Legado de Semideuses! escrita por Lucas Lyu Santos


Capítulo 14
Poderio de um deus.


Notas iniciais do capítulo

"Corra! Fuja! Esconda-se!
A sombra das trevas está a solta!"



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Aquilo que eu chamei de pedra desde o começo revirou-se sobre o barro seco. O leve tremor de sua superfície arremessou uma camada de lama que foi absorvida pelo solo. Yokota por sorte conseguiu se desvencilhar da prisão em que sua mão direita estava, e quando recuou, sua boca tentou soltar palavras que não tinham. Assim como eu, o susto surrou-lhe a cara e raptou as palavras.

A cada segundo a incógnita criatura crescia e sua sombra se projetava grandiosamente em toda a arena. Sua desenvoltura se revelava friamente maligna; os segundos se tornavam pesarosos conforme o desabrochar de sua silhueta sinuosamente atraída pelas trevas nascia do barro.

Ela colocou as patas para o lado e senti um tremor sacudir todo o espaço quando elas tocaram o chão. As grandes unhas deixaram arranhões gigantescos na camada sólida da terra, garras afiadíssimas, tão assustadoras quanto à voracidade de sua força. Numa explosão de movimentos suas enormes asas se desembrulharam de suas entranhas escrupulosas. As lúgubres e escuras planadoras largas faziam jus ao sentimento que ela transmitia: medo. Ouve-se o estalar de ossos e as escamas enormes se mostraram notavelmente protuberantes, tal forma, ergueu-se completamente ao som de um grunhido assustador, contudo, abafado.

– Pelos deuses! Isso não é possível... – Lorenna havia recoberto sua consciência da forma menos indesejada possível; de olhos á um demônio milenar voador. – Cadmo o matou há muito tempo...

O rabo reptiliano girou em um ângulo completamente perigoso assim que ele ficou totalmente ereto. Ele fez uma rotação rápida e todo o corpanzil altamente pesaroso criou um tremor insustentavelmente incontrolável conforme ele se virava – Yokota esquivou-se desesperadamente. Visualizei as duas mãos largas e escrotas assim que elas tentaram rasgar o ar com suas unhas negras macabras. O focinho escuro estava coberto de barro, mas suas narinas queimavam em um fogo vívido que era inflamável quando ele aspirava, criava um show de faíscas melancólicas.

A grande massa de carne milenar parou de se mover assim que ficou diante de nós quatro. A criatura elevou sua grandiosa boca para cima e todos os seus dentes pontudos apareceram – faltava um. O barro recaia lentamente de sua pele para o chão, pouco a pouco, ele estava livre daquela lama pegajosa.

Senti-me incapaz de correr para algum lugar, – mesmo que não havia para onde ir –, e quando achei que não podia ficar mais assustador, a criatura soltou um rugido altamente perturbador que ecoou friamente na arena. De súbito, uma corrente de vento forte nos arrastou á cerca de um metro e meio para trás, meus pés deslizavam contra a minha vontade, tal ação era inevitável. O esbravejar da criatura quebrava nos cantos da arena e se multiplicava como se fosse matemática, e, por fim se tornava um sussurro fantasmagórico que ia ficando cada vez mais baixo, até sumir. Mesmo assim, o bafo dracônico me causou náuseas.

– Ares! Seu maldito! – Cody o amaldiçoou, levantando-se e tomando distância do monstro em sua frente.

– Isso só pode ser brincadeira! – Yokota tropeçava tentando manter-se firme e longe das patadas fatais.

– Tudo faz sentido! – Lorenna emitiu um exasperado som de certeza.

– Nossa morte faz sentido? – Rebati.

As asas da criatura se comprimiram até o seu corpo. E, depois com um solavanco poderoso elas bateram em uníssono até os ares. Olhei fixamente para a massa gigantesca que se erguia diante de meus olhos, incrédulo e incapaz de acreditar que uma criatura daquele nível pudesse ainda existir. As asas se retorciam e continuavam a bater freneticamente alcançando o ar, era tão magnífico quanto assustador.

