Submissão escrita por Gabriel Campos


Capítulo 14
Comer




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São Paulo, 12 de Março de 2005.

Felipe não esqueceria aqueles dois nem em um milhão de anos. O olhar expresso de medo de um e o olhar demoníaco de outro. Não ficaria surpreso se Luiz Gustavo atirasse em alguém naquela academia. Agora ele estava parado na frente do bandido o qual provocara toda aquela confusão, que desencadeara o fechamento da academia e o pavor dentro de cada pessoa que vivera aquele momento.

— Cumprimente-o, meu filho. — disse Sr. Oswaldo.

— Prazer, Luiz. — ele estendeu a mão a Felipe. — Seja bem vindo.

— Eu me lembro de vocês dois. Sou aluno da professora Lana. Lembra que eu fui com ela até a enfermaria da escola de vocês no dia que você caiu da escada? — perguntou a James.

— Claro, lembro sim. Obrigado por ter ido lá.

— Agora a gente tem que ir estudar. Mal começou o ano pra gente e já estão botando quente no colégio. O segundo ano vai ser difícil. — falou Luiz.

— Se vocês se dedicarem, passam fácil. Estudar não é um bicho de sete cabeças se vocês se dedicarem.

Luiz fitou Felipe mais uma vez e saiu acompanhado de James. Nunca havia levado uma bronca, e pelo ar que Felipe falou aquilo, sentiu-se ofendido.

Ler escutando: The Cure - Friday I'm in Love

Hora da serenata. Felipe encontrou-se com René próximo a casa de Zazá. Pediu ao primo que trouxesse seu violão, que até então se encontrava no quarto de Anne. Rezou para que estivesse inteiro. Aliviou-se quando viu o objeto nas mãos do primo.

— E então... Preparado, René?

— Estudei bastante. Até vi na net algumas coisas pra deixar a voz mais legal.

— E tu acredita nessas coisas cara? Vamo logo que ta ficando tarde.

Zazá morava na parte de cima de um duplex. Sendo assim, René e Felipe tiveram de se aproximar para que ela pudesse escutar melhor.

— Ela ta em casa né? — perguntou Felipe.

— Ela quase não sai. Começa a tocar.

Pigarreou e assim que Felipe deu as primeiras notas, mandou Friday I'm in Love:

I don't care if Monday's blue
Tuesday's grey and Wednesday too
Thursday I don't care about you
It's Friday I'm in love

Nenhum sinal de Zazá. René já cantava com um tom de preocupado, mas mesmo assim continuou. Ficou feliz quando viu sua amada aparecendo da janela. Não dava nenhum sorriso, como de praxe, mas estava feliz pelo fato de ela ter ido até a janela olhar. René, ainda cantando, se aproximou mais ainda, enquanto Felipe continuou no mesmo lugar em que estava.

Ao terminar a canção, René ajoelhou-se e de braços abertos, sempre olhando para cima, disse:

— Isabel Ribeiro. Namora comigo? Eu te amo!

Zazá sumiu por alguns instantes e logo voltou com um saco de lixo preto, e claro, ele não estava vazio.

— Mãe, o lixo já ta lá fora! — gritou estas milagrosas palavras, deixando cair o conteúdo do saco na cabeça de René.

***

Nota do Diário

São Paulo, 20 de Março de 2005.

Já faz alguns dias que eu comecei a trabalhar na loja do Sr. Oswaldo. É difícil conciliar a faculdade com o trabalho, mas eu quero mostrar ao tio Fábio que eu sou um cara íntegro. Tipo, eu to meio largado por causa dele, mas não parei com a dieta. Só que eu deveria ter ido ao médico esses dias ele deixou passar batido. Deixa. Posto de saúde não falta. Eu também sei que to de boa porque mesmo com a academia fechada, René e eu passamos a fazer caminhada. Espero que a academia volte à ativa logo.

Falando na academia, o marginalzinho do Luiz Gustavo, filho do Sr. Oswaldo, não deixa escapar até o pai. Eu mesmo vi o trombadinha tirando uns bons trocados da caixa registradora muitas vezes. Sr. Oswaldo está dando falta, eu sei, e acho que se eu não fizer alguma coisa eu posso me dar mal.

Esses dias Luiz apareceu pilotando uma moto zerada. O pai questionou e ele disse que era emprestada. Lembrando que nem idade pra pilotar ele tem. Obviamente Luiz comprou aquela moto estilo Power Ranger (acho que é quase impossível dar uma curva com ela) com o dinheiro do assalto à academia.

Muitas vezes, na faculdade, as palavras para falar com a professora Lana sobre James vêm à ponta da minha língua, porém eu não sei se eu sou a pessoa certa para destruir, de certa forma, um amor de mãe e filho. Já basta a relação conturbada entre minha prima Anne e a minha tia Marta.

