A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 25
O que dizem as flores


Notas iniciais do capítulo

Prometo que a enrolação vai acabar e que eles vão logo atrás das memórias da Lorena, mas foi uma cena linda e que merecia estar aqui. Mas façam suas apostas sobre como vai ser essa jornada ao mundo dos mortos. Espero que gostem.
Beijos.



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A pequena canoa de madeira estava jogada nos fundos da casa, como eu me lembrava. Um pouco de líquem e alguns cogumelos haviam se desenvolvido em seu casco, mas não era nada demais. O importante era que flutuasse, então chequei se havia buracos na estrutura. Apesar de velha, estava inteira. Com algum esforço, a canoa de lado, apoiando-a numa pedra para se manter nessa posição, e com um trapo espanei a sujeira que o tempo acumulara por dentro. Depois, coloquei-a com sua boca para cima.

Byakko chegou em seguida, trazendo o corpo de Dorothea em seus braços. Peguei o cobertor que eu trouxera para fora e o estendi no interior do pequeno barco. Byakko se aproximou e ajoelhou ao lado da canoa, depositando o corpo cuidadosamente lá dentro, primeiro suas pernas magras, depois seu torso e sua cabeça, que ele aninhou sobre o tecido. Em seguida, ajudou-me a cobri-la do pescoço para baixo com um segundo cobertor. Ele pôs a mão aberta sobre o peito imóvel e, quando a recolheu, uma de suas tímidas papoulas brancas repousava sobre o mesmo lugar.

— Por quê? – fui suscinta, mas ele foi capaz de compreender minha pergunta, mesmo que vaga.

— A natureza tem sua própria magia. O poder dessa florzinha, que parece simples e insignificante, é o de afastar o medo e tirar a dor. Lembro-me de me dizerem, uma vez, que seu leite é capaz de fazer até a morte parecer apenas um sonho... – ele piscou os olhos demoradamente. – Os homens sempre me fizeram crer que um sonho é um bom lugar para se visitar.

— Não é estranho oferecer algo assim para quem não sente mais nem medo e nem dor?

Byakko sorriu com pesar.

— Eu nunca disse que as flores eram para os mortos...

Ver o barquinho partir com o corpo e os pertences de Dorothea deu um nó em minha garganta já seca. Os mortos não eram enterrados na ilha pois o solo era muito rochoso; onde não havia pedras, havia florestas ou pequenos cultivos que nos alimentavam. Ao invés disso, os mortos eram colocados em barcos e levados ao mar, onde esperava-se que seguissem para o oeste, direção em que o mundo dos mortos era sempre retratado. Agora, ciente de que eu pessoalmente iria para lá, perguntava-me se as histórias estavam certas, e se o caminho realmente era além-mar.

As ondas batiam em meus joelhos e o frio se alastrava pelo meu corpo, mas eu me recusava a partir até que a canoa sumisse no horizonte, finalmente, junto ao sol que se punha. Com a chegada da noite e graças às minhas roupas ensopadas, eu precisei me render e voltar à praia. Byakko se levantou ao ver eu me aproximando, depois de esperar pacientemente por minhas horas de luto. Ele tirou sua capa e me envolveu nela ao perceber meus lábios trêmulos e arroxeados. O tecido estava morno e exalava seu cheiro; ou talvez fosse ele me abraçando, com sua pele fervendo sobre a minha.

— Você precisa ir para casa descansar – ele disse.

— Não quero voltar para aquela casa vazia... Trouxe todas as minhas coisas comigo para que não precisasse voltar – apontei a sacola cheia que eu deixara na areia.

— Então onde pretende viver a partir de agora?

— Achei que íamos partir atrás das minhas memórias – retruquei.

— Nós vamos, mas não antes de você descansar – seu olhar era intransigente. – E você precisa de um lugar abrigado do tempo, ou vai adoecer

Byakko pegou a sacola com meus pertences e começou a caminhar. Quando viu que eu não o acompanhava, disse:

— Vou ter que carregá-la até lá?

Comecei a caminhar na direção oposta.

— Onde você vai?

— Vou dormir na sua casa.

— O quê?! Que casa? O templo foi destruído – ele gritou, correndo para me alcançar.

—Ah, tudo bem, eu não me importo com uma pequena bagunça – ironizei.

— Você tá falando sério? – Um olhar meu foi o bastante. – É, você tá falando sério... – Ele suspirou.

— Eu tenho roupas secas na sacola – comentei.

— E o que mais tem aqui dentro? – Disse, jogando-a sobre seus ombros.

— Meus tesouros...

Chegamos ao templo, e apesar de nos oferecer algum abrigo, as pedras de que eram feitas as paredes deixavam o ar tão frio quanto a água do mar. Os móveis haviam se tornado pilhas de cinzas, apenas o que era feito de pedra resistira, então pelo menos tínhamos paredes e alguns pedaços de teto para nos proteger.

— Você não tem onde se deitar aqui – Byakko pontuou.

— Tenho certeza de que o chão não vai a lugar algum. Comece a encarar o fato de que, se vamos ao mundo dos mortos, certamente não haverá camas macias no caminho até lá.

Ele fez uma careta.

— Não é comigo que estou preocupado.

— Eu não estou nenhum pouco preocupada comigo— rebati. – Não vai ser isso que vai me matar...

Caminhando no escuro, acabei por chutar um archote caído no chão. Peguei-o para ver se podia ser aceso, mas ele estava se estopa e óleo, e nem eu teria como produzir uma faísca. Joguei-o de lado.

— Queria poder fazer fogo mágico das minhas mãos como as pessoas nos meus sonhos... Pelo menos eu poderia ver por onde caminho.

— Não é difícil – disseram, as vozes soando de dentro da minha bolsa.