Quando este alcançou altura suficientemente alta, empertigou-se e ficou a nos rodear como se fossemos alvos de suas mandíbulas afiadas, e éramos. Assim que meus olhos percorreram toda sua pele negra, num movimento único, os orbes da criatura se abriram de encontro aos meus. Ele me encarou com uma fúria que há muito tempo adormecia em seu recanto bucólico sagrado. Engoli em seco e desviei os conflitantes e observadores orbes dele, entretanto, aquela imagem ecoou dentro da minha mente; dragões tinham olhos amarelos.

– Temos que ser rápidos. – Lorenna estava ao meu lado com o seu escudo e espada em punhos. Ela vigiava atentamente o dragão negro que pairava mais de setenta metros de nossas cabeças. – Ele é filho de meu pai, ao que conta a antiga história de Cadmo e Harmonia. – Ela me olhou. – Não espere misericórdia de um filho de Ares.

Filho? Se ele realmente fosse um fruto de Ares, isso significa que era irmão de Lorenna – o que não fazia sentido lógico. Mas, cá entre nós? A morena era tão assustadora e violenta quanto ele. Contudo, essa possibilidade de parentesco do deus da guerra era inimaginável – por que se por um lado ele fez uma criatura horrenda como aquele dragão, do outro, ele criou uma princesa guerreira de olhos castanhos e cabelo negro que em minha opinião era consideravelmente linda.

– Filho de Ares, essa coisa...? Um dragão, filho de um... – Franzi as sobrancelhas.

Peguei-me vagueando na minha mente tentando imaginar como seria a mãe daquela criatura de cauda reptiliana – e como o deus tentaria se reproduzir com tal coisa. Se você conseguiu, parabéns, por que eu já senti a ânsia de vômito percorrer minha garganta, que nojo.

Tudo bem, eu tenho o dom natural de pensar em coisas aleatórias quando estou com o “rabo entre as pernas” e, consigo me bugar com minhas teorias, mas minha única certeza sobre tudo isso era; o DNA dos deuses era realmente curioso. Sei lá, mil tretas...

O medo havia nos tomado tanto tempo que mal havíamos notado que o dragão guardava uma longa torre com molde de caveiras humanas onde ele repousara anteriormente. Ela tinha cerca de dez metros de altura, e no topo, uma luva altamente brilhante flutuava sobre o altar maligno. Cody e Yokota já haviam visto aquele templo destinado á Ares, pois ambos estavam correndo para escalá-lo. Como sempre, eles estavam com mais de uma dúzia de pés em nossa frente.

Eles estavam cerca de cinco metros da primeira caveira que serviria de escalada para a torre, contudo, os flangos estavam tão obsecados em chegar primeiro até ela que não notaram a grande merda que haviam feito. E quando eu falo grande merda, estou sendo modesto, por que quando eles pisaram num crânio milenar que estava no chão, inúmeros corpos oriundos pútridos se levantaram da poeira que os escondia perante as entranhas do chão.

Havia centenas deles, todos vestidos com trajes surrados e cheios de lama nos ossos quebradiços e podres que bloqueavam todos os centímetros possíveis daquele templo. Legionários mortos-vivos altamente armados de todas as armas possíveis e impossíveis estavam moldando um sorriso ossudo por trás dos crânios mortos. Eles brandiam espadas, madeiras, arcos, escudos, armaduras, adagas e acima de tudo; uma vontade mórbida nos olhos vazios, as trevas nos vigiavam perante os orbes escuros que queimavam em anseio á luta, eles incitavam a carnificina.

As lanças. Os esqueletos. O terreno. A torre. Tudo isso serviu de abertura para o verdadeiro terror.

– E num passe de mágica entramos em The Walking Dead? – Acoplei ambas as espadas negras curvadas na cintura, eu poderia precisá-las delas mais tarde.

Coloquei a mão dentro da minha aljava dourada e sibilei palavras inaudíveis para os outros, a utilidade da flecha seria uma incógnita para aquelas criaturas, e também, daria tempo para vocês quebrarem a cabeça pensando o porquê do mistério, caros leitores.

Havia tantos soldados macabros putrefatos em minha volta que levantei o cotovelo para simplificar a minha mira em um crânio de um legionário morto. Fiquei a espreita, ele estava á cerca de dois metros de mim e eu sabia que mais cedo ou mais tarde o conflito iria retumbar na ponta do aço da minha lâmina. Bastasse um movimento precipitado, e a flecha se lançaria no meio da testa dele com violência.

