Destemida escrita por almeidalef


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem, boa leitura!



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Noite. A lua despontava tímida, atrás de gordas nuvens negras e o frio fazia seu corpo magricela estremecer adentrando sem licença em suas roupas finas e maltrapilhas. O que restara de uma placa de um boteco balançava e gemia num hesitar melancólico e o silvo do vento passava sem parar penetrando nos finos lençóis carcomidos por traças que usava como cobertor todas as noites. Além do chocalhar dos vagões do trem que estremeciam as paredes, uma carroça estaladiça de ferrugem passara aos solavancos pela rua deserta. Mas, decerto, o que mais ouvira naquela madrugada fora os passos humilhados, ofendidos e cansados das almas cinzentas que circulavam pelas calçadas. Passos que se arrastavam em busca de uma breve esperança na qual agarrar-se. Ela escutava a tudo. Os ruídos de ratos nas paredes, as risadas esganiçadas de prostitutas no andar de baixo, o som de carne contra carne em outro quarto por ali e o grito em protestos de uma sirene ao longe.

A menina obrigou-se a abrir os olhos e, de início, sentiu como se não o tivesse feito. O mundo era um borrão, uma mancha, um erro. Sempre fora.

Ela os sentia ao seu lado. Suas respirações formavam pequenas nuvens de névoa no quarto gélido, embora, deitada entre seus dois irmãos, sentia-se quente e, nem que por alguns instantes, protegida. Davíodred estava à sua frente ressonando em sono solto enquanto suas madeixas longas caíam-lhe ao rosto como um emaranhado de cachoeiras louras. Caleb estava às suas costas. Ela o sentia estremecer, o que não lhe permitia uma noite de sono sequer.

"Tremo de frio", ele se desculpou, certa vez quando ela criou coragem suficiente para perguntá-lo o motivo dos estremeções. “Esses lençóis são finos demais." Mas ela sabia que, todas as noites, ele chorava até dormir.

Não o culpava e simplesmente não se importava. Levantou-se do amontoado de colchões e lençóis velhos fedendo a mofo que agora tinha como cama e caminhou até a janela, com o piso de madeira rangendo a cada passo de seus pés feios. Dormir significava sonhar, provavelmente, e ultimamente seus sonhos resumiam-se em reviver momentos que já deveriam estar soterrados nos escombros do esquecimento. Aquilo a deixava entre um dilema tedioso: ou ficava deitada por tanto tempo em cima do braço até deixar de senti-lo enquanto ouvia o irmão chorar às suas costas, ou ficava na janela contemplando o céu poluído. Em noites sem lua, as nuvens eram tão escuras quanto sua alma, de horizonte a horizonte. Escuras, profundas, e proibidas, bonitas, de um modo frio, mas quando as olhava por muito tempo, muitas vezes se pegava refletindo como deveria ser fácil deslizar sobre o vidro quebrado da janela de madeira velha e se jogar na escuridão. Um baque surdo muito pequeno, e o patético e pequeno conto que era sua vida teria fim. Um fim tão insignificante quanto seu começo.

Nunca se sentia tão sozinha quanto nesses momentos. E era engraçado e triste, o modo como se sentia. Jamais gostara das pessoas. A presença delas fazia-a pestanejar, nunca sabia o que dizer depois. Não gostava quando a tratavam como uma criança, porém tropeçava nas palavras quando, raramente, pediam sua opinião. Havia um paradoxo indecifrável sobre aquela garota. Era a contradição contradizendo o que só pode ser dito com o olhar, o reflexo no espelho daquilo que não queria ser e isso tudo a tornava livre dentro das paredes de si, mas para o mundo era completamente insana. Era a exceção, a discrepância gritante do normativo. Possuía a viciosa mania de indignar-se com o mundo, com a mediocridade humana, com a própria existência. Carregava em seu âmago uma revolução inteira e talvez seja por isso que nunca aprendeu a falar.

Arrepios preencheram suas pernas. Seu pequeno vestido de lã marrom havia se torcido em seu corpo como uma cobra. Ela o desenrolou e debruçou-se sobre o parapeito da janela. O ar estava frio e isso era bom. Gostava do frio. Fazia com que se sentisse... "Viva.", ela pensou. "Faz com que me sinta viva." Só lhe restava saber se sentir-se viva era bom ou ruim. Os telhados das casas, lojas, e armazéns lotados em conjunto apoiavam-se uns aos outros como amantes embriagados, estavam perdidos no nevoeiro. Ela podia ouvir a água de um pequeno canal abaixo fazer sua calma dança, podia entrever a rua de paralelepípedos que corria à frente de seu prédio, os arcos de uma ponte revestida de musgo... Mas o fim da ponte desaparecia no cinza, e dos edifícios até onde ela podia enxergar apenas algumas luzes amareladas e vagas permaneciam. Podia ouvir o cantarolar de bêbados e vagabundos vindo de um bordel próximo. Observou as sombras que apareciam e desapareciam com tamanha facilidade por entre a névoa lá embaixo, seguindo seus misteriosos rumos tão tarde da noite. E, vez ou outra, encontrava a si mesma perdida em seus devaneios e suposições mirabolantes de onde tais pessoas poderiam estar indo, o que estariam fazendo e que fim levaria suas caminhadas. Queria estar lá embaixo. Fazendo coisas... Vivendo.

Aratheo não a deixaria sair por aí sem antes cumprir sua parte da promessa. Sem antes pagar o homem o que o devia por ter permitido que ficassem ali. E Aratheo não estaria com humor para ouvir desculpas mesmo se ela as servisse com um sorriso doce. Não estava atrasada, não ainda, mas não podia perder tempo se quisesse ver o nascer do sol como havia também prometido à outra pessoa. "Tantas promessas...", pensou ela. "Tanta névoa...".

