Submissão escrita por Gabriel Campos


Capítulo 8
Regurgitar


Notas iniciais do capítulo

Talvez vocês se sintam um pouco vingados com esse capítulo
(perdão por ter matado a Lee)



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Nota do Diário

Fortaleza, 31 de Agosto de 2004.

“Pensei em repetir o que eu escrevi aqui quando eu tentei me afogar. Sim, eu pensei em suicidar-me novamente, pois não há nada mais que eu possa fazer nesse mundo. Mas não, eu não tenho coragem. Desculpa pelas falsas promessas e até por eu ter me ausentado e ter parado de escrever aqui durante esses dias, mas eu não penso mais em nada, não faço mais nada. Até deixei meu emprego. Com o dinheiro das contas, comprei muitas, muitas, muitas porcarias. Tantas porcarias que eu ainda não consegui terminar de comer. Somente muito açúcar pra tirar essa mágoa que eu sinto. Eu peso mais de cem quilos, mas me sinto leve pelo simples fato de que não há mais o que preencher-me. Sou um homem sem alma; meu único sentimento é a raiva, o desprezo, tudo o que eu não poderia sentir por causa da velha carniceira. Ela me humilhava e eu não podia contestar. De certa forma, mesmo acabado, eu ainda estou por cima dela. Eu quero vê-la. Quero que ela olhe pra minha cara e me ouça; não será pouco.”

O único presídio feminino de Fortaleza ficava um pouco distante da casa de Felipe. Ele odiava ter que andar de ônibus, mas era necessário.

Estava no horário de visitas e Glória não esperava que a carcereira fosse chamá-la. Na verdade não esperava sair dali nunca mais, pois agora estava respondendo também pela morte de Joana Lee.

— Ô Glória. Visita pra senhora!

Ela foi algemada e acompanhada por duas policiais, pois era considerada uma das piores bandidas daquela prisão. Todavia, muitas das presas a admiravam pela tamanha coragem de fazer a tal revolução que acontecera.

Era uma espécie de refeitório onde aconteciam outras visitas. As duas policiais colocaram Glória sentada no banco do refeitório bem em frente a Felipe e saíram, ficando na porta vigiando-a.

— Felipe, meu neto! Veio visitar sua velha avó? Então quer dizer que você me perdoou? Você entendeu que aquela negrinha não era gente.

— CALA A SUA BOCA, PORCA DESGRAÇADA!

— Não fala comigo desse jeito!

— E eu falo como? Hein? Me explica como tratar o demônio em pessoa! Com reverência, sua puta? Aqui você deve se sentir em casa, não? É o inferno...

— Seu gordo ingrato. Eu peguei você pra criar por livre e espontânea vontade, e eu te dei tudo o que você tem!

— Me deu o quê? Hã? Não adianta jogar esse papo pra cima de mim de novo. Você é um nada. Eu espero que você apodreça aqui dentro. Não quero que você morra, e sim que viva. Que viva e sofra até agonizar e pedir pra morrer sua velha desgraçada.

Felipe acabou a conversa com uma bela cuspida no rosto de Glória, representando assim um ponto final em sua relação com ela.

Ler escutando: Máquina - Submissão.

Sentiu que o desabafo lhe fez mal. Que a avó não merecia nem mesmo a saliva que ele despejara no seu rosto. A casa estava escura, não havia mais nem mesmo o cantarolar de Joana. Ela sempre cantava. Podia ainda sentir a presença dela pela casa. Naquele tempo era tão perfeito, tão... semelhante ao paraíso!

Felipe não conseguia pensar, só chorar. Encostou-se na parede do quarto e apoiou-se apenas com o peso das costas. Deixou deslizar-se até o chão onde ficou sentado chorando. Tinha sede, mas não força para se levantar. Alcançou a caixa onde guardava as guloseimas. Abriu um pacote de Fandangos e despejou tudo na boca. Os que caiam no chão ele não ligava de pegar depois, não se incomodando com a imundície.

Comeu bastante, mas sentia sede, muita sede. Não sabia se era uma imagem, uma miragem, mas viu ela, sua Joana, estendendo-lhe a mão. Ele queria ajuda, no mínimo um copo d’água. Entretanto não conseguia se levantar, mas a situação desesperadora fazia com que ele esticasse mais e mais o seu braço, tentando alcançar a moça que estava parada a sua frente, com um vestido branco e um sorriso neutro.

