A Pele do Espírito (versão antiga) escrita por uzubebel


Capítulo 24
O sol daqui de cima e a alma lá em baixo




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Emoções se pareciam com verdadeiras explosões de energia, que deixavam meu corpo esgotado e minha mente enevoada. Inevitavelmente eu acabei por cair no sono, mesmo que precisasse de muito pouco tempo para me recuperar. Quando despertei, alguns minutos depois, Lorena ainda estava adormecida e me abraçava com força; sua cabeça descansava em meu peito, seus dedos tocavam levemente meu maxilar e suas pernas estavam sobre as minhas. Teria dado um pulo e provavelmente a acordaria, se não tivesse imediatamente me lembrado de tudo o que acontecera. Tudo o que eu dissera. E de repente a única coisa em minha mente era o fato de ela ainda estar comigo. E tão perto...

Nem precisei esticar meu braço para tocá-la. Afastei o abundante cabelo escuro de seu rosto, fitando suas feições relachadas. Minha mão escorregou para seu pescoço arqueado, onde eu vi uma artéria pulsar lentamente, mesmo na penunbra. Passei os dedos por toda a sua extenção, sentindo o ritmo do sangue, enquanto algo dentro de mim se agitava. Quando a artéria mergulhou para baixo das roupas de Lorena, eu me interrompi. O que eu estava fazendo?"

De repente, ela se mexeu e gemeu baixinho, e eu congelei bem onde estava. Lorena começou a despertar, espreguiçando seus membros sobre mim desajeitadamente. Ela esfregou seus olhos com gestos preguiçosos e disse:

— Oi – e bocejou em seguida. – Seu coração bate tão rápido... e tão baixinho...

Então ela estacou, finalmente sentindo o gosto das palavras que haviam deixado sua boca.

— Seu coração... – repetiu, e num átimo pôs sua mão sobre o meu peito, para se certificar de que ouvira bem. Seus dedos eram quentes contra a minha pele, me incendiando mesmo através do tecido, e por um instante algo dentro de mim se ressentiu das roupas que eu vestia.

— Aconteceu com você – ela concluiu. – Você se tornou mortal... Mas como...?

Lorena ia tirando sua mão, quando a peguei e pus de volta sobre meu peito, inclinando-me em sua direção.

— Foi você... – eu disse, com nossas testas quase se tocando, nossos olhares fixos um no outro – Foi você quem me deu esse coração.

Lorena tocou meu rosto delicadamente com a outra mão, quase como se temesse que eu fosse desaparecer num sopro de fumaça; como se temesse que eu pudesse partir...

— Então é por causa disso o calor da sua pele... E a respiração acelerada...

De repente, uma estranha determinação a dominou; ou talvez fosse a consciência que as peças se encaixando em sua cabeça lhe traziam.

— Byakko..., você me ama? – perguntou, sem estremecer a voz um segundo sequer.

Sua mão firme e gentil ainda segurava meu rosto e, no entanto, não era realmente necessário. Não importava, pois a estranha magia que ela possuía, e que escapava completamente de minha compreensão, não me permitia ver outra coisa que não ela. Apenas ela...

— Sim... – eu disse, com a respiração acelerada e o coração em suas mãos, a imagem perfeita do que eu já sabia e lhe disse:

— Meu coração é seu.

Seus lábios se esticaram, fechados, guardando dentro de si uma breve risada contente. Seu olhar se perdeu em pensamentos por um breve momento, e em seguida voltou a se focar em meu rosto, passando pelos meus olhos e descendo em seguida. Sua mão em minhas bochechas recuou e repousou em meu ombro, enquanto seu rosto, já tão próximo do meu, transpôs a distância que os separava e nossos lábios se tocaram. Era uma sensação nova, surpreendente e inexplicável; como algo assim poderia agitar meu corpo inteiro dessa maneira, com apenas um leve toque? E, ao mesmo tempo, eu me sentia inflado, leve, feliz, como se todos aqueles sentimentos fossem me tornar capaz de flutuar acima do chão, enquanto me preenchessem daquela maneira. Enquanto a boca dela os soprasse para dentro de mim.

— O que foi isso? – perguntei à Lorena, depois dela afastar seus lábios dos meus.

— Um... beijo... – ela engasgou e pôs as mãos sobre o próprio rosto corado pelo seu sangue, que fervia de constrangimento. – Você nem sabe o que é um beijo. Em que eu estava pensando? Que vergonha...

Segurei seus pulsos e puxei suas mãos para perto do meu peito, revelando seus olhos.

— O que significa?

— O-o que?

— O beijo... – repeti. – O que significa?

— Que eu amo você – ela respondeu.