Ela encheu sua bacia com a água do canal na noite anterior antes de deitar-se para dormir, preferindo a água salobra àquela água verde e viscosa da chuva que caía na cisterna dos fundos. Mergulhado um pano áspero, ela se lavou da cabeça às canelas, equilibrando-se em uma perna de cada vez para poder esfregar os pés cheios de calos. Notou que Caleb parara de tremer e agora respirava vagarosa e uniformemente. Depois disso, voltou ao que estava fazendo e encontrou sua navalha. Seu cabelo estava caído por sobre seus ombros e as pontas tortas já encostavam onde deveria estar seus seios. Ela o cortou até o pescoço. Não era vaidosa, mas gostava de seu cabelo, e principalmente de como podia cortá-lo facilmente e não sentir nada.

Uma de suas meias precisava de remendos, ela percebeu enquanto a puxava para cima. Pediria à Berna por ajuda; sua costura era tão miserável que a costureira frequentemente a olhava com pena. "Ou eu poderia roubar um par do armário.", ela pensou. Isso seria arriscado, no entanto. Aratheo odiava quando as prostitutas usavam as roupas que vestiam durante os programas, nas ruas. Exceto por Liora. Uma chupada no pau de Aratheo e qualquer garota poderia usar a roupa que quisesse. Ela não era tão tola. Elenia a alertara: "Meninas que começam por esse caminho acabam nos bordéis mais sujos, onde qualquer homem sabe que pode ter qualquer coisinha bonita que aparece em cima do palco, se sua bolsa for gorda o suficiente.”.

Suas botas eram pedaços de um velho couro marrom salpicado de manchas de sal e rachado pelo desgaste, seu cinto um pedaço de corda de cânhamo tingida de azul. Ela deu um nó na cintura, pendurou uma faca no quadril direito e uma bolsa de moedas no esquerdo. Por último, jogou um manto por cima dos ombros. Era um verdadeiro manto de prostituta, lã roxa costurada em seda vermelha, com um capuz que a protegia da chuva, e também três bolsos secretos. Ela escondeu algumas moedas em um deles, uma chave de ferro em outro, uma lâmina no último. Lâmina de verdade, não uma faca de fruta como aquela que tinha no quadril.

Abriu a porta de seu quarto que mais parecia uma velha ranzinza gemendo o mais devagar que conseguiu, escapulindo para um corredor escuro, cheio de portas, todas fechadas, paredes de uma madeira envelhecida o preenchiam e a única decoração ali era um quadro torto no fim do corredor e um pequeno lustre que já não funcionava mais. O chão era revestido por um grosso tapete cinza repleto de bolotas de mofo e manchas de vinho e mais outras cores que ela não soube distinguir o que as poderiam ter causado. O corrimão era escorregadio, os degraus íngremes e havia oito andares, mas foi por isso que Caleb conseguira o quarto por um preço tão barato. Por isso, e pelo sorriso dela. Podia ser magricela e reta como uma seta, mas tinha um belo sorriso e certa graça... Até Aratheo achava-a graciosa.

Pulou um degrau falso que havia na escada e foi encontrar as mulheres na sala de espera. O prédio onde estava, originalmente, era uma casa como todas as outras, mas foi crescendo conforme o tempo passava até se tornar um dos prédios mais altos da redondeza. Quanto mais empregados, mais clientes; quanto mais clientes, mais quartos se faziam necessários, embora aqueles clientes com preferências mais exóticas gostassem da companhia de outro casal, outra mulher ou até outro homem. Ela sabia que os homens ficavam nos andares mais altos e quanto mais altos, mais caros e diferenciados eram os empregados e os clientes.

A sala de espera era tudo o que se esperaria de uma sala de estar excepcionalmente normal. Possuía um sofá grande para três pessoas; outro, menor e mais ao canto, para duas pessoas, e três poltronas distribuídas ao redor de uma grande mesa de centro que, estranhamente, não ficava no centro. As paredes eram revestidas por um papel de parede floral em tons de rosa, bege, branco e lápis-lazúli. O chão estava carregado de muitos tapetes pequenos demais para o cômodo, e se aglomeravam em muitas estampas e cores e formas diferentes. Parecia a ela que era impossível ver aquele chão da mesma maneira duas vezes. A única janela do cômodo fora tapada com pedaços de madeira para não atrair curiosos, portanto, o ar ali era carregado de perfumes de baunilha, fumaça de cigarro e suor.

Ela observou as mulheres antes de se fazer presente. Sentada numa poltrona estava Adella, uma moça muito jovem, não tinha mais que dezesseis anos, com as pernas cruzadas, o cotovelo apoiado no joelho enquanto nos dedos equilibrava um cigarro e na outra mão segurava uma taça de vinho manchada pelo seu batom vermelho. Seus cabelos eram castanhos e muito curtos, seus olhos eram velhos, quase enrugados e estavam fixos no chão. Ao seu lado, no sofá menor, estava Galatea, havia tirado os sapatos e espichara as pernas para cima enquanto lia um livro velho apoiado no braço do sofá. Sua pele era negra como tinta, não tinha cabelos, e isso lhe proporcionava um ar de soberania. Parecia estar quase histérica de alegria e respirava fundo a cada página que virava.

Muitas outras moças e senhoras estavam espalhadas pela sala, ninguém falava. Lá havia uma forçada e desesperada atmosfera e parecia um pouco assustador até. A menina entrou na sala e nenhuma das presentes pareceu notá-la, ela as agradeceu mentalmente por isso. Aproximou-se de Adella e sentou-se no braço da poltrona em que estava recostada. A moça pareceu vê-la só um bom tempo depois que ela se aproximou.

— Ah, olá, moçinha! — disse, enquanto depositava as cinzas do cigarro num cinzeiro ao seu lado - Cortou os cabelos?

Ela acenou positivamente com a cabeça.

