Submissão escrita por Gabriel Campos


Capítulo 16
Absorver




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São Paulo, 10 de Abril de 2005.

Felipe alugou uma quitinete minúscula. Era o que dava para conseguir com o dinheiro que sobrava da mensalidade da faculdade. Continuava trabalhando na loja do Sr. Oswaldo, sendo sempre ameaçado por Luiz Gustavo para que não contasse as verdades sobre o assalto à academia e à loja.

Lana pediu licença às aulas da faculdade e deveria voltar no dia 11, ou seja, o dia seguinte. Por esse meio tempo ela visitou os pais que moravam agora em outra cidade, no interior de São Paulo. Contou-lhes sobre as brigas constantes com James e eles nada puderam fazer para apoiá-la.

Naquele dia, Lana teria de voltar à capital, aos velhos e aos novos problemas. Nem mesmo o som de Janis Joplin e sua xícara de café poderia tranquilizá-la agora. Ela estava com saudades daquele garoto, exemplo de pessoa, seu aluno mais aplicado, Felipe.

Aquele que todos chamavam de gordinho, agora fazia jus ao apelido mais do que nunca. Depois que saiu da casa dos Martinelli, saiu imediatamente da dieta. Tinha medo de subir na balança, mas sabia que engordara por que muitas de suas roupas já não lhe serviam mais.

O pequeno espelho de sua quitinete refletia-lhe a vergonha, dizia-lhe através de sua própria imagem que ele estava sendo submisso ao seu vício. Mas já não lhe tinha mais quem o ajudasse.

Felipe deixou o contato com sua tia Marta, para evitar maiores problemas com a família do seu tio. Da última vez que viu seu primo René, ele teve notícias de que Anne estava se automutilando por causa da falta que a mãe lhe fazia. Sentia-se culpado e rancoroso e com uma imensa vontade de falar com ela mais uma vez, mas não o faria porque sabia que ela não iria dar atenção.

Enquanto isso, Luiz Gustavo arquitetava o seu novo plano. O final de sua web novela rendeu-lhe grandes elogios, mas os de Anne Martinelli eram os principais. Marcaram um encontro naquele domingo à noite, onde discutiriam sobre a história. Viu aquela linda menina, magra, de cabelos cacheados e porte de bailarina, vestida em uma camisa de mangas cumpridas e uma saia na altura do joelho, sentada à mesa do barzinho cujo marcaram o encontro.

— Anne Martinelli? — disse Luiz. Ela se levantou.

— L.G, o famoso autor de “Entre Linhas Tortas”!

— Eu mesmo. Prazer, Luiz Gustavo.

Os dois já haviam trocado mensagens no MSN e recados no Orkut algumas vezes, mas conhecer um amigo virtual pessoalmente dava uma sensação estranha que nem eles mesmos entendiam.

A conversa fluía como se estivessem conversando pelo PC, porém estava ficando tarde e a moça tinha de ir para casa.

— Nossa já são onze da noite! — exclamou Anne.

— Nem vi o tempo passar. Eu posso te deixar em casa, se não for nenhum incômodo.

— Claro. — ela sorriu.

Luiz não estava gostando de Anne, pelo contrário. Seu plano era seduzi-la para entrar na casa dela, na vida dela. Já a garota, estava sentindo uma atração por Luiz Gustavo, tamanha que a chegarem à porta da casa dela, Anne roubou-lhe um beijo. Quer dizer, um beijaço.

— É um beijo de boa noite. —disse ela, envergonhada.

— É de seu costume dar boa noite assim? Então quero estar todas as noites com você.

Anne sorriu e entrou em casa. Luiz sorriu maliciosamente e disse para si próprio:

— Essa ta no papo.

São Paulo, 11 de Abril de 2005.

James estava em coma desde o dia de sua transfusão. A equipe do hospital em que ele estava não conseguia de modo algum entrar em contato com sua família, encaminhando assim o caso à polícia. Pelo RG do rapaz, a polícia conseguiu localizar seu endereço. Mandaram uma viatura até lá.

Lana estava com a mão no trinco da porta. Havia acabado de chegar de viagem. Ouviu a sirene do carro da polícia e imediatamente parou o que estava fazendo. Viu um policial saindo do carro e indo a sua direção.