— Me ajuda Joana.

— Você me ama?

— Eu te amo. — respondeu-lhe Felipe.

— Promete que nunca me deixa ir?

Ao ouvir a pergunta, Felipe, que já estava tonto, desmaiou.

— Acorda Felipe, cara.

Enquanto Felipe abria os olhos, Renato observava a bagunça daquela casa: comida espalhada por todo o chão, roupa suja amontoada e pratos, copos e talheres por cima dos móveis.

— Renato, cara... Eu vi a Joana! — disse Felipe, ainda meio zonzo.

— Não, cara. Não tinha ninguém aqui. Você deixou o portão lá de fora aberto. O que aconteceu?

— Eu quero água...

Felipe bebeu dois copos cheios de água gelada. Renato estava querendo ajudar o colega.

— Felipe, faz dias que você não vai à aula. Os professores estão preocupados.

— Eu não sou ninguém mais.

— Eu te trouxe uma coisa. Talvez te alegre um pouco.

Renato foi até a sala e depois voltou até o quarto com um violão em mãos.

— É seu.

De início recusou o presente, mas quando começou a tocar, matou as saudades. Contou ao amigo sobre a saída do emprego, sobre o que passou por todos esses dias e sobre a visita à avó. Chegou a esquecer por uns momentos de todos os seus problemas.

Nota do Diário

Fortaleza, 1º de Setembro de 2004.

“Sabe diário, às vezes eu penso que os verdadeiros amigos se mostram na hora do aperto. Renato mostrou-se um verdadeiro amigo se importando comigo. E como esse espaço é meu, íntimo, sinto dizer que antes de ele se mostrar essa ótima pessoa, eu não tinha essa concepção dele. As aparências realmente enganam.

Aquele violão foi a melhor coisa que poderia ter acontecido depois de tudo o que eu passei. O som dele amenizava minha dor. Cantar e tocar Wonderwall me deixava mais perto dela. Os pensamentos para o futuro que eu tinha voltavam à minha mente como se fosse mágica. Eu voltei a sorrir pensando que estava com ela de novo perto de mim. Sim, sim.

Renato me convidou para morar na casa dele e eu aceitei. Não tinha outra escolha. Se eu quisesse viver eu teria que sair da minha casa, tentar esquecer-me dos momentos bons e ruins — em sua maioria ruins —, porém os bons compensavam. Apenas o final de tudo foi mais trágico do que eu poderia imaginar. Bola pra frente, sem trocadilhos.”

— Pode comer Felipe. Sinta-se em casa. — disse a mãe de Renato.

Felipe parecia envergonhado. Não conseguia pôr um grão de arroz na boca. Não conseguia comer na frente de ninguém.

— A comida ta ruim, Felipe?

— Não, Renato. Não é isso. É que eu to sem apetite mesmo.

A irmã mais nova de Renato, que tinha por volta de doze anos, deu uma risadinha, mas sua mãe olhou torto para ela e a garota se aquietou.

— Sinto muito pela sua namorada. — disse a mãe.

— Obrigado. Se vocês não se incomodarem, eu gostaria de ir pro quarto...

— Claro que não nos incomodamos. A casa é sua, Felipe. Pode ficar a vontade.

— Desculpe por recusar o jantar.

Tirou da mochila um pacote de biscoitos recheados e os devorou rapidamente. Alguém bateu na porta, e ainda de boca cheia, pediu para que a pessoa entrasse.

— Felipe... E a sua doença?

— Oi? Que doença? Não sei do que você ta falando, Renato.

— Hoje na enfermaria da escola me disseram o que aconteceu com você naquele dia, quando desmaiou na hora da aula de Educação Física. Como é que você quer ficar bom recusando a comida saudável da minha mãe e enchendo a barriga de doce?

— Quem disse que eu quero ficar bom? — pegou os biscoitos novamente.

— Cara, diabete é coisa séria! — disse tomando o pacote de biscoitos das mãos do amigo.

Felipe ficou calado e de cabeça baixa. Renato continuou:

— Desculpa, cara. Eu não queria brigar com você. Eu quero o seu bem!

— Eu entendo. Mas não tem saída. Agora é só esperar a hora da minha morte.