— Você nunca fala garota? — perguntou uma voz irritadiça. Galatea a encarava com olhos amarelos e brilhantes. No que a menina acenou de volta com um não. — Menininha insolente… uma hora você terá que falar. Ou gritar, quem sabe. E seus gritos serão música para meus ouvidos.

— Não ligue para o que ela diz criança. — Berna surgiu na sala, imponente, colorida como um pavão. Tinha uma pele tão clara como leite, seus olhos eram grandes lagos azuis, silenciosos e à espreita, perigosos. Berna era a responsável por todas as mulheres daquele andar. Consertava suas roupas, ajudava na beleza e nas artes do prazer. Alguns diziam que fora a primeira a trabalhar para Aratheo, e desde então, tem sido seu braço direito. Mas Berna nada parecia com Aratheo. Podia ser severa, mas sabia ser justa. Conhecia todas ali pelos seus devidos nomes, e nunca se esquecia de nada. As mulheres costumavam cochichar pelos corredores que tinha ciúme de Galatea, por estar querendo roubar seu posto de supervisora do andar, mas isso não passava de boatos. A disputa entre Berna e Galatea transcendia um simples posto. Era algo maior, pessoal. — Galatea, ponha-se em seu lugar. Acha que algum cliente a escolherá se mostrar-se assim, toda desleixada? Ajeite-se, já. Ou prefere que eu a ajude?

Sua voz como o som de uma folha rasgando ao meio. Galatea enrubesceu, bufando uma fúria silenciosa. As mulheres na sala as observavam, duas leoas, se rondando, prontas para o ataque. Mas a batalha teria de esperar. Aratheo acabara de entrar no cômodo. Era um homem alto e grande, estrábico, usava uma camisa manchada aberta que mostrava os grossos pelos de seu peito vermelho. Sua cabeça era careca como um ovo e brilhava a luz pálida da sala. Seus dedos grossos estavam repletos de anéis e ele parecia nunca tirá-los. Ela sabia que ele era um ex-pirata e mercenário, e até falava como um com frequência, gritando e dando ordens às mulheres como se fosse membros de uma tripulação e o prédio de oito andares, seu navio. Com a sua chegada, a atmosfera densa que perturbava o local pareceu desaparecer, e foi reconstituída por uma sensação geral de expectativa, quase esperança.

— Orzhos acaba de me informar que eles não virão — anunciou o gordo homem, olhando para todas com um brilho sagaz nos pequenos olhos claros.

A sala pareceu soltar um grande suspiro. Como se estivessem prendendo a respiração a tempo demais. As mulheres começaram a olhar em volta, notando só agora que estavam ali e que tinham acabado de acordar de um sono mal dormido. Suas vozes começaram a surgir baixas, no início, mas depois uma onda de risinhos e cochichos rápidos possuiu o cômodo. Aratheo fez um grande e fingido muxoxo pedindo silêncio e encarou a garotinha no canto da sala, fixando seus dois olhos nela, um terror tão esmagador como qualquer outra coisa que ela já sentira encheu-a de repente."Ele quer a promessa.", pensou desesperada."Ele vai cobrar a promessa."Enquanto ele a olhava, seus olhos claros sem cor pareciam despi-la, inclusive a pele, deixando-lhe a alma nua à sua frente. Ela não sabia o que a promessa significava… Não sabia o que ele iria ordenar…

— Nada para você hoje. — Pareceu a ela que dizer tais palavras consumiu um esforço enorme de Aratheo e, quando se virou para sair da sala, ele estava, de fato, cansado.

Um assomo de alívio apossou-se da pequena menina como uma forte brisa fria numa tarde ensolarada. Ela mal conseguiu conter-se."Pelo menos uma das promessas eu cumprirei esta noite.", pensou esperançosa."Preciso me apressar. Ou ele pensará que desisti." E ela nunca desistia.

A Praça não estava tão longe para corvos, mas para uma garota com pés ao invés de asas, o caminho era mais longo. Hoje ela escolheria o caminho mais curto. Primeiro por provavelmente já estar atrasada e para poupar um pouco suas pobres botas velhas e rachadas. A névoa parecia dissipar-se diante dela e fechar-se novamente quando passava. Os paralelepípedos estavam úmidos e escorregadios sob seus pés. Ela ouviu o miado melancólico de um gato. Aquela era uma boa cidade para gatos, eles se esgueiravam por todos os lados, especialmente à noite. E, de dia, seu lugar preferido era o Mercado de Elspeth. Era também uma cidade tortuosa. Repleta de subidas e descidas bruscas. As ruas eram tortuosas, os becos mais tortuosos ainda, e os canais eram os mais tortuosos de todos.Ela nunca tinha visto uma névoa tão densa quanto aquela. “Na névoa todos os gatos são cinza.”, pensou ela. “Na névoa, toda sombra é um inimigo, todos os homens são assassinos.”

Passou por um homem velho com uma lanterna caminhando para o outro lado, e invejava sua luz. A rua era tão sombria que ela mal podia ver onde pisava. Nas partes mais pobres da cidade, os andares superiores das casas, bordéis e botecos ficavam tão próximos que era possível passar de uma varanda para outra. As ruas abaixo eram agora túneis escuros onde cada passo seu ecoava.

A Praça ficava na borda da cidade, e desembocava no Porto das Uvas, ela atravessou a Praça, passando pela Ponte de Carvalho apressadamente, seus passos ecoando nas tábuas de madeira enegrecida. O nevoeiro abriu-se diante dela como uma cortina velha, para revelar uma porta num muro de pedra. Era a parte detrás de um teatro de pantomima. Mais adiante, a rua perdia-se entre cinza e mais cinza. Uma luz amarela-manteiga derramava-se pela porta, e ela podia ouvir uma voz cantarolar. Arrastou-a com grande esforço, era velha e pesada, e rangia tão alto que ela pensou que seria possível acordar a todos. Um pequeno e sujo corredor pairava à sua frente. Ao fundo, três caixas de madeira e um barril velho estavam dispostos estrategicamente para que ela pudesse escalá-los e chegar ao telhado de telhas avermelhadas do pequeno edifício. “Ele já chegou.”, ela concluiu. “Está a minha espera.”. Baixou o capuz e iniciou a escalada.