– Não faça nenhum movimento brusco... – Lorenna estava cobrindo minha retaguarda com suas armas prontas para a ação. Vislumbrei aos cantos dos olhos seu pé chutar uma pequena pedra que viajou ao meio dos soldados. – É a única chance de vencermos. – Gotículas de suor pigarreavam dos nossos corpos, a tensão nos dominava.

A pedrinha foi quicando até não ter mais força suficiente para seguir seu caminho. Ela parou no pé de um guerreiro legionário espartano, consegui distinguir sua origem pelas roupas clássicas que eles se submetiam – ainda me pergunto se eles não sentiam frio pela ausência de roupa naquela época. Eu pelo menos, além de sexy, ficaria trêmulo de frio.

Ele desviou seus olhos mortos para seus pés e, assim que fitou o chão pude notar um pedaço existente de carne que repuxava em pus e sangue; seu rosto era deformado. Senti a bile enrolar meu estômago e tive uma anseia de vômito pela imagem – lembrei da abertura de The Walking Dead e sofri com arrepios daquela musiquinha de suspense.

Mortos me deixavam com medo.

O Dragão me trazia pânico.

Juntos esses dois elementos mesclavam duas sensações que eu realmente odiava: Medo e Pânico.

Meus pés travaram e a vontade de me mover fora retraída ao fundo de meus sentidos assim que notei o dragão se mover por toda a extensão acima e vociferar um rugido alarmante de sua fúria incontrolável. Ele estava com fome. E eu, paralisado. O medo conduziu esse fato. Minhas mãos não sabiam a qual ação tomar, meu cotovelo tremia de fronte aos olhos negros dos legionários que me fitavam inexpressivos; o pânico mandou oi.

Ouvi uma voz autoritária, duas, três, quatro vezes, mesmo assim, não fui capaz de responder – as palavras não saiam. Foi então que senti uma pequena agulhada em torno do meu pescoço e um líquido fora ejetado em minhas veias. Minhas pupilas ameaçaram a se fechar, enquanto meus dedos afrouxaram as linhas douradas do arco de bronze. Meus olhos verdes focaram na imagem dos soldados legionários que começaram a carnificina – a si próprios.

– Caramba! Idiota, acorda! – A voz autoritária me deu uma leve cotovelada nas minhas costelas.

– Lorenna? Arg... O que foi isso?

– Isso foi uma cortesia dos meus irmãos; Deimos e Phobos. – Ela enfiou a lâmina dentro da cavidade orbicular do guerreiro que veio atacá-la. – Eles te jogaram no mundo deles em questões de segundos! – Ela ofegou. – Esse soro foi desenvolvido pela Mell e Batistão de Atena, ele combate o medo e o pânico. – Ela se defendeu de um lanceiro que veio brandindo sua lâmina fortemente contra seu escudo.

– Beleza, sem medo e sem pânico. – Notei que o legionário espartano marchava em minha direção. – Estou ferrado...

Ele veio desembainhando sua espada num frenesi anseio pelo meu sangue. Pelos filmes e mitos que eu já havia escutado a respeito desses espertalhões, eles eram lendários em batalhas e se comportavam de forma impiedosa quando brandia sua espada rumo ao inimigo.

Fiquei ao menos em guarda, mas a investida fora tão rápida que nem tempo de tencionar minha flecha ao arco eu consegui. A espada dele veio se debruçando sobre o ar com voracidade nunca vista por mim antes – até por que eu era novo nesses negócios de semideus e tal –, e ai, passou por cima da minha cabeça sem o meu sangue na ponta da lâmina espartana, o idiota errou cegamente!

Lorenna havia investido em um arqueiro a sua frente e por pouco não se viu retraída na espada do nosso inimigo, que os deuses sejam louvados por essa sorte dupla.