— Ei! Não diz isso. Você vai terminar o 3º ano, vai passar no vestibular e vai estudar gastronomia. Você não disse que queria ser chefe de cozinha?

— Eu nem sei se quero mais. — respondeu.

— Você quer sim. E acho melhor você estudar porque daqui a pouco chega o dia da prova.

São Paulo, 20 de Setembro de 2004.

Estava tudo pronto. Aquele seria o jantar onde finalmente Henri pediria a mão de Lana em casamento. James, de cara fechada, assistia TV com o avô enquanto Lana preparava o jantar com a mãe.

— Será que ele vai gostar do risoto, mãe?

— Lana, minha filha... Eu fisguei seu pai com esse prato.

As duas riram e James olhou para a cozinha. A mãe parecia feliz. Com outro homem? Aquilo o incomodava. Não suportava a ideia de ver a mãe com outro homem que não fosse seu pai.

As duas saíram da cozinha.

— James, fica cuidando das panelas enquanto eu ajudo a sua mãe a escolher uma roupa?

— Claro vó.

— Então vamos Lana, minha filha, que o Henri vai já chegar.

Lana ficou pensativa. Nunca havia visto o filho tão prestativo como naquela noite. Seria mesmo ele, o mesmo James ciumento de sempre?

As duas saíram par ao quarto e ficou apenas o avô na sala assistindo atentamente à TV. Foi até a despensa e pegou uma garrafa de álcool e uma caixa de fósforos. Finalmente a campainha: Henri.

— Deixa que eu atendo! — gritou James, deixando o álcool e os fósforos dentro do banheiro. — Pode entrar Henri. — disse James, gentilmente abrindo a porta.

Ele estranhou. Sabia que na cabeça daquele garoto de quinze anos sempre havia algo mirabolante. Cumprimentou o futuro sogro e sentou-se ao seu lado. James correu para a cozinha e foi olhar as panelas conforme solicitado pela avó. De repente, a mãe saiu do quarto. Linda. Usava um vestido preto o qual deixou Henri de queixo caído. Ele deu um selinho em Lana e cumprimentou a avó de James.

Hora do jantar. O risoto estava perfeito e eles brindaram o noivado com vinho. James ficou sentado tomando seu refrigerante de limão. Ele estava do lado de Henri, e deu um jeito de derrubar o conteúdo da taça de vinho na camisa do noivo da mãe ao se levantar.

— Nossa, foi mal mesmo!

— Tudo bem, James. Eu vou até o banheiro e me enxugo. Eu tenho uma camisa aqui, não?

— Sim, deixa que eu pego. — informou Lana.

Lana foi até o quarto e James a seguiu. Henri foi até o banheiro enquanto os pais de Lana ficaram aguardando na mesa.

Enquanto Lana procurava a camisa nas gavetas, James ficou parado na porta do quarto.

— Mãe... Me desculpa. Não foi minha intenção.

— Não pareceu de propósito.

— E não foi. Eu quero que a senhora seja feliz. E eu quero ficar de bem com o Henri.

— Fico feliz apenas em saber disso.

— Eu posso entregá-lo a camisa.

Lana deu a camisa nas mãos do filho.

— Espero que vocês fiquem bem mesmo.

— E vamos ficar...

James virou as costas e foi em direção ao banheiro. Continuou:

—... Vamos ficar bem sim. Um bem longe do outro.

James bateu na porta do banheiro. Henri mandou-o entrar, pois achava que se tratava de Lana.

— Ah é você?

— Mamãe mandou lhe entregar isto.

— Obrigado, James.

James entregou a camisa e depois se virou para aporta, trancando-a.

— Porque você trancou a porta? — perguntou Henri, vestindo a camisa.

— Por que nós vamos resolver nossas desavenças agora.

James abaixou-se onde havia guardado o álcool e os fósforos. Pegou a garrafa e jogou o conteúdo em cima do corpo de Henri, que gritou desesperado por socorro. Tentava abrir a porta, mas James estava com a chave.

— Você mexeu com o cara errado, Henri.

James riscou o primeiro palito. Fogo. Acabou jogando aquele pedaço de fogo em Henri, que estava com sua camisa encharcada de álcool. O fogo tornar-se-ia indomável mais tarde.


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Notas finais do capítulo

Reviews, se ainda me amam rsrsrsrs