Apoiado no braço esquerdo, ele de fato estava lá, mordendo uma pera madura, o sumo escorria pelo seu queixo. Ao vê-la, ele se limpou e sorriu. Seus cabelos castanho-escuros pareciam quase negros sob a luz da lua que, de quando em quando, se escondia por detrás de uma nuvem ligeira. Seus lábios eram grossos e, ao sorrir, formavam um sorriso meio torto, que poderia dizer muitas coisas. Suas sobrancelhas eram igualmente grossas, trazendo aos seus olhos cor de mel um tom de seriedade.

— Ora, pensei que não viria mais. — Ela se aproximou e sentou-se ao lado, sem dizer palavra. Angelo era uma das poucas pessoas que não se importava que ela não falasse. Na verdade, ele conseguia falar pelos dois! E, curiosamente, parecia sempre adivinhar o que ela queria dizer apenas observando seu olhar. — Você não está atrasada. Ainda são quatro da manhã segundo o relógio da catedral. Agora está fedendo como um porco, não deveria ter vindo correndo, mas eu posso te ajudar com isso. — Fez uma pausa e olhou para a cidade. Tochas cintilavam e tremulavam no alto das torres, e umas poucas lanternas brilhavam na Praça da Catedral, pouco mais ao norte. Algumas também iluminavam o cais ao longo das margens do rio Theurge, onde, mesmo sendo tarde da noite para uma cidade em que a maior parte da população se recolhia ao cair da noite, uns poucos marinheiros e estivadores ainda podiam ser vistos na escuridão, ainda ocupados com suas embarcações, apressavam-se para cuidar dos últimos detalhes das tarefas de cordame, enrolando bem as cordas nos deques escuros e limpos, enquanto os estivadores corriam para transportar e puxar cargas até a segurança do armazém mais próximo. A lua havia se erguido soberana no céu agora cor de cobalto ante uma horda de estrelas submissas. Sua luz caía sobre a Praça da Catedral onde a Ponte de Fargath, com suas abarrotadas lojas, agora escuras e silenciosas, se juntava à margem norte do rio. — Vejamos... O telhado de Santa Catriona, se não for demais para você... — Ele riu perante os olhos desafiadores dela e continuou. — Além disso, não fica muito longe de onde preciso ir. Mas há apenas mais uma coisa: não vamos correr pelas ruas, mas sobre os telhados.

A menina respirou fundo e apertou o laço da capa, preparando-se para correr. Sem dizer mais nada, Angelo disparou e começou a escalar uma parede de reboco ali perto com a facilidade de uma lagartixa. Parou no topo, parecendo quase hesitar entre as telhas vermelhas arredondadas, gargalhou e disparou novamente. Quando ela chegou ao telhado, o garoto estava a vinte metros de distância, sua silhueta negra desaparecendo e aparecendo enquanto ele pulava entre os telhados como um gato das ruas. Ela partiu atrás dele, esquecendo tudo na animação cheia de adrenalina da perseguição. Ali no alto, nada mais importava. Não havia promessas para cumprir, não havia nada, nada, nada... Apenas o vento.

Então ela viu Angelo dar um salto poderoso num vazio negro como breu e aterrissar suavemente no telhado plano de uma biblioteca cinzenta, ligeiramente abaixo do nível daquele de onde tinha saltado. Correu um pouco mais para frente e esperou. Sentiu uma pontada de medo quando o abismo da rua, oito andares abaixo, se abriu à sua frente, mas ela sabia que preferiria morrer a hesitar diante do amigo. E então, reunindo coragem, deu um enorme salto, vendo enquanto voava as duras pedras de granito do calçamento brilhando ao luar sob seus pés suspensos. Por uma fração de segundos, enquanto a parede cinzenta do prédio à sua frente parecia se erguer na sua direção, ela se perguntou se havia calculado errado; mas então, de algum modo, a parede sumiu e ela estava sobre o teto — meio desajeitada, é verdade, mas ainda de pé, louca de alegria, embora respirando com dificuldade.

— A pequenina ainda tem muito que aprender — provocou Angelo, acelerando de novo, uma sombra faiscante entre as chaminés sob as poucas nuvens. Ela se atirou para frente, perdida na loucura do momento. Outros abismos se escancaravam abaixo dela, alguns estreitos sobre meras ruelas, outros mais estreitos ainda sobre meros becos, mas outros sobre ruas largas. Angelo havia sumido. De repente a torre de Santa Catriona se ergueu diante dela, surgindo da curva vermelha do telhado suavemente inclinado da igreja. Mas, ao se aproximar, lembrou que a igreja ficava no meio de uma praça e que a distância entre seu telhado e os dos edifícios que a rodeavam era muito maior do que qualquer uma que ela já tinha saltado. Ela não ousou hesitar ou diminuir a velocidade agora — sua única esperança era que o teto da igreja fosse mais baixo do que aquele de onde ela teria de saltar. Se conseguisse se lançar para frente com bastante força, e realmente se colocar no ar, a gravidade faria o resto. Por um ou dois segundos, ela voaria como um pássaro, e experimentaria as asas da liberdade. Ela afastou da mente qualquer pensamento sobre o que aconteceria caso falhasse. A beirada do teto em que estava se aproximou rápido e então...

