A Lenda dos Corvos escrita por Matheus Hipolito


Capítulo 3
Capítulo 3 - Facas em Mesas




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Capítulo 3

Passei a noite em frente ao computador com uma caneca de um líquido preto e amargo na mão, que minha mãe fez questão de preparar para mim: café.

Nunca fui de ficar acordado mais do que de costume, até porque eu não conseguiria acordar no outro dia, mas hoje foi uma exceção, eu precisava me informar sobre o que eu estava fazendo, sobre com quem eu iria trabalhar. Corvos parecem pássaros comuns, mas precisam ser estudados.

Descobri por mais que seja difícil de acreditar que, corvos são brincalhões. Que levam a vida na travessura, o que me deixou um pouco estranho depois que eu li. Eles podem ser até amigáveis com o Sr. Blaker, mas comigo não foram.

Corvos são inteligentes, e se consolam entre si, quando algo acontece, também tem memória boa, e podem gostar de alguém como nós. E quando jovens, formam gangues.

Tudo isso estava escrito na minha frente, mas é algo difícil de acreditar. Não estou subestimando eles, mas quando você olha pra um corvo, a primeira coisa que você pensa, é que ele representa a morte, ou algo ruim. Não que sejam inteligentes ou tem memória boa, isso até me deixa confuso, não sei em o que acreditar.

Deitei-me na cama com nem um pingo de sono. Virei várias vezes, até sentir que o lençol que cobria o colchão se desprendeu, e eu levantei para arrumar.

Tudo estava apagado, somente a luz do corredor a esquerda do meu quarto estava acesa. Conseguia ouvir o barulho dos grilos e das corujas lá fora, que por sinal já tinha me acostumado, quase passavam despercebidos, mas ouvi algo que eu não era acostumado ouvir durante a noite, o barulho de alguém ou alguma coisa aterrissando no lado de fora do meu quarto. E o que me assusta mais, todas as corujas e grilos que eu ouvira a poucos segundos atrás, se calaram.

Ouço o farfalhar das folhas que sempre ficam no pequeno corredor do lado de fora da minha casa. Alguém está lá fora, arrastando-as por onde quer que está indo.

É claro que está vindo em direção ao meu quarto.

Sinto minhas pernas falharem, e a respiração ficar mais pesada. Meu coração parece querer sair pelo peito, rasgando a pele. Preciso avisar alguém, preciso avisar alguém agora.

Mas o meu ser não quer avisar ninguém. Ele quer caminhar até a janela e ver o que fez os grilos e corujas se calarem e as folhas rangerem sobre o chão.

Meu instinto é mais forte.

Caminho rapidamente até a janela, que parece ficar cada vez mais longe a cada passo que eu dou. Meu coração está disparado, e sinto que o ar que respiro, entra pelo nariz queimando. E quando chego na frente da janela, engulo em seco, e a abro com um só movimento.

E então, ouço os grilos e corujas retomarem seus musicais noturnos, como se nada tivesse acontecido.

Acho que é verdade, eu posso estar só pensando no que li essa noite, sobre os corvos. Mas tudo aquilo que eu li não me deixou com medo, só surpreso, não esperava ler aquilo.

Mas também tem a hipótese de que algum gato pode ter caído aqui no quintal e feito o barulho de aterrissagem, mas eu devia ter escutado algum miado, até porque...

Você ainda está acordado, Roger? Minha mãe entra no quarto escancarando a porta, o que me faz dar um salto e agarrar a janela com mais força. Meu coração que estava mais calmo, agora está mais acelerado do que nunca.

— Mãe — Digo, um pouco bravo — Meu coração é fraco, o.k?

— Já para cama — Helena diz — Quer chegar todo sonolento no seu trabalho, que começou ontem?

— Ta bom, mãe — Digo, revirando os olhos, não sou criança — Já passei dos 10 anos, sabia?