Aproveitando dessa notável falha de sua grandiosa habilidade espartana, fui de encontro à costela do guerreiro morto-vivo. O corpo dele ainda tinha um pouco de carne pútrida e pegajosa por entre seus ossos, mas havia uma cavidade suficientemente grande para eu enfiar minha flecha bem funda na carne nojenta que se pendurava por entre sua armadura estilhaçada, que pigarreou um líquido negro fétido em torno do solo – ele o absorveu. Mais dois golpes cegos arrastaram a agonia do ar que zuniu em meus ouvidos com a falha do espartano, fui altamente habilidoso em fugir da minha morte com esquivas precisas. O último golpe da lâmina dele visava me atingir de cima para baixo.

Uma boa estratégia, de fato. Entretanto, eu me esquivei para a direita e empurrei a armadura esfarrapada com ambas às mãos. Assim que o soldado infernal caiu com os braços estendido, ele carregou consigo mais três de seus amigos mortos. Eles se debateram inutilmente tentando se levantar, e, a flecha alojada na carne cheia de pus do espartano fez o seu serviço; explodiu.

– Lorenna, os dois estão pertos da luva. – Notei os nossos inimigos tomarem distância.

– Droga! – Ela arrancou as pernas de um legionário com uma fúria avassaladora e voltou a atenção para frente. – Eles são muitos!

A sombra doentia e ligeira pairou sobre nós como se fosse uma águia na espreita. Ela desceu numa velocidade mórbida e, com suas mandíbulas abertas, o dragão mergulhou na tentativa de nos pegar. Ele levou uma fileira inteira de guerreiros e armas, os legionários quicavam em sua língua e tentavam rapidamente enfiar as lâminas que restaram em suas proximidades. Em vão. As planadoras largas batiam em uma perfeição tênue, mas ainda sim um sufocado rugido de agonia foi altamente audível daquela distância, alguém havia cravado uma arma em sua garganta.

Ele voou.

O que importava agora – além de estarmos vivos – era que o dragão havia feito uma limpa em nossa frente. Usufruímos disso correndo largamente em direção da torre principal vendo os dois asiáticos se debruçarem sobre uma batalha dura contra cinco legionários. Cody era sagaz e logo despachou seu agressor que tentou acertar uma madeirada em seu peito. Ele foi sabiamente instruindo pela sua espada que varreu a espinha cervical do guerreiro morto-vivo, ele caiu, duas vezes sem vida e sem a parte da cintura. Yokota atingiu o crânio do arqueiro incrustado em ossos, ele bramiu e se partiu em dois. Os outros três acabaram sendo atraídos por uma arma poderosa; O flango número um levantou um espelho que quando refletiu os três guerreiros ao ataque, seus reflexos criaram vida e despejaram os ataques vorazes em si próprios. As imagens do espelho ganharam vida, literalmente.

Os três legionários caíram num barulho oco. De longe, percebi que aquele espelho era nada menos que um presente de Afrodite para os seus filhos maléficos. Um desperdício.

– Suba, eu cuido deles. – Bradou Lorenna.

– Te vejo no mundo real! – Exauri um sorriso ao arremessar uma flecha comum entre um crânio putrefato em nossa frente, a filha de Ares completou o embate passando a espada por entre o corpo dele. Esparramado no solo marrom, o legionário gemia pela vingança que nunca teria.

Ousei-me arremessar mais duas flechas normais que minha aljava me presenteou quando meus dedos tocaram a extremidade mágica do objeto. Eu as lancei com uma mira inacreditável, elas ultrapassaram a pele encardida e esbravejaram num barulho sufocado, os ossos dos oriundos mortos foram triturados pelo aço com um apetite voraz assim que foram atingidos. Lorenna, a tão delicada guerreira girava sua lâmina com uma rapidez indubitavelmente habilidosa. Toda vez que seus dedos arquitetavam uma carnificina dupla, ela freava flechas com seu escudo de bronze com fúria nos olhos. Os cabelos esvoaçavam conforme ela fazia uma rotação precisa e, ao enfiar a espada nas tripas de seu inimigo, empurrou-o com a batida do escudo no crânio rachado; ele esfarelou por inteiro. Ela pegou a lança de seu inimigo, agora no chão, e continuou a varrer os legionários que não cessavam em aparecer em sua frente; tolos por achar que poderiam pará-la.