...nada. Ela pairou, ouvindo o ar assobiar em seus ouvidos uma canção que jamais escutara, sentindo os olhos lacrimejarem. Ela sentia o coração bater rapidamente e suas mãos estavam frias de suor. O teto da igreja parecia estar a uma distância infinita — ela jamais o alcançaria, jamais voltaria a ver seus irmãos, ou Angelo. Não conseguia respirar. Fechou os olhos, e esperou a queda.

Seu corpo se curvou e ela se equilibrou balançando as mãos e os pés, mas eles estavam apoiados no chão de novo: ela havia conseguido — aterrissara a centímetros da borda, mas tinha conseguido saltar no telhado da igreja!

Não conseguiu segurar e soltou um grito de comemoração que ecoou por toda a Praça. Mas onde estava Angelo? Ela escalou até a base da torre e se virou para observar o caminho de onde tinha vindo bem a tempo de ver o amigo voando pelos ares. Angelo aterrissou com firmeza, mas seu peso fez com que duas telhas de argila vermelha saíssem do lugar e ele quase perdeu o equilíbrio quando elas deslizaram pela beirada do telhado, espatifando-se contra as pedras duras e frias do calçamento lá embaixo. Porém, Angelo conseguiu se recuperar, ofegando, com um enorme sorriso orgulhoso no rosto.

— Ah, não é tão tartaruga assim, afinal — falou, ao se aproximar para dar um tapinha no ombro dela. — Você passou por mim como um raio, o que andam te dando naquela espelunca?

Ela riu em resposta e apoiou as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego. O suor escorria quente por sobre sua testa e bochechas.

— Bem, você não chega antes de mim ao topo da torre — devolveu Angelo, empurrando-a para o lado, e começou a escalar a torre que os patronos da cidade pensavam em substituir por algo mais moderno. Dessa vez Angelo chegou primeiro, e teve até de dar a mão à amiga cansada, que estava começando a achar que dormir não seria uma ideia assim tão ruim. Os dois estavam ofegantes e ficaram parados por um momento para se recuperar, olhando para a cidade serena e silenciosa à luz dourada da aurora que começava a se espreguiçar por detrás das montanhas no mais longínquo horizonte.

Angelo a encarava. Ela, aquela garotinha esfarrapada e suada ao seu lado, o transmitia uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionante. Era lenta e quase não falava. Seu rosto parecia estar marcado por mil lágrimas e mil tragédias. Ele sentia que ela não esperava mais nada de nada nem de ninguém, que estava absolutamente sozinha e numa altura tal qual que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deveria achá-la antipaticíssima. Era impossível sentir-se à vontade perto dela, não que sua presença fosse desagradável, mas porque fazia com que pressentissem que ela estava sempre sabendo exatamente o que se passava ao seu redor.

— Faça como os elefantes, se estão tristes, simplesmente desaparecem — ele disse, com uma solenidade incomum, no que ela o olhou espantada, seus grandes olhos castanhos o encarando sob a luz púrpura do céu que antecede o amanhecer.

Os dois ficaram quietos, apreciando a perfeição do momento, mas depois de um tempo Angelo falou em voz baixa:

— Venha, preciso ir a um lugar. — Ele foi até a beira da torre para descer até o teto e ela não poderia fazer nada, senão segui-lo.

Quando chegaram a um prédio escuro, no final de uma ruela vazia, Angelo bateu a uma porta de olmo, que de tão velha parecia cinza. E cinza também parecia quem os atendeu. Uma senhora muito velha, estava parada diante deles, os olhos muito claros brilhando como duas luas na penumbra. Levantou um braço trêmulo e velho e passou os dedos longos e finos no rosto de Angelo, que segurava uma gargalhada. Ela os encarava sem os olhar, sua boca murcha retorceu-se no que pareceu um sorriso quando terminou de esfregar o rosto de Angelo, agora seus dedos iam em direção à menina miúda ali. Por uma fração de segundos, ela quase fugiu. Mas ao sentir o toque dos dedos da velha, acalmou-se. Suas mãos eram quentes, e não frias como era de se esperar. Seu toque era suave, quase angelical. Ao guardar sua mão novamente no bolso de suas vestes cinza, a velha senhora não esboçou nenhum sorriso, nem um resquício de surpresa. Era como se ela aguardasse a visita de ambos há muito tempo.

Fez para que entrassem e a menina viu Angelo sumir na escuridão de um corredor estreito e feioso. Ela o acompanhou e a senhora fechou a porta às suas costas. Era uma casa mínima, e as divisórias dos cômodos eram feitas com estantes velhas e tortas, com livros mais velhos ainda, alguns do tamanho de paralelepípedos e grossos como uma tora de madeira. Outros eram miúdos e tão finos quanto um pergaminho. Relógios cobriam uma parede da casa, redondos, quadrados, triangulares, de todas as formas, cores e tamanhos. E estavam todos errados, alguns até parados. A menina olhou para um corredor e pareceu a ela, que daquele ângulo, o corredor não tinha fim. Pareceu a ela que acabara de entrar em um lugar que poucos conheciam. Um tipo de biblioteca exclusiva. Até a poeira e o mofo ali pareciam retinir uma espécie de magia. As únicas fontes de iluminação vinham de uma janela na cozinha e uma vela num prato posta numa mesa manca de eucalipto. Havia três cadeiras. E os dois sentaram enquanto a velha se dirigia até o fogão. Ela parecia de alguma forma, ansiosa.

— Essa velha é louca — Angelo sussurrou. — Acha que qualquer um que entra aqui, é algum neto há muito perdido. Ela é cega, entende? Espere e veja.

A velha voltou do fogão carregando um bule de latão cheio de ferrugem e três xícaras empoeiradas e serviu o chá. A menina tomou, esperando um gosto terrível, mas o que veio a ser fora um gosto doce e forte. Tão forte que fez seus olhos lacrimejar. Ao sentar-se pesadamente na cadeira à frente do casal de amigos, a velha gemeu e fez uma careta.

