Abrupto escrita por Ana C Pory


Capítulo 9
Capítulo 9 - Efêmera Visita


Notas iniciais do capítulo

Bu! ;)
Esse capítulo ficou mais comprido que os outros O.o
Ele vai pra Jazz ♥



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Quando Alicia foi pegar o leite para despejar na sua tigela aquela manhã, quase deixou ele cair. Felizmente por tudo que é sagrado e tudo que também não é, ela conseguiu pegar em tempo, e tremendo o juntou com o Sucrilhos.

Ela estava cansada porque ainda era oito horas de um domingo e ela fora acordada 15 minutos antes com a música toque do seu celular, uma do Pharell Williams, que se alguém duvidasse ainda ressoava em seus ouvidos. Alicia precisava fazer uma anotação para mudar urgentemente para qualquer outra música, principalmente porque não importava o quão feliz o cantor estava quando a voz seguida da canção estava num tom monótono e entediante. 

Após várias semanas sem ligar, o número desconhecido finalmente voltara a chamar, só que desta vez Alicia atendeu e a pessoa do outro lado da linha se identificou como a mãe de Ricardo. No início Alicia ficou receosa, e para falar a verdade ainda estava, então planejava falar com seu pai antes de sair de casa.

Quase que por milagre ele acordou não muito tempo depois, resmungando enquanto se arrastava até a máquina de café e derrubando quase todo o pó para fora. Alicia soltou uma risada fraca. Pelo menos, ele também era desastrado que nem ela.

— O que você está rindo aí? — disse ele, soltando um longo bocejo após falar com a voz sonolenta. — Ainda é de madrugada, aliás. Como está acordada?

— Fui acordada pela mãe do Ricardo — ela respondeu pausadamente, como se quisesse provar a verdade por trás das suas palavras. — Ou pelo menos eu acho que é ela. Você sabe onde ela mora?

— Claro, é na segunda rua após o Mercado Lahude — o pai dela explicou, terminando de varrer o café no chão e pegando água quente para colocar na cafeteira. — Ela mora lá junto com o marido, um banqueiro meio famoso. Na realidade, chegam a ser fofoca pela região de lá.

Alicia ficou um momento em silêncio enquanto mastigava seu cereal e observava o pai quase queimar o polegar na água. Depois, engoliu e soltou um:

— Como que eu não sabia disso?

O pai dela ligou a máquina e respondeu mais calmo do que ela pensava que ele estaria.

— Bem, não é legal ficar revelando coisas dos outros, eu acho. Eu não gostaria que ficassem fofocando de nós depois de, bem, você sabe... tudo o que aconteceu.

Com tudo ele não se referia apenas à reação de Alicia com o luto de Ricardo, mas como também com o luto dela com a morte de sua mãe.

— Faz sentido. Bem, então eu posso ir lá sem ser sequestrada por maníacos roubadores de órgãos de pobres adolescentes frágeis e indefesas? — perguntou ela, colocando a tigela na pia e pegando sua bolsa e suas chaves.

— Ah, minha querida Alicia, tão pequenina e delicada — Jonas, o pai dela, ironizou, dando um beijo na cabeça da filha após despejar o conteúdo do bule numa xícara vazia, por sorte não derrubando nada. — Não mate ninguém no caminho. Papai te ama.

— Não prometo nada — respondeu Alicia fazendo um muxoxo e fechando a porta.

Apesar de nunca ter entrado na casa de Ricardo antes, Alicia até que conseguiu achar o local sem preocupações. Lembrava uma antiga mansão vitoriana, só que não tão grande, e as casas na vizinhança eram igualmente extravagantes e com tanta riqueza em detalhes quanto a riqueza no bolso dos seus donos, o que fez a garota rodar a quadra duas vezes ainda tentando acreditar que aquela era o lar do falecido amigo.

Tocou a campainha duas vezes antes de ser atendida pela mesma mulher que aparecera no hospital.

— Entre — ela disse com a voz numa tentativa falha de ser gentil. Dava para ver claramente que não queria que a garota estava ali, como se tivessem colocado um revólver na cabeça dela obrigando-a a convidar Alicia para lá. Os olhos verdes explicitavam uma súplica silenciosa para tudo aquilo acabar logo.