Depois da serenata ao banho de lixo, René ficou meio deprimido. Zazá parece não estar nem aí, mas acho que por detrás daquela maquiagem pesada existe um sentimento, nem que seja mínimo. René me ajuda bastante e me sinto no dever de ajudá-lo a conquistar Zazá.

Ler Escutando: Coldplay – Speed of Sound.

Tocou o sinal. Fim de aula. Naquele dia era aula da professora Lana, e para Felipe estava cada vez mais difícil enfrentá-las sabendo que deveria ter de contar algo extremamente sério a ela. Parecia surpresa do destino, mas os dois tentaram passar na mesma hora pela porta estreita daquela sala.

― A senhora primeiro, professora. ― estendeu a mão para a porta.

Lana deu alguns passos em direção a saída e em seguida virou-se para Felipe, dizendo:

— Felipe, eu gostaria de falar com você. É coisa rápida, prometo. Topa tomar um lanche comigo na lanchonete?

Tarde demais para uma resposta negativa. Sabia que não se aguentaria e contaria a verdade para Lana sobre o filho, porém,escutaria o que ela tinha a dizer.

A lanchonete da faculdade estava lotada, porém havia uma mesa vazia. “Maldita mesa!”, pensou. Sentaram-se. Lana ofereceu um lanche a Felipe, porém ele recusou, alegando estar de dieta. Ela ficou um pouco sem jeito e ele, sem pensar duas vezes, pediu para que ela falasse o que tinha a dizer. Assim que o atendente chegou com a água com gás que ela pedira, ela começou a falar:

— Felipe, eu gostaria de te fazer um pedido.

— Pode falar, professora.

— Pode ser que eu esteja abusando da sua boa vontade, mas você é a minha última esperança. — abaixou a cabeça e fixou o olhar para o tampo sujo da mesa — eu gostaria que você fizesse amizade com o meu filho James. Agora que você começou a trabalhar na loja do Sr. Oswaldo, que é pai do melhor amigo dele, o Luiz, acho que seria uma boa oportunidade.

— Faço sim, professora. — disse sem jeito. — Mas por que a senhora quer que eu faça isso?

— Eu não confio naquele amigo dele. Confesso que o James não é o melhor garoto do mundo, mas acima de tudo ele é meu filho. Você é um rapaz dedicado, estudioso, responsável. Eu... — teve a voz embargada por alguns instantes. — eu queria que o James fosse como você.

— A vida me fez assim, professora. E eu garanto à senhora que ela nunca foi fácil. Em apenas dezoito anos de vida eu já vivi muita coisa, e acho que eu aprendi o significado da vida.

— E qual é?

— O significado da vida é ser útil de algum jeito no mundo sem esperar nada em troca. A senhora não acha?

— Você é um rapaz muito especial, Felipe... E para de me chamar de senhora, somos amigos, poxa! — ela riu e limpou as lágrimas.

Agora Felipe teria de cumprir o que prometera à Lana. Ou transformaria James em um garoto exemplar ou o entregaria à polícia sem dó nem piedade.

Era a primeira vez que Sr. Oswaldo saía e, mesmo desconfiando que o novo funcionário estava roubando o caixa, deixava Felipe tomando conta da loja de instrumentos musicais. Felipe, que não era bobo, já trazia uma câmera filmadora em mãos. Sabia que os meninos (Luiz e James) estariam prontos para pegar o caixa da loja vulnerável.

Ouviu passos na escada que dava acesso à casa de cima. James e Luiz estavam descendo para ir até a loja “fazer a limpa”. “Melhor se esconder”, pensou Felipe, sacando a máquina da mochila e já filmando onde o caixa e todo o dinheiro estava. Eis que os garotos se aproximaram e, enquanto James fazia todo o trabalho sujo, Luiz ficava de guarda. Felipe só conseguiu filmar James pegando o dinheiro e pondo dentro da mochila (daquela vez eles pegaram uma grande quantidade, que se notaria falta facilmente), pois Luiz Gustavo já estava em cima da moto (provavelmente comprada com o dinheiro do assalto à academia).

Peguei vocês! — pensou alto Felipe, mas não o suficiente para que eles ouvissem.

***

Aquiraz(Ceará), 21 de Março de 2005.

Ler Escutando: Depeche Mode - Enjoy The Silence

Já não sabia que dia era, e há quanto tempo estava lá. Glória sabia que estava pagando pelos seus pecados, mas não se arrependeu de nada que fizera, mostrando quão ruim era o seu coração.

As presas tratavam-na como a rainha daquele presídio, mas aquilo não era o bastante. Glória queria a liberdade. Poder sair, voltar ao seu casebre fedido, poder mandar no neto, assistir à sua novela das oito e dormir na sua poltrona velha. Talvez até voltar com o seu trabalho imundo.

