Abrupto escrita por Ana C Pory


Capítulo 8
Capítulo 8 - Ricardo - P. II


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é da Jazz, por ela ter pirado completamente quando eu disse que ia postar mais cedo.
Postei ele mais cedo, por mais difícil que tenha sido escrevê-lo.



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O coração de Alicia parou por um instante ao ler aquela frase. Continuou, aflita.

“Não é uma boa hora para cartas, eu sei. Não faço ideia de como eu cheguei à essa conclusão, mas eu decidi que é melhor morrer agora do que perder lentamente os sentidos, até finalmente ficar surdo e cego, e sem chance alguma de ver seu rosto pela última vez, em meu último suspiro.

Não quero ser pessimista nessa carta. Sim, eu sei que sempre fui, mas é melhor falarmos do que teria acontecido. Será uma bela história que você poderá contar a seus filhinhos perfeitos quando eles estiverem pequenos, como se apaixonou pelo seu melhor amigo e como ele tragicamente morreu antes de sequer terminar o Ensino Médio.

Mas vamos dizer que nada disso tivesse acontecido (apesar de que eu morreria de qualquer forma, aliás). Que eu não tivesse essa doença de nome grotesco, ou que descobrisse antes e não só quando estivesse no hospital sendo tratado por um atropelamento e sem qualquer chance de cura.

Gosto de imaginar que namoraríamos. Nós seríamos aquele casal que se vê na rua de mãos dadas, mas eu te pregaria muitas peças como as que se vê no youtube. Como fingir que te traí, ou te atirar num lago que visse em um parque aí pela cidade, ou até mesmo dizer que vou ter um filho que não é seu. Aí eu faria uma pegadinha feia, que desse errado, e duvido que continuaria confiando em mim depois disso. Se sentiria meio culpada, mas por fim você me colocaria naquele Teste de Fidelidade, e eu provavelmente perceberia e te trairia para ver sua cara de espanto, porque, é claro, tem que seguir o mesmo modelo de todas as outras mulheres participaram.

Eu ia gostar de ver a cara do João Kleber quando visse que eu fiz aquilo de propósito. Provavelmente o episódio nunca sairia no ar. Se é que aquele programa não é planejado.

Também gosto de imaginar que um dia eu te pediria em casamento. No meio do campus da faculdade, talvez, porque você odeia que fiquem olhando muito pra você. E eu testaria para ver se continuaria se importando com isso quando eu tirasse um daqueles anéis de festa de aniversário.

Imagino suas mechas loiras caindo em cima do rosto enquanto ri da minha cara, e depois eu tiraria um anel de verdade do bolso, e aí você pararia de rir e ficaria toda emocionada. Então teria aquele coro de “beija, beija, beija!” e quando eu me levantasse eu te abraçaria, e pediria para um amigo meu me jogar um chapéu para colocar na cabeça e depois fazer uma reverência ao público, para enfim te beijar.

E então, na véspera do casamento, nós iriamos no supermercado aproveitar a elegante vida de quem faz casamento civil e sem cerimônia (já falei que odeio extravagâncias?). Compraríamos tudo que podíamos, eu diria que você era uma gorda e você provavelmente me bateria com uma revista da Yes! Teen. O balconista, aquele do Lahude parecido com meu tio avô, estranharia tanta compra e provavelmente tentaria espiar a placa do carro pela atividade suspeita, e eu inteligentemente (como sempre, modéstia a parte) usaria a caminhonete do meu pai.

Eu provavelmente apostaria para você beijá-lo, só para você acreditar e quase ser atropelada, como eu, de tanto ir para trás de susto. Também, provavelmente eu riria de você mas iria correndo atrás, para te tirar do meio da rua. Te empurrando e te chamando de trouxa, é claro.

Provavelmente nada disso será possível.

E provavelmente você achou que eu terminaria a carta desse jeito, de forma melancólica e imbecil, como se não me conhecesse.

Mas eu te amo.

E isso é o que importa.

Não essa carta.

Pode colocá-la fora se você quiser.

Queime-a na chuva.

Ah, e me mande outra via papagaio-correio (papagaio da pet-shop, é claro) explicando como conseguiu queimá-la na chuva...

Ou simplesmente guarde a carta no seu coração.

Te coloquei no meu testamento.

Ricardo.”

Alicia não sabia se ria ou se chorava. As lágrimas já inundavam seus olhos quando ela correu para o quarto, tentando entrar, mas alguém esbarrou em alguém. Uma mulher de cabelos negros estava ali, também com uma carta na mão, olhando para Ricardo. Era mais velha, entre trinta e quarenta anos, e tinha uma caneta na orelha. Sorria melancólica para ele, como se estivesse em dúvida entre se orgulhar e sofrer da escolha do garoto.

Ricardo virou-se lentamente, terminando de receber a injeção da enfermeira, e Alicia via aquilo tudo chocada. Ele olhou para ela e, sorrindo pela última vez e sussurrando com a voz tão rouca que só dava para ver o movimento dos seus lábios, “eu te amo”.

Alicia desgrudou-se do chão e foi até o garoto. Acariciou-lhe os cabelos negros, enquanto a mulher apertava sua mão. Ele as olhou com ternura, antes de seu olhar virar um olhar vazio.

Demorou três semanas para que Alicia conseguisse conversar direito com alguma pessoa. Um tempo relativamente melhor que o luto da sua mãe, não sejamos pessimistas.

O seu dia parecia automático e sem qualquer pingo de alegria. Tudo parecia muito caótico. O sol raiava no céu quase todos os dias, e isso era impossível. Impossível ver tanta gente sorrindo com picolés, deliciando-se pelo verão, ou alguns alunos (nenhum colega seu) comentando terça-feira sobre o dia sem aula de segunda, destinado ao luto. Ficaram felizes por ficar em casa.

No fundo, ela queria que todos explodissem, incluindo ela mesma.

Na sexta-feira de três semanas depois, finalmente se fez chuva. Ela caiou desde às três da tarde e não parecia parar de chover nunca mais. Não era um temporal, mas era gelada, os pingos rápidos molhando a pele. Todos apressados para voltarem ao conforto de suas casas.

Menos Alicia, que finalmente parecia estar entendendo as coisas. No dia em que choveu, ela deitou-se no parque que estivera anos antes, sentindo a chuva em seu corpo.

Finalmente, achou que entendeu afinal porque Ricardo escolhera morrer antes da data destinada à sua morte, o porquê todos estarem sendo mais gentis e doces que o comum com ela, e quem era o número desconhecido que estava tanto lhe ligando.

Ele quis morrer antes pois não seria de seu feitio nem de seu agrado morrer sem ter chance de se expressar ou se comunicar uma última vez. Isso explicaria o porquê de esperar a garganta sarar, apesar ter se comunicado com cartas.

Todos estavam sendo doces não por zombar. Talvez por pena, mas principalmente porque entendiam o que ela estava sofrendo. Porque entendiam o que, realmente, ela estava passando, porque todos um dia sofreram ou sofrerão de luto, e é assim que as coisas são.

O número desconhecido talvez fosse daquela mulher.


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Notas finais do capítulo

Esclarecimentos depois :3