Alicia atravessou a porta, observando o interior quase igualmente exagerado. Alguns sofás brancos estavam bem alinhados junto à uma mesa central, de onde fumegava uma xícara quente de café. Uma televisão de tela plana enorme fixada à parede exibia o jornal matutino.

Sentou-se enquanto a mulher a oferecia uma xícara de chá, café ou leite, o que ela quisesse. Alicia educadamente recusou, fazendo com que esta apertasse os lábios e saísse da sala por alguns instantes.

Logo depois ela surgiu, junto à um homem que parecia familiar. Provavelmente fora ele quem chegara no hospital após o falecimento de Ricardo algumas horas depois. Alicia não se lembrava direito, afinal, o resto do dia após a injeção parecia um borrão indistinguível para ela.

Sr. e Sra. Oliveira se sentaram num dos sofás brancos à frente ao que Alicia estava sentada.

— Eu sei que, para você, nós devemos ser uma novidade. Nunca aparecemos muito publicamente na vida de Ricardo — começou sra. Oliveira, como se sentisse uma necessidade para se explicar. — Apesar de tudo, gostaríamos de falar com você sobre o testamento do nosso filho. — O homem concordou com um aceno de cabeça. Ela então voltou a falar:

— Todavia acho aconselhável… — Uma batida forte na porta, um claro gesto de ignorância à campainha na parede. — … que nós… — Mais uma batida forte. — esperemos… — Outra batida impaciente, até que ouviu-se o barulho de porta abrindo. — ... a chegada de Júlia — finalizou, olhando com raiva para a garota que agora estava sentando nos sofás. Seus cabelos agora tinham mechas de cores quentes, como vermelho, laranja e rosa.

— Continuando — disse a mulher, raivosa. Não ofereceu bebidas ou cumprimentos à Júlia, preferindo ignorá-la —, sei que Ricardo falou para ambas vocês duas que colocou vocês no testamento dele. Curiosamente, ele não tem direito à um antes dos 16 anos, porém me deixou com um papel junto ao envelope onde estava minha carta, como se fosse um legítimo testamento.

Agora o homem parecia ter se focado na conversa, levantando uma sobrancelha. Julia cruzou as pernas, se curvando um pouco e dando uma espiada não amigável no papel que a sra. Oliveira havia pegado. A mulher franziu os lábios novamente.

— Ele escreve como se fosse um advogado — comentou Júlia.

Então todos estavam olhando para o chão, e de repente uma voz grave ouviu-se pela primeira vez desde que seu dono havia acordado naquela manhã.

— Ele me disse que queria ser um quando crescesse — disse o homem, logo depois se fechando, e todos sabiam que ele não falaria mais coisa alguma o resto da discussão.

— Bobeira — cortou a mulher num tom ríspido, lançando um olhar de repreensão para o marido. — Ele falou que queria ser escritor para seguir os meus passos. Você nem presta atenção. — E se encararam de forma animal, parecendo querer pular um no outro.

Júlia parecia quase se divertir com a cena, mas com um olhar de socorro de Alicia, resolveu limpar a garganta e falar:

— Bem, Ricardo havia me falado que gostaria de ser professor. De literatura ou de filosofia. Queria ensinar as pessoas a pensar, ensinar lições de moral e explicar sobre a sociedade que nos rodeia.

Sr. Oliveira bufou, revirando os olhos. Logo todos olharam para a Alicia, esperando que ela tomasse algum partido, e a menina olhou para baixo meio envergonhada. Ela não fazia ideia nem tinha feito questão de saber o que ele queria ser. Ela não conhecia seus pais, e tampouco imaginaria que Ricardo, sempre com um casaco velho e jeans surrados, moraria naquela minimansão.

— Ele era indeciso. Sempre mudava que profissão queria seguir — ela respondeu, tentando ter confiança, mas na realidade estava chutando. Não pareceu muito convincente, porém não teve muito tempo para se preocupar com o fato de ter se apaixonado por um garoto que mal conhecia, já que a mãe deste começou a falar.

—  Isso não é exatamente importante no momento — replicou, levantando a folha de papel que levava nas mãos. — Este testamento. É mais comédia do que, realmente, um documento verídico. Mas o que entende-se é que Júlia e Alicia dividem igualmente tanto a quantia em dinheiro que ele guardava tanto quanto todos os seus objetos pessoais.