— Angelo... — a velha pronunciou, como que pesando o nome, numa voz rouca. — Finalmente.

— Como você sabe meu nome? — perguntou, com os olhos arregalados. A menina notou que ele parara de tomar seu chá e abria e fechava a boca, confuso, procurando uma explicação.

— Eu não sou cega. E sei exatamente tudo sobre quem entra por aquela porta — respondeu, com um tom divertido e irritado na voz roufenha. A velha agora olhava diretamente nos olhos de Angelo. Suas duas luas cheias esbranquiçadas encarando os sóis cor de mel do menino. — Há muito tempo tenho esperado por vocês dois. Espalhar o boato foi fácil, toda criança tola adora uma velha estranha que vive sozinha, agora fazer com que ele chegasse às suas orelhas rosadas, ah, isso foi difícil. Mas eu dei um jeito.

A garota estava assustada. Se a velha sabia tudo sobre quem entrava naquela casa, talvez ela soubesse seu nome...

— Não se preocupe minha criança. — Seus olhos se voltaram para ela e uma estranha sensação se apossou da menina, como se aqueles olhos pudessem atravessá-la... A sala começou a embaçar e ela sentiu a dura madeira da mesa contra o seu rosto.

Ela estava na escuridão. Sentia-se pegajosa, suas roupas pareciam estar molhadas, grudadas ao corpo. Permitiu-se abrir os olhos e vislumbrou uma mesa, duas xícaras e uma velha senhora à sua frente, que parecia se divertir. Tudo ao seu redor era névoa, mas não a mesma névoa da qual ela estava acostumada, essa névoa estava viva! Rostos contorcidos transpareciam por entre a branquidão fumarenta, silhuetas, sombras, facas, armas, passos, gritos. Ela olhava e olhava, mas não conseguia encontrar a fonte da balbúrdia. O cheiro de sangue era forte em suas narinas... "É um sonho.", ela tentou se convencer. "Apenas um sonho, e eu acordarei em breve.".

"Isso não é um sonho, querida.", disse uma voz suave e firme à sua frente. A velha continuava a encara-la, sua boca não fazia o menor dos movimentos. "É mais real do que eu gostaria que fosse." Ela ouvia, e ouvia, e ouvia. E não queria escutar. Tapou com força os dois ouvidos com as mãos e começou a gritar, mas ainda conseguia ouvir a carnificina que se prolongava e parecia nunca chegar ao fim.

Quanto mais gritava, mais alto ficavam os passos, os tiros e os cheiros. Ela não enxergava mais nada. Sua visão embaçara novamente, lágrimas de mil toneladas pingavam em suas pernas. Ela tentava gritar, mas não sabia falar. Não encontrava sua voz. Ela se esvaíra. E não se lembrava de como poderia tê-la perdido. "Estou muda", pensou desesperada, "Estou muda.". Ela jamais quis falar tanto quanto agora. Sua garganta queimava na tentativa de gritar, de sobrepor sua voz à carnificina que parecia não ter fim.

— Por favor, faça parar! — ela finalmente disse, entre soluços, suplicando. — Por favor!

Então o silêncio se fez presente. Ela olhou para cima e viu a velha enchendo a xícara sua frente com o mesmo líquido lhe dera há pouco. "Você retornará", ela disse, sem mover os lábios marcados pela idade. "E quando o fizer, o chá ainda estará quente.". Sua visão entorpeceu e ela engasgou-se ao voltar para o ambiente poeirento que era aquela casa escura, no fim de uma ruela vazia.

— O que você fez com ela, sua bruxa maldita?! — gritava Angelo, segurando a menina em seus braços, ajoelhado ao chão. — O que você fez?!

A velha senhora parecia tão assustada quanto à menina estirada no chão, tentou se levantar e precisou apoiar-se na grande mesa manca para não cair.

— Eu... Eu não... Eu não sei... — Ela balbuciava confusa. Os olhos vidrados na garota ao chão. — Mas ela sabe. Ela tinha que saber. É claro!

Com uma agilidade quase impossível para alguém de sua idade e tamanho, a velha se curvou até a menina e ajudou-a a levantar-se.

— Você precisava saber. Agora você sabe. Vá. Vá! — A bruxa gritou e gritou e gritou até a pequena menina correr fugindo para fora daquela casa, deixando a velha senhora sozinha com Angelo, suas pernas já há muito cansadas para acompanhá-los. — Você, fique. Preciso que você me ajude. Eu sabia que não aguentaria mais uma... Ela é a nossa única esperança. Estou definitivamente na escuridão...

— Não... Você precisa ajudá-la, eu preciso ajudá-la. Temos que ajudá-la. Precisamos ir — insistiu Angelo.

— Garoto estúpido. Ela precisa enfrentar isso sozinha, não entende? Ela precisa se lembrar. E não, não precisamos ir. Algumas pessoas, assim como eu, não nasceram para obter glória e honra. Somos destinados ao fracasso e à repulsão psíquica promovida por nossas próprias mentes. Absorvidos pelo buraco negro de nossas almas, prováveis rombos construídos em um não tão longínquo passado, mas rombos que sugam e queimam histórias... Que destroem futuros...

A menina não soube dizer o quanto correu em que direção correu ou se estava realmente correndo. Ela não enxergava um palmo à sua frente. Ainda era noite na maior parte da cidade, e uma completa escuridão como breu se apossava na direção em que ela seguia. A névoa nas ruas só começara a se dissipar agora, embora em pequenas quantidades. Topou em três vultos encapuzados enquanto corria, as pedras do calçamento eram lisas e sua bota estava gasta. Quase caíra duas vezes. "Não posso cair", ela repetia a si mesma. "Não posso cair. Se cair estarei morta.".