Assim que cheguei à torre grudei nas caveiras com ambos os pés e as mãos trabalhosas em ação. Meu arco agora jazia em minhas costas junto à aljava - tudo isso era necessário para a minha escalada ser rápida e sem qualquer incidente. No outro lado, Cody, novamente, que cara chato, conseguiu fugir da alta e poderosa investida de Lorenna que culminou em um soco certeiro em Yokota, ele caiu sufocado pelo seu sangue e dizendo algo sobre queso derretido.

A altura não era tão grande, o que ferrava mesmo eram as caveiras que usavam suas presas podres para nos morder; as vadias estavam vivas. Ouvem-se os estalar dos dentes fétidos, pelo menos tanto eu e o asiático número dois sofríamos com isso - principalmente por que a torre era toda feita com essas caras ossudas. Tentei ignorar ao máximo a dor que me corria das pontas dos dedos até os dedos dos pés, e graças aos deuses, eu estava a menos de um metro para conseguir o meu tão cobiçado prêmio, enfim, depois de tanto esforço a vitória seria minha!

Aquele soro havia me dato uma determinação reconfortante e, além de tirar o meu medo de répteis – o que era questionável por que eu via os dragões como criaturas além de uma classe simples de lagartos ou salamandras que se rastejam –, o pânico havia caído ao tártaro. Por isso, assim que estive menos de um metro do objeto com todas as deformadas caveiras me encarando, sem contar com uma grande onda de legionários com ressequidos agouros sobre minha aventura, estiquei a mão; sem medo. Um brilho me cobriu e...

– GRAAAAAAAAAANN! – O urro maléfico se espremeu pelas sombras. Um pouco tarde demais para uma reação.

– LYU! – E essa frase foi à última que pude ouvir antes de ser engolido pela mordida cavernosa do dragão.

[...]

A boca escamosa da criatura virou um túmulo de caveiras ao longo de sua garganta longa e reptiliana; ela condenava os crânios vazios e sem vida. Por incrível que pareça meu corpo magro conseguiu se assegurar por meio dos grandes dentes que a criatura mergulhará em atritos, - fora do próprio alcance para me triturar –, eu parecia uma cárie ou alguma bactéria difícil de ser eliminada, que comparação agradável.

Fiquei a espreita observando os movimentos voluntários do corpo da grande criatura que se moviam por meio de necessidade digestiva. A língua continuava a se sacudir, jogando os corpos esqueléticos para além da garganta; era funda e sem fim. Uma vez que eu caísse por aquele tobogã da morte, não haveria volta. Eu sabia disso.

Olhei de relance para fora da boca dele, o que me permitiu ver que Lorenna estava com praticamente um exército em seu encalço, mas ela conseguira usar os destroços da agora mal acabada torre em seu favor, formava uma barreira natural em sua volta. Além de mim, praticamente todo o topo da torre fora engolida por aquele dragão faminto. Por isso enchi-me de esperanças, pois se as caveiras foram engolidas comigo a luva também haveria de estar aqui. E eu a acharia, nem que pra isso eu tenha que escorregar pela garganta da criatura desprezível até o estômago.

– Acho que vou vomitar. – Uma onda de repulsa surgiu do meu estômago quando fiquei á olhar de abaixo da garganta.

Vendo por esse lado - cheio de entulho pegajoso e afiado – eu deveria considerar mais meus momentos de superlyu; bravo e destemido. Aquela garganta era tão horrível quanto o dragão. Tão nojento e podre quanto seu bafo. Tão arcaico que seus dentes pareciam novíssimos perto daquela ladeira escrupulosa. Além disso, nada menos que uma longa poça esverdeada com um borbulhar pútrido.

Toda vez que uma caveira caia em seu entorno venenoso, ele se derretia e virava pasta corrosiva. Cheguei-me perto o bastante para poder vasculhar toda a área gosmenta interna do dragão, e assim que meus olhos brilharam, soube exatamente que o que eu procurava estava ali - enroscado na goela. Ela tintilava e refletia o sabor da vitória em seu reflexo. Eu já sentia o gosto descer pela minha garganta. Eu já sentia as luvas divinas aquecerem minhas mãos.