Mas não havia advogado que a soltasse dali. Fora condenada e pegara vinte anos de prisão, pela morte de Joana Lee e do trabalho sujo o qual ela tanto almejava voltar. Mas estava decidido: haveria uma nova rebelião e assim que saísse dali, Glória iria atrás de Felipe nem que fosse no inferno. Ainda lembrava as últimas palavras do neto para consigo: “CALA A SUA BOCA, PORCA DESGRAÇADA!”, os desabafos e a cuspida no rosto. Nunca se esqueceria daquilo, pois achava que o neto nunca fosse se rebelar contra ela. Mas se rebelou, e tornou-se o seu inimigo. Tinha uma conta pra cobrar àquele neto ingrato.

São Paulo, 21 de Março de 2005.

Era o último capítulo da web novela que estava lendo. Anne torceu, se emocionou e sabia que no final tudo daria bem entre o primo e a prima apaixonados. Depois do beijo do final e o felizes para sempre, ela resolveu investigar mais sobre o autor daquele estrondoso sucesso. Em seu perfil havia o endereço de e-mail. Começava com “l.g88@...”. Já sabia que o tal escritor era de Interlagos, e o número 88 cujo estava no endereço de e-mail provavelmente seria o ano em que nascera. Provavelmente L.G tinha por volta de dezesseis ou dezessete anos. (lembrando que estamos em 2005)

Anne resolveu enviar um e-mail para L.G parabenizando pelo sucesso da web novela, e nele dizendo que gostaria muito de conhecê-lo.

— Agora é só esperar a resposta.

Nota do Diário

São Paulo, 21 de Março de 2005.

Estou saindo agora da faculdade e indo para o trabalho. Seja o que esteja me esperando lá, tenho fotos e filmagens que podem livrar minha cara de qualquer acusação. Aquele tal de Luiz Gustavo é um cara de pau. Roubando o próprio pai! O James é um Maria vai com as outras, porque se ele tivesse um mínimo de integridade, ele se afastaria do tal amigo.Seja o que Deus quiser.

Agora que estava um pouco mais magro, tinha menos dificuldade em andar de ônibus. Felipe foi da faculdade até a loja de instrumentos musicais escrevendo em seu diário e rezando para que não tivesse de entregar ninguém. Não gostaria de problemas, pois precisava do salário para pagar a próxima mensalidade da faculdade e mostrar ao tio Fábio que poderia se manter sem a ajuda dele. Ultimamente Fábio continuava evitando o sobrinho e jogando em sua cara as coisas que havia feito por ele. Felipe fazia-se de forte e aguentava tudo calado.

Desceu do ônibus, atravessou a avenida e andou alguns metros em direção à loja. Sr. Oswaldo o esperava como de costume, mas não com a mesma expressão de sempre. Ao seu lado estava o filho, Luiz Gustavo.

— Diz, meu filho. O que você viu o Felipe fazendo ontem no final do expediente? — perguntou Oswaldo a Luiz. O filho, cínico, respondeu:

— Ele pegou uma boa grana de dentro da caixa registradora. Jogou tudo dentro da mochila.

— O que você tem a dizer sobre isso, Felipe?

O rapaz sabia o que era o certo, sabia que era inocente e já esperava por aquilo. Até ensaiou suas palavras em pensamento, mas não sabia que o próprio ladrão o acusaria, e bem na sua frente.

— Que o filho do senhor é um cínico sem vergonha.

O estômago de Felipe parecia ter uma fogueira acesa dentro dele. Típico daqueles que sentem medo de falar a verdade, por mais ofensiva que ela seja.

— Como ousa? Está ofendendo meu filho, dentro da minha própria casa! Meu filho é um garoto exemplar, meu caro rapaz.

Felipe encarou Luiz por alguns instantes. O jovem ladrão não mudou sua expressão em nenhum momento, até que Felipe anunciou:

— Eu tenho como provar. — abriu a mochila e retirou uma câmera filmadora. Conectou o cabo USB da câmera a abriu a pasta onde estavam os vídeos e algumas fotos.

Oswaldo ficou sem reação ao ver os vídeos. Lembrando que nenhum mostrava Luiz Gustavo, apenas James tirando o dinheiro do caixa e pondo dentro da mochila.

— Ele me obrigou pai! — disse Luiz, fingindo um estado choroso. — O James queria uma grana. Acho que pra comprar baseado, não sei. Ele me ameaçou com uma faca e pediu que caso o senhor descobrisse colocasse a culpa toda no Felipe. Desculpa Felipe?

Felipe não disse nada.


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Notas finais do capítulo

Gente, até eu morro de ódio desse tal de Luiz Gustavo. Porra, que cínico!
E a Glória, saudades dela?



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