Uma chama se acendeu em meu peito como resposta àquelas palavras, como o sol aquecendo o mundo quando a madrugada termina. Como um novo começo E o que quer que fosse aquela agradável sensação que dominou meus sentidos e minha mente, fez com que eu me debruçasse sobre Lorena, com minha mão apoiando seu rosto, trazendo-o até o meu, para que nossos lábios se encontrassem e eu, enfim, retribuísse seu beijo. Da primeira vez, o gesto fora tão repentino que embaralhara meus pensamentos. Mas, dessa vez, eu estava consciente de todas as sensações; sua boca macia, sua respiração entrecortada, a temperatura de sua pele se elevando ligeiramente. Quando me afastei, Lorena continuava vermelha, mas não voltou a cobrir seu rosto com as mãos.

— O que foi isso? – Ela perguntou.

— Significa que eu te amo.

***

Subitamente, Byakko ficou sério. Ele se afastou um pouco, e disse:

— Tem mais uma coisa que precisamos conversar antes do amanhecer... Suas memórias.

— Por quê? – Eu me sentei de pernas cruzadas.

— Porque eu prometi para mim mesmo que as devolveria a você. E porque não posso fazer isso sozinho... Se você quiser mesmo ter suas lembranças de volta, vai ter que vir comigo. E será perigoso...

— Desde que você admitiu que tirou minhas memórias, eu sempre pensei que minhas elas estivessem com você.

Ele se inclinou em direção aos próprios joelhos, com a mão massageando a própria nuca.

— É um pouco mais complicado que isso...

— Então me diga o que é – eu disse, encarando-o incisivamente.

Byakko retribuiu meu olhar, suspirou na tentativa de exalar toda a tensão em seu corpo, e ajeitou sua postura.

— Manipular mentes nunca esteve entre as minhas habilidades. Diferente de Mab e de alguns outros, eu não sou capaz de entrar aqui – ele tocou minha testa com a ponta de seu dedo. Só que, diferente deles, eu era um dos únicos capaz de manipular algo muito, muito especial...

— Almas...?

— Sim. Nagi é como nós, Espíritos, chamamos; ou Nyia, se estiverem ligadas a um corpo físico. Eu... estou devaneando ­– ele se desculpou. – O que eu quero dizer é que eu continuo tão incapaz de tirar algo da sua mente quanto eu sempre fui. Então, anos atrás, eu tive que lhe tirar as memórias de um jeito nada convencional, mas do único jeito que eu seria capaz de fazê-lo...

— Como?

— Separando da sua alma o pedaço que continha suas memórias...

Devo ter ficado completamente branca e paralisada, porque Byakko começou a tagarelar novamente:

— Mas foi um pedaço pequeno... Quer dizer, você ainda é você, não é? Eu nunca tinha feito isso antes, não sabia como seria, ou se sua alma ainda teria algum tipo de conexão com esse pedaço que faltava, então o levei para o mais longe possível. Eu...

Pus a mão sobre seus lábios, interrompendo-o.

— Você não precisa se justificar, tá bem? Só me diga o que eu preciso saber.

Ele segurou meus pulsos, suspirando, e levou minha mão até sua têmpora.

— O pedaço da sua alma com suas memórias está no mundo dos mortos... – Byakko disse. – Mas sozinho eu não posso trazê-lo de volta.

— Por quê?

— Porque você precisa fazer as pazes com seu passado, o que significa que vai precisar encarar ela...

— Ela?

— É... Você vai entender quando vir. Apesar de ser um pedaço seu, vocês passaram tempo demais separadas. O bastante para ela começar a desenvolver uma personalidade difícil...

— E o que acontece se continuarmos separadas?

— Ela deixa de ser você... – ele me encarava. –Você não parece muito preocupada.

— Não é isso, eu só... Estava pensando em Dorothea. E estava pensando em morrer. É mais difícil tirar isso da sua cabeça quando você sabe que tem uma data-limite e sabe quando será.

— Nós ainda podemos pensar numa saída...

— Não... A última coisa que quero é passar meus últimos dias vendo você tentando corrigir os erros dos outros de novo e de novo. Se ter minha alma vai fazer as matanças de Isméria acabarem, tudo bem. É um fardo imenso saber que outra pessoa inocente morreu em seu lugar... Se não for pedir demais, só quero morrer inteira... e levar todo o meu passado comigo.

Byakko anuiu.

— Esse erro foi meu... Você está mesmo disposta a ir até o mundo dos mortos para ter suas memórias de volta?

­– Sim... E se falhar, Isméria pode ir lá mesmo me buscar. Gosto da ideia de atrapalhar seu cronograma ­– sorri.

Byakko se levantou.

— Está amanhecendo.

Olhei para o céu, mas não havia nem sinal do sol.

— Como você sabe?

Ele apontou o horizonte atrás de mim, onde um pequeno fiapo de luz avermelhada surgia timidamente.

— Você vai adorar ver o nascer do sol daqui de cima.


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