Apoiei meus joelhos o suficiente para ficar em posição de descida, perto da garganta. Ela fazia movimentos digestivos, ondulações nojentas que me faziam sentir a bile enrolarem na garganta. Aproveitei as pequenas escamosas conotações em suas entranhas e apoiei meus pés ali, quando senti meus ombros serem empurrados friamente pelo inimigo.

– Que o tártaro te carregue! – A voz de Cody desceu goela abaixo, junto ao meu corpo. Ele riu, assemelhando-se á um vilão da Disney.

O impacto de seus dedos me fez despencar numa grande altitude. Meus olhos passaram sobre a luva sem qualquer chance de vislumbrar um plano para saquear o objeto divino que se intensificou quando eu passei. Senti-me o ar nojento banhar meu rosto e, quando meu corpo fez uma rotação de noventa graus, vi a minha última chance de sobreviver se aproximar.

Havia uma espada longa e ereta fincava na garganta do dragão. Tal ação seria resultado de sua ferocidade e errônea mordida nos legionários mortos quando ele tentou atacar Lorenna e eu antes de irmos de encontro à torre – eles conseguiram de alguma forma ferir o dragão naquele ponto, fincando mais da metade da lâmina em seu entorno. A espada brilhava ao relevo dos meus olhos fascinados pela chance da vida, e quando me aproximei o bastante dela, meus dedos se enrolaram em seu cabo e a espada escorregou um pouco para baixo – rasgando a laringe com o impacto do meu corpo que fez afundá-la ainda mais no órgão da criatura.

O dragão de imediato se contorceu e chacoalhou numa profunda ira reptiliana. De longe ouvi o grito de Cody sendo arremessado para fora de sua boca – ele despencava á setenta metros da arena. Presumi que ao menos ele morreria antes de mim, mas para o meu azar, eu o faria companhia logo.

– Essas espadas legionárias são velhas, mas resistentes. – Eu disse tentando me parecer forte. – Eu só preciso alcançar meu arco e atirar uma flecha com cordas finas.

O aço curvou-se e quebrou num estalar inevitável. A metade da lâmina ficou permanentemente na faringe do dragão que urrou de dor, novamente se mexendo furiosamente. A outra metade despencou comigo, a caminho do tártaro. Nem ao menos pegar minhas espadas negras e curvadas da cintura eu consegui.

Meu corpo caía de costas para o líquido verde, dessa vez não havia qualquer tipo de saída. Fechei meus olhos com o pesar inevitável de que eu morreria tão jovem.

Havia tantas coisas na qual eu queria me aventurar.

Tantos sonhos que eu queria alcançar.

Tantas viagens e lugares para visitar.

Tantos episódios de Sword Art Online que eu queria ver.

E, também os livros de Assassins Creed’s que não poderiam ficar de fora do meu melo dramático momento de vou morrer.

Mas, ao que tudo indicava, Caronte estava me esperando nas margens dos rios; Estige e Aqueronte.

Graças á essa possível travessia para o mundo dos mortos, esses sonhos se afundariam no rio. Era a lógica de vida; estando morto, eu não estaria vivo. Logo, não poderia viver. – Lispector, Lyu.

Tudo isso seria culpa de quem? Meu pai que me colocou em perigo ou meu tio que era um maníaco por guerras? Esse não era pra ser um melancólico momento de culpar alguém, mas como eu me sentiria melhor antes de morrer, eu culpo os dois – tomará que minha mãe acerte-os com um chinelo raider quando souber do acontecido.

Pude sentir a luz do anjo da morte me carregar sobre a clara ironia da vida, e ai, eu estiquei a minha mão para tocá-lo. Um sorriso me suavizou quando meus dedos se fecharam em algo, foi quando o cenário sumiu em uma explosão de luz...

Eu achava que estava morto.

Ou talvez eu esteja.

Ou talvez não.

Não sei bem. Não consigo abrir os olhos.

Mas minhas mãos ainda estão com o anjo entrelaçado.

Talvez ele queira meu contato, talvez não.

Espere... Não é um anjo, é uma luva.

