Tudo se Ajeita, menos a Morte escrita por Kam_ted
Algo implícito estava ali nos corpos dado a vida.
Um exagerado, louco e agora carente. O outro reservado, morando na solidão que lhe fora dada como um dom que este sabia discernir.
Uma noite Cazuza sonhou que estava no Arpoador, havia estrelas e uma lua crescente, estava sentado de frente o mar e então viu uma sombra branca se aproximar pelas águas. Cazuza ainda sorria de curiosidade mas sentiu o corpo tremer ao ver quem era na luz branca: um homem vestido de branco acenava para ele, quanto mais nítida a sua imagem ficava mais ela diminuía, diminuía, diminuía até se dissipar feito espuma no mar.
Acordou com uma sensação de tremor, o suor molhava o pescoço. Levantou, bebeu água, olhou a hora, ainda era cedo. Desceu o elevador e saiu correndo à areia do outro lado da rua. Sua imagem numa luz branca diminuindo até se dissolver no mar o deixava ainda tenso. Parou de correr no toque gelado da água do mar. Apesar de todos os remédios testados e comprovados que deixaria o vírus da AIDS fraco sob seu corpo, o medo de morrer ainda o apavorava feito sirene que toca subitamente.
O Ar correu frio debatendo no seu rosto. Perguntou-se, como quem acorda, o que estava fazendo ali. Algo doía inerte por dentro, deu-se conta da dor contraída no peito num gesto que não existia. Deitou-se na areia branca olhando o tapete estrelado que se estendia no horizonte negro. Mas amava e era novo, feito mais uma criança nova que se instala no coração de uma mãe. Um amor que aconteceu a pouco tempo, um amor que acontecia no ato de fechar os olhos e sentir a paz invadir por todos os lados, entrando como o ar para circular dentro dos pulmões. Lembrou de um trecho do Pela Noite mas esqueceu as palavras que compunha a frase. Caio Fernando Abreu. Não conciliava nome com imagem. Caio estava longe dos personagens, de cada frase, da moral subliminar que ficou. Remoto o prazer que lhe dera numa noite sóbria. Sob as pálpebras, águas verdes, diamantes, não soube comparar, continuavam a encará-lo.
Levantou ligeiro apertando a areia dentro da mão num sinal de angústia.
Lucinha regulava não só remédios e alimentação mas também a vida do filho. Tocou a campainha duas, três, quatro vezes mais. Ouvia as chamadas no telefone que ligava. Numa demora significativa Cazuza abriu a porta só de cueca com o cabelo desgrenhado e o rosto amassado.
- Boa tarde! Disse irônica e ligeiramente preocupada, dando um beijo no rosto do filho.
Cazuza foi ao banheiro e deixou a mãe falando sozinha enquanto preparava suco de laranja.
- Seu Nelson disse que você saiu de madrugada correndo pela rua... Deixou reticências para que o outro completasse, coisa que não o fez.
- E voltou duas horas depois. - Ele também tá me regulando? Falou com a voz alterada numa falsa raiva. - Acordei assustado e corri pra praia. Uma das vantagens de morar em frente de uma... O ar tava ótimo, à noite tava linda...
Abraçou a mãe encostando a cabeça no ombro dela que estava sentada ao seu lado na mesa.
- Minha passarinha... Pausou a frase. Lucinha o beijou na cabeça. - Tenho sentido uma vibração maravilhosa e indefinível. Não consigo descrever... E só sinto quando estou só.
Lucinha era em parte uma confidencial. Amiga, independente de ser mãe.
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