— Aqui é a residência do senhor... — o policial conferiu o nome no papel. — James Ferreira Magalhães?

— Ele morava aqui. — Lana foi fria. — James saiu de casa há alguns dias.

— A senhora é o quê dele?

— Mãe.

— Por acaso ele estava desaparecido?

— O senhor ta me deixando nervosa. Diz por favor, o que aconteceu!

— Seu filho foi baleado no dia 28 do mês passado. James teve o fígado perfurado e perdeu muito sangue...

— Fala logo, cadê meu filho! — interrompeu-o desesperadamente.

— A professora Lana ligou e infelizmente não vai voltar a dar a aula dela hoje. Vocês vão continuar com o substituto, o professor Roberto pelo menos por hoje. — disse uma das secretárias da faculdade.

Felipe esperava encontrar com a professora naquele dia. Tamanha foi a decepção que resolveu sair alguns instantes de sala.

No corredor, ouviu a mesma secretária que dera o recado na sala de aula comentando algo com outra funcionária da faculdade.

Parece que é grave. O filho dela foi baleado e ta em coma. A coitada soube disso hoje e se desbancou logo pro hospital.

Qual?

Felipe ouviu o nome do hospital e saiu correndo para pegar um ônibus. Vinte minutos depois estava entrando no recinto. Estava lotado, muita gente passando mal, crianças chorando, e por um milagre o rapaz conseguiu localizar a professora que estava sentada com a cabeça abaixada e apoiada nas mãos.

— Professora Lana?

— Felipe? Felipe! — ela o abraçou e o seu choro aumentou. — O James foi baleado e tá em coma...

— Eu já sei de tudo. A fofoca ta correndo lá na faculdade. Como a senhora tá, hein?

— Arrasada, Felipe. Se eu não tivesse posto o James pra fora de casa nada disso teria acontecido.

— Ei, calma! Agora não é hora, a senhora precisa ser forte, professora.

— Já pedi a transferência dele pra outro hospital.

Lana e Felipe foram conversar com os policiais que estavam cuidando do caso. Eles pensavam que o culpado poderia ser algum morador de rua, mas Felipe chegou a outra conclusão com os argumentos da polícia.

— Pelo que parece a arma que efetuou o disparo era um calibre 38. É bem comum. — disse um policial. — Estes foram os pertences encontrados com ele. Ainda não mexemos em quase nada. — entregou-lhes a mochila, onde havia a carteira, algumas roupas e o celular de James. — com licença.

Os policias saíram e Felipe pediu permissão a Lana para olhar o celular de James. Nas mensagens enviadas havia uma que acabava com as dúvidas de Felipe: James havia marcado um acerto de contas com Luiz Gustavo.

— Policial! — gritou Felipe. — Eu sei quem atirou no James.

***

A polícia então se comprovou de que quem atirara em James foi realmente Luiz Gustavo. Nesse momento uma viatura chegava a loja de Sr. Oswaldo, que já estava aflito por Felipe não ter vindo trabalhar.

Luiz observava tudo da parte de cima da sua casa, da janela do seu quarto. Viu a hora que Felipe e Lana estavam saindo da viatura e indo em direção a loja, provavelmente para falar com o seu pai. Desceu as escadas e ficou espiando tudo do alto da mesma.

— Temos um mandado de internação para o seu filho. Ele está sendo acusado de tentativa de homicídio. — disse o policial.

‘ — Infelizmente é verdade, Sr. Oswaldo. O Luiz Gustavo não é quem o senhor pensa que é. — disse Felipe.

Luiz cerrou os punhos. Desejava mais do que nunca acertá-lo com toda a sua força no rosto de Felipe. Amaldiçoava-o e xingava-o em pensamento, mas depois veio à sua cabeça que ele tinha de fugir dali o quanto antes.

A loja tinha uma entrada nos fundos, onde antigamente era uma garagem (cuja ficava um carro que Oswaldo tivera de vender há tempos atrás por problemas financeiros). Ela agora funcionava como entrada de mercadorias a loja, e agora também serviria como a luz no fim do túnel de Luiz Gustavo. Deu tempo apenas reunir alguns pertences e fugir em disparada.