Alicia ficou em estado de choque. Saber que Ricardo viveu naquela casa e tentar imaginá-lo correndo pelos corredores quando criança já era surreal, mas ele guardar dinheiro? E mais, colocar só ela e Júlia no testamento?

— Quanto exatamente é esta quantia? — perguntou Júlia.

A resposta foi um número alto que não ajudou muito a melhorar o estado de Alicia, mas ainda tinha um porém. A mãe dele com certeza não ia ceder assim tão fácil.

— Eu quero 50% do dinheiro e 75% dos objetos pessoais — ela continuou. Julia bateu a mão na mesa.

— Você só pode estar louca, certo? Aí diz explicitamente que nós herdamos as coisas dele. Tem alguma dificuldade de entender?

Que as duas não se entendiam não era surpresa, todavia cada vez ficava mais claro do que água.

— Ele não tinha idade para um testamento, portanto, tudo dele é nosso. Eu estou tentando facilitar as coisas para vocês, não dificultá-las! — exclamou a mulher na defensiva. Alicia se alertou para uma briga iminente.

— Podemos ver os objetos pessoais dele? — interrompeu ela, tentando aplacar a situação. A mulher pareceu se acalmar um pouco. Se levantou e disse um breve “me sigam”, as levando até um corredor comprido, e depois até a última porta à direita.

Ela abriu a porta, e assim de repente, o único cômodo que parecia não estar organizado na casas se revelou. As paredes com tinta preta mal se viam com tantos desenhos colados com fitura durex por todo o quarto. Da cama bagunçada caía uma colcha, e havia algumas meias sem pares pelo carpete macio. Na escrivaninha, a única parte que não estava uma bagunça, havia um caderno com as folhas quase todas usadas para desenho, e vários lápis de escrever e de colorir dos diferentes tipos estavam organizados ao lado.

O armário estava aberto, revelando calças jeans e uma única calça social (a visão do menino com trajes sociais fez a loira sorrir momentaneamente) estava dobrada como se nunca tivesse sido usada.

Os desenhos pegaram as garotas primeiro. Rascunhos bobos, como dragãos e robôs. Desenhos absurdamente detalhistas retratando gotas de chuva e casais num parque. Rabiscos e arte abstrata, autoretratos, aquarela, gravuras e desenhos 3D, pulando para fora do papel. Todos eles tinham uma data e sua assinatura. Os mais pertos da cama tinham rostos. O rosto de Júlia bancando a metereologista, com a boca meio aberta como sempre ficava quando estava pensativa. O rosto da mãe dele, com a expressão raivosa, como se estivesse prestes a castigar alguém. O rosto da professora Jennifer, da colega Natália, da tia da cantina, de um velho simpático, do seu pai.

E de Alicia. Vários desenhos da garota, desde ela fazendo careta com a língua de fora ou chorosa — a única vez que ele a vira chorar antes do acidente —, com expressão sonhadora e revirando os olhos. Dela brava por uma brincadeira ou concentrada antes de uma prova.

A retratada se aproximou da cama dele, colocando de lado o edredom e analisando as inúmeras Alicias que apareciam sem parar. Havia um desenho especial, não tão detalhado como os outros e até meio bobo, mais espacial, com ela rindo pulando em poças. Isso numa data exatamente uma semana antes deles se conheceram. Os olhos dela se encheram de lágrimas.

Ela devaneava, às vezes escutando a conversa de forma entrecortada entre Júlia e sra. Oliveira, a mulher tomando posse do desenho do velho simpático dizendo que era de família, a discussão breve que se seguiu.

Alicia virou-se observando as duas. De supetão, entendeu porque a mãe de Ricardo estava tão possessa quanto às coisas do filho. Ela queria recordações. Ela queria ainda partes do primogênito, seu único filho, para se agarrar ao que havia restado do seu menino. Ele havia deixado tudo para as amigas, mas ela ainda assim queria lembranças dele, mesmo se isso violasse seu último desejo.

Júlia então agarrou a mão de Alicia, finalmente com mais raiva que nunca, e a puxou para fora da casa.


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