O ar ia de encontro ao meu rosto numa velocidade consideravelmente rápida. Os gritos de uma garota histérica cobriam meus ouvidos numa sinfonia irritante. Foi quando eu abri meus orbes e vislumbrei o chão da galeria do rock chegar muito perto dos nossos corpos. Lorenna estava do meu lado, obviamente alerta e esbravejando todos os tipos de xingamentos – até mesmo os xingamentos que não se podem dizer numa fanfic. Meus olhos se arregalaram quando ouvi uma palavra que não conhecia, adicionei ao meu vocabulário chulo e voltei os olhos para frente, com muita raiva.

Vocês estão imaginando por que da minha raiva repentina, não é mesmo? Bem, eu explico... Se eu soubesse que estaria correndo risco de morte duas vezes em menos de cinco minutos, teria rodado o flashback da minha vida uma única vez, apenas. Era um saco ver as imagens nos olhos e coreografar com a música de fundo que deixava as imagens em tom fúnebre; Quando você está prestes a morrer a sua vida passa diante dos seus olhos. Mas demorava que só pelos deuses! Ao menos, a banda Strike novamente ecoava na minha cabeça com a música Deixo você ir. Eu só torcia para que os deuses não me deixassem ir para o tártaro.

Yokota e Cody agora já não estavam segurando meus pés, eles por algum misterioso segundo haviam desaparecidos no ar, - queria eu aprender esse truque -, enquanto Lorenna e eu chegávamos a estar oito metros do chão.

– Eu nunca te pedi nada coroa, exceto uma lamborghini de ouro duas noites atrás... – Tentei apelar ao julgamento de um deus, ao meu pai. – Nos tire dessa que eu prometo não fazer mais Apolodance no metrô.

Arrisquei-me alto e o preço fora em grande momento. Astolfa, minha pangaré alada branquela apareceu diante do meu corpo e zarpou comigo aos céus. Lorenna teve a mesma sorte com o seu pégaso – ela assobiou em nossa descida antes de sermos transportados para arena, isso foi um sinal para que eles viessem a nos socorrer. Eu a admirava. Lorenna era uma mescla de inteligência e força. Entretanto, os créditos dessa vez caíram nos dentes de Astolfa. Ela me salvou.

Planamos no céu circundando a galeria em movimentos repetitivos, ou melhor, Astolfa circundou. Visualizávamos o breu em que havíamos nos metido, o sétimo andar havia explodido em uma corrente de água – presumi ser o poder de Pezarim. Por aquele barulho e a quantidade de água, soube claramente que a fuga da filha de Poseidon fora consumada. Sorte dela.

Os mortais corriam de um lado para o outro dentro da galeria. Nas ruas, a Avenida São João tornava-se um breu de passos e multidões correndo de medo, mas o que eles estariam vendo? O que a névoa teria mostrado á eles? Babu estava ferida, mas ainda conseguia montar em seu pégaso. Fiquei feliz por isso. Os outros, Livis, Orsi e Rasquel vieram atrás de nós, e Batistão voava ao lado de Lorenna detalhando o ocorrido. Procurei tolamente o oitavo cavaleiro; uma pontada de remorso atingiu meu peito.

Thalles não estava conosco, apenas seu pégaso que voava sozinho, solitário e triste. Estávamos de luto. Fechei meus orbes em respeito a ele e minhas lembranças começaram a aparecer. Agarrei a luva que entrelaçava meus dedos e acoplei no cinto de Astolfa. Eu não estava mais com minha armadura, nem meu arco ou muito menos minhas duas espadas negras curvadas. Com o jogo acabado, tudo voltará ao normal como se nada tivesse acontecido.

E insisto em dizer que devo agradecer ao meu inimigo pela vitória. Afinal, se não fosse por Cody ter me empurrado e eu ter segurado aquela espada, talvez o meu triunfo fosse impossível. Também devo créditos ao dragão que se não tivesse reagido em fúria com a dor em sua laringe, eu não teria caído. A luva não teria caído. Eu só tive sorte dela vir diretamente para minhas mãos e nos tirar daquele jogo mortal. Muita sorte, até.

Respirei fundo sentindo as lágrimas abaterem meus cansados olhos irradiados pela inconsolável perda de um amigo e, assim que voltei a abri-los, o escuro me pegou. Despenquei cerca de noventa metros ao chão, inconsciente.


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