Nota do Diário

São Paulo, 13 de Abril de 2005.

Ler Escutando: Creed – One Last Breath.

Achei que a maldição dos dias 13 da minha vida pudesse ter acabado. Que nada, fui tolo. Sr. Oswaldo me demitiu hoje. Disse que toda a culpa, toda a desgraça dos últimos dias foi minha.

Minha culpa se ele não soube criar o próprio filho dele? Que agora ele vaga por aí, fugindo da polícia por ter tentado matar o filho da professora Lana?

Sei que não é culpa minha, mas ao mesmo tempo eu sinto que aonde eu chego a desgraça acontece. Foi assim na casa dos tios Martinelli, na vida do Sr. Oswaldo ou até mesmo quando eu me tornei amigo da professora Lana. Só não gosto de ser hipócrita e em todas as oportunidades que eu tive, abri os olhos das pessoas. Também me defendi por instinto e sobrevivência.

Enfim, não sei mais o que fazer. Estou realmente desabrigado, e serei obrigado a trancar a faculdade até não sei quando. Suplico com lágrimas e tinta de caneta para que Deus tenha piedade e faça um milagre para que tudo isso se resolva. Talvez um acordar de um sonho, mas não sei bem onde acordar.

Esta noite eu sonhei com ela, com Joana Lee. Pode parecer bobagem, mas às vezes eu acho que ela quer se comunicar comigo. E ela falou que logo, logo tudo ficaria bem. Só se eu morresse. Joana disse também que eu devia viver intensamente, amar outras pessoas, viver sem correntes. Correntes essas que me prendem a algo que nem eu mesmo sei.

Quem desejaria me amar? Só ela, mas ela não está mais entre nós, diário. Eu sinto que se eu morresse agora, ninguém choraria, ninguém sentiria minha falta. É tão paradoxal, tão absurdo... Como um monstro como eu, que ocupa um enorme espaço pode ser um nada? Mas eu sou um nada. Se eu fosse pelo menos esbelto como o Luiz Gustavo, que mesmo vivendo dentro do Mc Donald’s consegue sempre ser magro, e eu uma bola de banha como ele mesmo chama. Agora eu vou deixar a vida me levar mais do que nunca. Amanhã vou trancar meu curso e seja o que Deus quiser.

Aquele maldito dia 13 estava terminando. Felipe sorriu, pegou seu violão e começou a tocar One Last Breath. Sentou-se no chão, no canto da parede e cantava com seu inglês meia-boca. Ele realmente queria que aquele fosse o seu último suspiro, que tudo acabasse por ali e que o seu sofrimento fosse cancelado com um suspirar de alívio.

Só a música fazia com que ele se acalmasse, ou se esquecesse de alguns problemas. Que cada nota fazia com que ele voltasse àquele passado de conto de fadas, que era tão distante e tão simples.

“Eu só queria uma vida simples, como a de todo mundo”, pensava Felipe.

Ceará, 14 de Abril de 2005.

Logo após ter fugido da prisão, Glória conseguiu trabalho em um boteco de beira de estrada. Era garçonete, faxineira, cozinheira e em troca ganhava abrigo em um quartinho imundo por trás do bar. Não recebia dinheiro, apenas as gorjetas raras que os velhos bêbados davam-na.

— Se eles soubessem que eu sou Glória Torres, a bandida mais procurada por todo o estado do Ceará, deixariam de me maltratar. — comentava para si própria, enquanto enxaguava alguns copos americanos.

E o dia estava apenas começando. Não havia nenhuma novidade neles, sempre a mesma coisa. Banheiros podres, buchada de bode, panelada, sarrabulho para cozinhar. Louças para lavar, chão para limpar. Fazia muito tempo, aliás, que não fazia aquele serviço. Sempre, sempre teve Felipe para que pudesse lhe ajudar.

— Glória, o cliente da mesa dois ta esperando... — gritou o velho, dono do boteco.

— Já vai! Eu sou só uma!

São Paulo, 14 de Abril de 2005.