— Mas o quê?! – Byakko a encarou com surpresa, abrindo-a em seguida. Um e Dois o encararam lá de dentro.

­– Oi – disseram em uníssono.

— Isso explica o porquê de tanto peso... Vocês estavam aí o tempo todo?

— Sim – respondeu Um.

— E por quê não disseram nada?

— Nós caímos no sono... – disse Dois.

— Eu disse que não pretendia voltar... – expliquei. – Não ia abandonar os dois lá.

Caminhei até o painel em baixo relevo que ficava atrás do altar de pedra. Lá o teto parecia firme e não havia correntes de ar, então era o lugar menos frio de todo o salão; infelizmente, não podia se dizer o mesmo do chão de mármore, que me causou um arrepio quando me sentei sobre ele.

— Você ainda precisa de roupas secas – Byakko lembrou, tirando uma muda de dentro da minha sacola e me entregando.

Então, levantei-me novamente e fui me trocar no quarto, o único como além do grande salão. Era só um vestido leve e curto que dificilmente me aqueceria, o que me levou a me envolver ainda mais na capa pesada de Byakko. Quando voltei ao salão, ele estava sentado com as costas apoiadas na parede ricamente decorada, uma perna esticada e a outra dobrada em direção ao peito, onde ele apoiava seu braço, com o rosto baixo e o olhar perdido. À sua esquerda ele deixara no chão a minha sacola, e Um e Dois se apoiavam nela; eles detestavam ficar caídos, olhando para o teto. Minha aproximação deve ter atraído a atenção de Byakko, porque ele levantou seus olhos até mim e sinalizou para que eu sentasse ao seu lado.

— E agora, o quê acontece? – Perguntei.

— Você tem que descansar... E amanhã vamos atrás das suas lembranças.

— É muito longe...? – Perguntei, subitamente insegura.

Ele sorriu.

— Você já se perguntou por que mandam os mortos e seus barquinhos para o oeste?

­– Dizem que é naquela direção o mundo dos mortos.

— Certo. Mas esse costume não surgiu aqui, na ilha. As pessoas que a habitam atualmente descendem de pessoas que vieram do continente, da cidade de Madal, em específico. E os madaleses sabiam que um dos caminhos para o mundo dos mortos era para o oeste, através do mar, então eles começaram a mandar seus cadáveres de barco nessa direção. Mas o que está a oeste de Madal, atravessando o mar?

— A Ilha de Jada.

— Exatamente – ele disse. – Uma das entradas para o mundo dos mortos sempre esteve aqui, na ilha. Mas ás vezes uma tradição se estende por tantos séculos que a história por trás do costume se perde... Então, quando os madaleses chegaram à ilha, eles continuaram sua tradição, sem perceber quão perto estavam das portas para o Outro Lado.

— Mas então onde fica?

— Numa caverna, subindo um pouco a montanha, seguindo Tâmi. Não deve levar mais do que algumas horas de caminhada para chegarmos lá. Mas você já deve ter percebido que essa é a parte fácil...

Assenti.

— Mas nós sabemos quem conseguiu entrar lá – eu disse, encarando Um e Dois com um sorrisinho cúmplice nos lábios.

Eles tentaram evitar meu olhar, mas falharam.

— Eu não me espelharia no nosso exemplo se fosse você – disse Dois.

— É, a gente não voltou exatamente ileso dessa. Nós nem temos mais corpos! – completou Um.

— Nem nomes...

— Pelos Espíritos, vocês são deprimentes... – critiquei.

— É melhor pedir por outra coisa, porque os Espíritos não vão estar do seu lado.

— Eles não gostam de ter mortais xeretando o mundo deles – Um explicou.

— E vão tentar te impedir de todas as formas que puderem. Por isso é tão difícil atravessar para o Outro Lado.

— E ainda mais difícil sair...

— Quando chegarmos ao Mundo dos Mortos nosso único problema será Yasuko... Não há outros Espíritos lá além de meu irmão – disse Byakko, interrompendo o falatório das aldrabas.

Suas sobrancelhas estavam cerradas e sua expressão era severa, mas em seus olhos havia... tristeza.

— Yasuko é problema meu – concluiu. – Não deixarei que ele encoste em você...

— Por que será que eu tenho a impressão de que vocês não vão simplesmente conversar, trocar lembranças da infância, brindar aos velhos tempos...? – Ironizei.

— Alguns Espíritos não são bons conversando... – lamentou Byakko.

— Algumas pessoas também não – tentei amenizar a situação.

— Vocês não destroem cidades ou causam catástrofes quando brigam – Byakko rebateu.

Eu ri.

— Você ficaria surpreso.

Um bocejo me tomou, de repente, fazendo minhas pálpebras pesarem e o cansaço dominar meu corpo.

— Você precisa descansar – Byakko repetiu.

— Eu sei... – disse, contrariada.

Ajeitei a capa dele envolta de mim para que minha pele não tocasse o mármore gelado, e deitei com minha cabeça em seu colo. A surpresa o fez enrijecer por um segundo, até que ele aceitasse o fato de que eu não ia me levantar até a manhã seguinte. Então, Byakko pôs sua mão sobre a minha cabeça, primeiro tocando minhas têmporas, e depois meu cabelo. Ele tentou acaricia-los, mas era desajeitado e os fios, mesmo curtos, se emaranhavam em seus dedos, então ele desistiu. Peguei sua mão, que ele largara ao lado de seu corpo, e a recoloquei sobre minha cabeça.

— Tudo bem – eu disse. E lhe mostrei como fazer, acariciando no mesmo sentido dos fios.

Depois de alguns minutos, ele pegou o jeito. Uma pena eu ter adormecido muito antes disso.


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