a nostalgia em sua voz. – Émile ficou completamente envolvido com este projeto na época, o que o fez perder um amor que ele havia encontrado. Estávamos neste exato local, a Torre estava prestes a ser inaugurada, quando conversamos sobre isso.

— Paris é a cidade dos apaixonados, mas isso não significa que não guarde alguns corações partidos. – ele riu de minha observação.

— Ele falou sobre o amor, e como havia se tornado um sentimento raro no mundo, e como eu tinha sorte de ter uma eternidade inteira para encontrá-lo. Eu falei que a eternidade não garantia um amor verdadeiro, ainda mais para uma criatura como eu.

Eu tentei corrigi-lo, mas ele não permitiu.

— Émile era um eterno apaixonado e não aceitou minhas afirmações, e me pediu que voltasse para este mesmo local no final do dia seguinte. – Klaus parecia distante. – Quando cheguei aqui ele me disse que temia pelo futuro da Torre, e que ela pudesse ser demolida algum dia, o que quase aconteceu anos depois.

— Porque alguém iria querer demolir o cartão postal mais famoso do mundo? – questionei.

— Ela não foi bem aceita quando construída. Émile ficaria orgulhoso dela hoje. – pelo tom de voz, eu poderia afirmar que Klaus estava orgulhoso também. – Ele disse que a torre seria um símbolo e uma prova de que o amor verdadeiro ainda existe e pode ser encontrado. Disse-me que, enquanto a torre estivesse de pé, teríamos esperança de encontrar um amor verdadeiro.

— E então me deu isso. – continuou ele, tirando a chave do pescoço. – Fez-me prometer que eu nunca desistiria da busca por um amor verdadeiro, e quando o encontrasse, deveria voltar para cá e utilizar isso.

Fiquei olhando para a chave, tentando entender como isso poderia representar o amor verdadeiro que deveria ser buscado. Então Klaus procurou em um ponto do chão, tão camuflado que ninguém nunca poderia ter notado, e destruiu uma pequena chapa de ferro que, agora eu conseguia ver, destoava de todo o resto. Ali, inseriu a chave e abriu um pequeno compartimento inserido na torre.

— Ele disse que abria o coração da Torre Eiffel. – sussurrou Klaus, tirando de lá dentro uma pequena caixa empoeirada e gasta. Então voltou-se para mim. – Eu mantive minha promessa, Caroline. Não desisti, e agora aqui estou.

Eu fiquei em silêncio.

— E por mais que eu duvidasse que este momento chegaria algum dia, eu fico feliz que tenha chegado, e ainda mais feliz por estar aqui com você. Neste momento, eu sou o homem mais afortunado deste universo, Caroline. É difícil de acreditar que, apesar de tudo, eu encontrei um amor verdadeiro. Você me mostrou um mundo novo, belo e inocente. Você é tudo o que eu precisava em minha vida, e precisarei para sempre.

Klaus apoiou seu joelho direito no chão e eu senti meu coração parar.

— Caroline Forbes. – ele abriu a pequena caixa e lá dentro estava o anel mais lindo que já vi em toda a minha vida. – Você quer se casar comigo?

E ali, sob as luzes da Torre Eiffel e sob a benção de Émile Nouguier, eu simplesmente soube. Eu soube que por mais que ele se visse como Frollo, ele sempre seria o Quasimodo, cuidando com tanto carinho de Esmeralda. Soube que a curiosidade de Psiquê a fez passar por provas e tarefas impossíveis, mas ela foi recompensada com um amor eterno. Eu soube que Klaus era um pequeno cristal que nunca fora exposto à luz correta.

Eu soube que o amava como nunca amei ninguém.

— Eu aceito.

***************

Acordei com o toque insistente do telefone.

— Ignore. – reclamei, revirando-me na cama.

— É Elijah. – disse Klaus, igualmente irritado. – Irmão?

— Klaus, você precisa voltar para casa.

— Por quê? – a preocupação na voz de Elijah me fez acordar totalmente.

— Há algo errado com Henry.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Queridos, este é o anel: http://imguol.com/c/entretenimento/2014/07/01/album-aneis-de-noivado-vintage-1404222891779_956x500.jpg
Daí vocês vão pensar: "Tão moderno para ficar tanto tempo na Torre Eiffel..." Mas, a Tiffany revolucionou os anéis, criando este famoso solitário cravado com seis garras em 1886, e a torre foi inaugurada em 1889. Viram só?! Este capítulo exigiu um bocado de pesquisa. ;)

Espero que vocês tenham gostado de ler tanto quanto eu gostei de escrever este capítulo.
Fiquei muito feliz com a quantidade de comentários que recebi no capítulo anterior! Muito obrigada a todos que comentaram, favoritaram e acompanham a fic.
Se você leu até aqui, todo meu amor para você.

Até o próximo capítulo!