***

A escola não poderia ser mais chata e cansativa do que hoje, mas pelo menos, depois dos 2 horários com o Sr. Fligg, e mais 2 com a Srª Homensp, tive as duas últimas aulas vagas, e adivinha o que eu fiz? Dormi. Não como um anjo, porque as carteiras da escola são duras, mas dormi, ponto.

Martin me acordou bem na hora do almoço, e me perguntou porque eu estava com aquela cara de quem acabou de sair de uma máquina de lavar, e eu contei a ele sobre tudo o que eu tinha pesquisado sobre os corvos, naquela noite.

— Cruzes! — Exclamou Martin — Você fica acordado pra procurar sobre corvos?

— Foi só essa noite — Digo, achando engraçado a cara que ele faz enquanto eu falo — E, não vai me dizer que tem medo de corvos?

— Eu não disse isso — Ele fala — Só não acho eles os mais amigáveis pássaros que existem.

— Você sabia que lá na Nightmire Crowns, existe uma cela para eles? Não sei para que serve, mas descobrirei.

— E por favor, não me conte. — Martin se despede, e eu caminho em direção a Nightmire Crowns.

***

Não contei a Martin sobre o que eu ouvi naquela noite, ele me tacharia como um despachante de corvos louco, e com certeza, esse novo apelido iria pegar.

Fui de bicicleta até o trabalho, e deixei-a em um canto perto da entrada, no meio dos arbustos, onde ninguém iria ver.

Corri até a Nightmire Crowns, pois já estava atrasado, e me dou de cara com o Sr. Blaker.

— Está atrasado, Sr. Rood — Finalmente Gaspar tinha decorado meu nome, pelo menos o sobrenome, pois nos dois primeiros dia que eu havia o conhecido, ele perguntara meu nome umas 10 vezes, mas eu não me importava muito em repetir.

— Desculpe, Sr. Blaker... É que a escola fica longe daqui... Mas isso não irá se repetir. — Digo, o mais triste possível.

— Tudo bem, meu jovem. Não temos tempo a perder. Deixei seu uniforme na Sala de Controle — Sr. Blaker vira-se, e começa a mexer na caixa registradora da recepção, mas eu continuo parado, no mesmo lugar. — Vamos, rapaz.

— Sr. Blaker, onde fica a Sala de Controle? — Pergunto. Eu não sabia onde ficava essa sala de verdade, ele nunca a havia mencionado.

— Que cabeça a minha — Sr. Blaker ri — A Sala de Controle, é aquela ali — Ele aponta para aquela sala do lado esquerdo da escada que desce para o porão, onde fica aquela enorme mesa e aquele facão, e com uma licença pendurada que, com certeza, não é de Nova York.

— E por que ela se chama assim? — Pergunto, quase me desculpando por ser tão curioso, essa não é a minha tarefa aqui.

— Porque — Sr. Blaker não olha para mim. — É lá onde fica o controle da Nightmire Crowns.

— E porque fica lá? — Por favor, não se zangue.

— Porque todos os lucros vem de lá. — Ele diz — Ou você acha que vendemos corvos vivos?

Aquilo me arrepiou. Eu só podia juntar 2 + 2 pra saber disso, mas eu precisava da confirmação.

A Nightmire Crowns é uma matadora de corvos. E ela mata corvos, para faze-los entalhados. É um pouco óbvio isso agora, mas eu não sabia que o Sr. Blaker iria falar tão fácil assim.

Me dirijo a Sala de Controle olhando para baixo e sem perguntar mais nada.

***

Não sei o que é mais constrangedor. Minha avó vindo até minha casa para ver como eu estou indo na escola, em frente aos meus amigos, ou vestir esse uniforme cafona, que o Sr. Blaker me obrigou a usar. Eu definitivamente, nasci para ficar vermelho.