Depois do que pareceu uma eternidade, ela chegou ao fim de uma conhecida rua, que desembocava num canal de águas esverdeadas. Parou à frente da porta do conhecido prédio. Era uma porta vermelha, com ornamentos em ferro negro. Era uma bela porta, e mesmo despedaçada como estava agora, tinha sua beleza. Uma beleza cruel, fria. Ela a empurrou e entrou.

As luzes amareladas que outrora iluminavam o corredor piscavam e algumas estavam completamente destruídas. Havia buracos de balas em várias partes das paredes floridas. Rosas, tulipas, lírios, magnólias, todas, choravam sangue. Tanto sangue... Ouviu passos em qualquer andar acima, e disparou até a escada. Tentou convencer a si mesma que os sons que escutava eram apenas uma sinfonia de dor e agonia que penetrara tão facilmente em sua vida quanto o vento em suas roupas, quanto o horror no mundo. Ouvia tiros para todos os lados. O contínuo ressoar do choro dos inocentes que agonizavam no chão duro que esquentaria seus corpos. Ouvia os gritos em busca de vida, os passos daqueles que tentavam, em vão, fugir. A incessante risada dos assassinos ficaria para sempre em suas lembranças. Engasgada em sua garganta. A lágrima que jamais caíra de seus olhos acastanhados…

Sua visão começava a embaçar. "Não posso chorar. Se chorar estarei morta.". Ela parou num corredor escuro, de carpete azul, avistou dois sapatos altos abandonados durante a correria. Ela seguiu pela escuridão, em silêncio, o soalho rangendo sob seu peso. Podia ouvir seu coração batendo por todo o corpo. Seus olhos ardiam e quanto mais tentava forçá-los a se acostumar com a escuridão, menos conseguia enxergar. Ela ouviu o barulho de uma garrafa se quebrando às suas costas e correu desesperada. Parou abruptamente ao sentir uma mão forte puxando seu manto a ponto de rasgá-lo. O laço que o prendia ao seu pescoço a estava sufocando, e ela viu um rosto pálido como leite coalhado e uma cabeça careca como um ovo arrastá-la para um quarto até ali.

Com muita dificuldade ela soltou a amarra da capa e voltou a respirar, tossindo ruidosamente.

— Eu sabia que isso iria acontecer... Eu sabia — ela ouviu uma voz balbuciar na escuridão por ali. Uma voz cansada. Sempre cansada. — Orzhos nunca foi de confiança. E vocês... Crianças pestilentas. Com seus sorrisos tortos. Você irá pagar sua promessa esta noite. Agora. E se todos nós vamos morrer, eu me certificarei que você não deixará pendências nesse mundo.

Aratheo a agarrou com duas gordas mãos, e a levantou no ar, terminando de rasgar seu manto de prostituta. A menina se contorcia em seus braços, tentando se libertar, mas ele era muito mais forte e cinco vezes maior que ela. Não teria a mínima chance. Ele a jogou contra a parede, e ela bateu num móvel. Seu corpo pequeno não fazia o menor dos ruídos. E ela nunca falava. Não permitiria que ele arrancasse uma palavra sequer de sua boca. Não esta noite.

Tateou o chão ao seu lado, encontrando os restos de uma cadeira destruída e os jogou em todas as direções, na esperança de que acertasse seu agressor. Aratheo a pegou pela cabeça, arrancando tufos e mais tufos de seus cabelos grossos e quebradiços. "Cabelos crescem novamente", ela pensou. Sua cabeça ardia tanto que era capaz de explodir. O gordo homem a puxou para si e ela notou que ele estava nu, seu corpo suado roçando contra suas roupas velhas e finas, quis vomitar.

Então ela se lembrou. Guardara uma lâmina de verdade num dos bolsos secretos de seu manto, precisava encontrá-lo. Mas como? Estava tão escuro...

Ela tirou a faca de frutas que carregava no quadril e esfaqueou os braços que a seguravam. Esfaqueou o máximo e o mais rápido possível, esfaqueou até seus braços começarem a doer, esfaqueou até a velha faca de frutas partir ao meio. Esfaqueou até os braços a soltarem e ela cair novamente ao chão. Arrastou-se o mais rápido que pôde, o mais rápido que suas pernas conseguiam, até encontrar um pedaço esfarrapado de pano à sua frente na escuridão, enfiou a mão no bolso secreto do lado de dentro do manto e então...

...ela encontrou algumas moedas. Estava perdida. Um braço flácido e pegajoso de sangue a agarrou por trás, apertando seu pescoço, sufocando-a. Suas pernas desistiram de viver. Mas seus braços continuaram lutando. Ela não poderia morrer assim. Poderia ser ninguém, mas ainda não terminara o que viera fazer, ela tinha de encontrá-los. Tinha que encontrar seus irmãos, ela precisava saber. Um pedaço disforme de qualquer coisa foi de encontro à sua mão direita e ela segurou. Segurou com tanta força que cortou seus dedos. Não morreria naquela noite, pelo menos, não assim.

— NÃO! — ela gritou. E gritou, e gritou, e gritou. — NÃO! NÃO! NÃO!

Pressionou a faca despedaçada no peito vermelho de Aratheo até ele parar de lutar, e seus braços caírem, mortos, ao chão.

A menina arrastou-se até a porta. Rastejou pelo corredor. Seus dedos doíam tanto que ela mal podia mexê-los. Sua cabeça latejava e suas pernas estavam mortas, geladas. Ela precisava chegar até em cima, subiu pesadamente os primeiros degraus da escada no fim do corredor, socando suas pernas inertes, na esperança de fazê-las voltar a andar. A escada parecia não ter fim, ela ouviu passos nos andares de baixo e vozes e gargalhadas. "Não posso olhar para trás. Se olhar para trás, estarei morta.", pensou consigo mesma.