Quinta-Feira, mais um maldito dia. Felipe passaria na faculdade para trancar a matrícula aquela manhã. Sentiria falta dos estudos, claros, mas não tinha mais como bancá-los. E logo no final do mês seria despejado da quitinete.

Pensou em pegar o pouco dinheiro que tinha, comprar uma passagem e voltar para o Ceará, seu estado de origem. Voltar para a casa em que vivera a vida toda com a avó, sendo maltratado. Onde viveu com Joana Lee e seus últimos dias, fazendo planos para um futuro que nunca chegaria. Por causa dela, tudo por causa da velha Glória.

Depois de trancada a matrícula, passou no bebedouro da faculdade. De lá, dava para ouvir a aula numa das salas do curso de gastronomia. A voz da professora Lana era inconfundível. Pensou em aguardar até a hora do intervalo e conversar com ela. Precisava se despedir daquela que para ele foi uma verdadeira amiga.

— Vou fazer isso. — disse Felipe, respirando fundo.

Tocou o sinal do intervalo. Viu Zazá saindo da sala, mas preferiu não falar com ela nem com nenhum outro colega. Esperou para que todos saíssem e entrou na sala. Lana, concentrada, guardava os materiais da aula prática.

— Professora Lana?

— Felipe! O que aconteceu? Por que sumiu? — perguntou.

— Acho que é a última vez que a senhora falará comigo...

— O que aconteceu? Fala tudo...

— Eu perdi meu emprego, fui obrigado a trancar meu curso e to voltando pro Ceará. — abaixou a cabeça e fechou os olhos. Tamanha era a vontade de chorar, mas sabendo que lágrimas não curariam seus problemas, desistiu. — Só tenho até o dia dez do mês que vem pra ficar na quitinete que eu aluguei.

Lana não tinha palavras. Via um futuro promissor naquele garoto se perder. Ela o abraçou. Felipe, pela primeira vez depois de tanto tempo sentiu conforto, um conforto verdadeiro, caloroso nos braços de alguém. Desatou a chorar, e quando se deu conta de que estava sendo fraco, olhou para o rosto de Lana, pediu desculpas, licença e saiu correndo em direção à saída.

— Felipe! Felipe volta aqui!

Um dia ouvi dizer que a bebida cura qualquer coisa, nem que seja temporariamente. Vou seguir essa crença com todo o gosto do mundo. Espero que o dinheiro que eu tenho dê para me embriagar. Fodam-se as leis que ditam o mundo, que regem a todos aqueles que são fracos como eu. Dane-se esse mundo de merda. Dane-se, dane-se, dane-se...

Alguém seguia os passos de Felipe. Cheiro de vingança, de revolta, desprezo. Luiz não pensava nas consequências, não era do feitio dele. Ele pensava no sofrimento e na dor daquele que lhe fazia mal.

Suas pernas tremiam e seus olhos lacrimejavam de tanta cólera. Usava uma camisa preta de mangas compridas, daquelas com capuz. Vagava com as duas mãos nos bolsos dianteiros da calça jeans azul, sempre seguindo os passos de Felipe. Viu quando ele saiu de dentro da faculdade e foi até um bar.

— Um litro da cachaça mais barata. — pediu Felipe, chorando.

— Nada como cana para ajudar a afogar as mágoas. — disse simpaticamente o balconista.

— CALA A BOCA E ME DÁ LOGO ESSA PORRA.

O balconista imediatamente entregou-lhe o litro de cachaça. Felipe deixou pago, pegou um copo e foi até a mesa.

O primeiro gole lhe rasgou a garganta, assim como da primeira vez na sua vida em que bebeu. “Faz muito tempo que não bebo”, pensou Felipe, enquanto acostumava-se com aquele fedor e aquele gosto horrível de álcool, que logo foi se tonando cada vez mais viciante.

Enquanto observava Felipe se afogando em cachaça, Luiz Gustavo fumava um Derby Azul. Parecia que o destino conspirava a favor dele pela primeira vez em tempos. Não havia melhor hora para sua vingança. Ligou para um número que estava na agenda do seu celular, dizendo:

— Pode vir. Essa rolha de poço vai ter o que merece.


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Notas finais do capítulo

E agora? :0



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