Estou usando um terno preto, com um blusa branca que, na verdade está desbotada, então digamos que ela é amarela. Uma calça que me pinica, e um sapato social que precisa ser polido. Além do meu cabelo estar todo penteado para o lado, pois o Sr. Blaker fez questão de arruma-lo para mim.

Não sou bonito, e com certeza agora, o Sr. Blaker confirmou isso para mim.

***

A primeira coisa que você irá ser encarregado aqui é o caixa. De terça e quinta, você terá que vestir esse lindo uniforme, e ficar aqui em frente a loja, limpando e polindo tudo, até que esteja brilhando, e de segunda e quarta, você vai cuidar dos corvos que ficam lá no fundo... — O Sr. Blaker fala tão depressa que quase não consigo captar todas as informações que ele diz.

— Senhor, mas e nas sextas? — Pergunto.

— Sexta-feira é o dia em que eu e você iremos trabalhar juntos...

— Trabalhar em o que? — Pergunto, curioso.

— Um trabalho especial, por isso só uma vez na semana — Gaspar diz — E não vamos estragar a surpresa.

— Mas e quanto a loja?

— Digamos que de sexta-feira, ninguém vem a Nightmire Crowns — Eu queria perguntar o por que, mas o Sr. Blaker começou a dar de ombros, como se dissesse que essa conversa acabou.

***

Caminhamos até chegarmos no topo da Nightmire Crowns, onde se concentrava os livros mais antigos, e maiores. Nessa parte, tinha uma pequena porta, onde eu só consegui entrar abaixando a cabeça.

O lugar era do tamanho do banheiro da minha casa, e era muito empoeirado, e quando abrimos a porta, uma nuvem de pó saiu de lá. Existia uma pequena janela, onde lá de fora, você consegue vê-la.

— Essa parte aqui é restrita a qualquer um, inclusive você — Disse Gaspar — Então não precisa limpá-los, ou vim ver qualquer coisa aqui. Não entre aqui, Sr. Roof.

— Sr. Rood — Corrijo-o, acho que terei que fazer muito isso, pelo menos por algum tempo.

— Que seja — Ele diz — Mas não entre aqui em hipótese alguma, mesmo que alguém entre na loja e peça algum livro daqui, não faça isso.

O que ele disse me deixou um pouco desconfiado. Quem iria entrar na loja e perguntar se eu poderia pegar um livro nessa sessão? Acho isso tão improvável, que assinto com a cabeça, e logo isso se desfaz em minha mente. Gaspar Blaker é um homem misterioso, e com certeza deve guardar aqueles livros com muito amor, por isso não quer que ninguém entre aqui. É, deve ser isso.

Ao sairmos, ele tranca a porta, e quando chegamos na recepção lá em baixo, ele guarda a chave embaixo da mesa. Não pude deixar de notar onde ele a tinha guardado. Talvez eu use-a em algum momento, quem sabe.

***

O resto da tarde fora tranquilo, pelo menos para a loja.

Eu fiquei atento a tudo. Ouvi o Sr. Blaker serrando alguma coisa, depois ouvi uma enorme batida de uma faca em uma mesa, e perguntei se estava tudo bem. Sr. Blaker me mandou relaxar, e que logo eu iria me acostumar com esses barulhos.

Acho isso difícil, mas se o Sr. Blaker diz, então tudo bem.

Nenhum freguês no meu primeiro dia na recepção.

Não fiquei feliz com isso, só quero ver nos outros dias, e no meu salário no fim do mês, até porque estou aqui para isso, pelo dinheiro.

***

Quase no final do expediente, ouço que a porta no final do porão foi aberta, e aquele barulho de gritos humanos invade meus ouvidos. Meu coração acelera, como ontem, mas não sei o que isso significa.

Mas quando a porta fecha, ainda ouço um grito bem baixo. Vejo que o Sr. Blaker entrou na Sala de Controle rapidamente, e segundos depois, ouço o mesmo barulho de faca batendo em mesa, e aquele pequeno grito, morre ali.


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