Dois pares de pernas vestidas em calças pretas e pés calçados em botas pretas surgiram à sua frente. Mãos rudes a agarraram pelo braço e a levaram para cima. Jogando-a no corredor de carpete cinza, repleto de pelotas de mofo e poças de sangue.

Seu irmão Caleb estava no fim do corredor, ajoelhado e com os braços amarrados às costas. Rodeado por quatro outros homens, todos vestidos em negro. As mãos que a seguravam colocaram-na em pé. Suas pernas tremeram sob seu peso, mas ela conseguiu se equilibrar.

— Esta é sua irmã? — o homem à sua esquerda perguntou para Caleb, no que ele balançou a cabeça positivamente. O homem riu e disse: — Bem, diga adeus.

Suas pernas cederam. E seu rosto foi de encontro ao chão, queria chorar, gritar, correr, fugir dali, e nunca mais voltar a ver aquelas paredes floridas. Ela agarrou o pedaço liguento de sangue do que restara de sua faca de frutas, e o guardou em sua mão.

— O que você tem aí? — outra voz masculina perguntou. — Deixe-me ver.

— São apenas moedas — ela respondeu, numa voz sem emoção.

— Então me dê-as para mim. — O homem agachou em sua direção e estendeu a mão.

A menina, ligeira como um gato de rua, agarrou seu antebraço e voou em seu pescoço, enterrando sua faca de frutas na garganta do estranho. Então, tudo aconteceu muito rápido. Os quatro homens que rodeavam Caleb avançaram para cima dela, o segundo homem que a havia puxado pela escada, caiu de joelhos ao chão, chorando sob o cadáver do homem que ela esfaqueara. Ela sentiu socos e pontapés por todo o seu corpo, tentou tapar o rosto com as mãos, mas de nada adiantava, eles continuavam socando-a e chutando-a até a morte.

— Você matou nosso irmão! — ela ouviu um deles gritar. — Agora nós mataremos você.

Eles continuavam a espancá-la, até que, de repente, pararam. E ela estava estirada ao chão. Seu rosto uma massa disforme e destruída. Ela ouviu passos às suas costas e os homens afastaram-se dela enquanto o outro estranho se aproximava. Sua visão estava embaçada e seus olhos inchados, manchas roxas e vermelhas a invadiam de quando em quando.

— Não a matem — ela ouviu uma estranha voz feminina proferir. — Há coisas muito piores que aguardam o homem do que a morte.

— Eu não sou um homem. — a menina respondeu, cuspindo sangue.

— Ha, disso eu sei. — A mulher riu desdenhosa. — Deem a ela uma arma.

Ela pôde sentir a dúvida e a incredulidade pairar sob os homens no corredor. Caleb soluçava baixinho. Ouviu o crac sonoro como um trovão de uma arma caindo à sua frente.

— Levante-se — a mulher ordenou. E ela obedeceu. — Agora... Mate seu irmão.

A menina não podia acreditar. Queria estar morta. Deveria ter caído no caminho para lá e morrido. Deveria ter deixado Aratheo estuprá-la e matá-la. Deveria ter sido espancada até a morte. Deveria ter dormido naquela noite, e morrido junto das outras pessoas, assassinadas cruelmente no prédio. Nada era pior do que isso. Sentia o corpo todo estremecer. Sua mão suava fazendo com que a arma, pesada, escorregasse entre seus dedos, pálidos e gelados de medo. Seu pulso doía e o braço protestava num constante arder. A ferida aberta em sua perna escorria, fazendo com que se arrepiasse da cabeça aos pés. Jamais se esqueceria dos rostos que lhe rodeavam. Não se permitira esquecer a expressão de Caleb, ajoelhado, no centro do círculo de monstros. Ela se lembraria, pois, um dia, haveria de ver o mesmo desespero no olhar de cada um deles. Ela se lembraria porque era seu dever. Tinha, a partir daquele momento, uma dívida com o mundo. Ela se aproximou de Caleb o máximo que lhe foi permitido.

— Você sabia o que significava a promessa? — ela perguntou numa voz que não passava de um sussurro. — Você sabia que eu seria vendida e estuprada todos os dias?

Caleb estava perplexo, seu rosto era um poço de lágrimas, ele engoliu em seco e respondeu:

— Sim, eu... Eu... Eu sabia — ele gaguejou. — Me desculpe... Eu... Eu achei que você tinha enlouquecido. Depois de tudo o que aconteceu... Você... Você... Você não falava mais. Não... Era como se... Era como se estivesse morta. Eu e Davi... Nós precisávamos de um lugar para ficar... Você não parecia mais a nossa irmã...

— Você me traiu — ela respondeu. — Você me vendeu. Vendeu-me como se eu fosse um objeto... Uma moeda...

E então ela se lembrou. Lembrou seu nome. Lembrou-se de quando Caleb sorria, e de quando ele dormia sem antes chorar tanto a ponto de engasgar-se. Lembrou-se de antes da guerra, de antes da primeira lágrima e da primeira bomba explodirem. Lembrou-se de Davíodred, dos acolhedores olhos azuis de sua mãe, de como a barba de seu pai era áspera contra sua pele. Lembrou-se da risada de Angelo. Lembrou-se que, em algum lugar lá fora, uma xícara de chá quente a estaria esperando. Lembrou-se de antes de sua casa transformar-se num amontoado de memórias queimadas. Uma família mutilada, mas no final das contas, normal. Ela se lembrou do tempo em que ainda era viva por dentro...

...naquela noite, apertara o gatilho uma só vez, mas dois corações pararam de bater.

Ouviu o som, como o rugido de uma fera monstruosa, e uma pequena e fina nuvem de fumaça formou-se em sua frente, com o cheiro do inferno. Ela segurou a respiração, beijou o chão de carpete cinza do corredor, e chorou. Por quem, não sabia dizer.


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Notas finais do capítulo

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