A Garotinha: Sherry escrita por Walter


Capítulo 13
A Memória de Aléxia


Notas iniciais do capítulo

"Em vez de tentar escapar de certas lembranças, o melhor é mergulhar nelas e voltar à tona com menos desespero e mais sabedoria." - Martha Medeiros.



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–Venha mais pra perto.

Me aproximo da garota que tem o meu rosto, tamanho e roupas. O cheiro de outono ainda envolve o local em que estamos, que é provavelmente em frente á mansão Spencer.

–Então... você é Aléxia?

Ela me olha com uma expressão de reprovação.

–Sim, sou... na verdade, sou a memória dela, sua memória –ela aponta pra mim.

–Minha?

–Sim, Sherry. Logo você entenderá.

–Você vai me mostrar?

–Exatamente. Vamos para dentro.

Ela fica em silêncio e começa a caminhar em direção à mansão. Penso um pouco em voltar para aquele local de loucos, mas percebo que é a coisa mais sensata a se fazer. Procuro permanecer em silencio, deixando com que ela tome à frente e me guie até lá, mesmo sabendo como chegar. Ela abre a porta e entramos. O local é exatamente o mesmo de antes: a escadaria, as portas... tudo continuava igual a exceção das pessoas, do fogo e do corpo que não estavam mais lá.

–Há muitos anos atrás ocorreu um ritual na mansão –ela começa a falar sem olhar pra mim –mais precisamente na frente dela. Tentaram usar uma mulher pura para selar uma espécie de portal que traria as trevas para a cidade. Afinal, com tanta gente corrupta, precisávamos realizar sempre para evitar que as trevas chegassem e garantir a proteção do deus.

–Trevas?

–Sim, o que também chamamos de Caos.

–É da mesma religião que Alexander faz parte?

Penso me lembrando do ritual no qual fui usada. Aliás, não faço ideia do que aquilo serviu.

–Sim. A Ordem acredita na existência do Caos e tenta reestabelecer a Ordem a qualquer custo. Isso trará o paraíso à Terra e tudo ficará no seu devido lugar.

–Então a escuridão, as coisas embebidas de sangue, o cheiro de morte é devido ao Caos?

–De certa forma sim. Mas deixe-me contar mais sobre o ritual e você entenderá.

Eu assinto com a cabeça para o meu reflexo.

–O ritual era chamado de Ritual da Purificação, mas conhecido por Ritual do Esquartejamento. Uma mulher que tinha sua vida dedicada a isso era prevenida de qualquer contato com o mundo desde o seu nascimento. Ela era mantida aqui na mansão até completar seus 17 anos. Quando chegava a essa idade, ela era levada para fora e tinha seus braços e pernas amarrados a quatro cavalos, de modo que, no ápice do ritual, cada animal arrancava-lhe um membro ao mesmo tempo.

Meu estômago se revira ao ouvir isso. Quem seria capaz de coisa tão horrível?

–Por fim, a cabeça era decapitada com uma katana pelo mestre do Ritual. A katana representava a purificação. O sangue era derramado sobre o chão e as partes do corpo eram queimadas. A fumaça do corpo selava o portal, enquanto que o sangue purificava e mantinha o deus perto, protegendo a cidade e o mundo. Nós acreditávamos que ele (o deus) tinha confiado tal tarefa para nós.

–Que coisa horrível...

–Mas, o ritual falhou. A mulher usada foi Verônica Ashford. Ela teve contato com o mundo antes do ritual e deu a luz a um filho. Seu corpo e sangue não poderiam mais ser usados. Mas isso foi descoberto minutos antes do Ritual de Purificação, quando ela gritou de desespero, com medo de que o Caos chegasse à cidade.

–E o que aconteceu?

–Decidiram progredir com o Ritual, mas ele deu errado. Após perder os braços e pernas, tudo escureceu. Verônica, ainda viva, foi levada ao hospital pelo pai do seu filho. O mestre de Ritual enlouqueceu e matou com a katana de purificação a todos ali presentes. Em seguida, se matou. Ele era Lord Spencer, o dono da mansão.

Sinto náuseas só de ouvir... não consigo imaginar tantas coisas terríveis.

–E... Verônica?

–Nunca se soube. O Outro Lado, isto é, o Caos, passou a assolar a cidade uma vez que o ritual não foi completado... e nunca poderia ter sido, uma vez que Verônica estava impura. Com isso, o deus da cidade se afastou e ficamos fadados a tolerar uma cidade em Caos todos os dias.

–E como tudo ficou?

–Veja... você... mesma!

A garota abre os braços e começa a girar em torno de si mesma. As coisas começam a mudar, tudo começa a ficar escuro... ouço gemidos. As paredes se tornam embebidas de sangue e o chão parece queimado. Um forte cheiro de ferrugem, sangue e coisas podres envolvem o lugar, que agora parece completamente destruído.

Meus olhos começam a encher de lágrimas. Não consigo suportar passar por aquilo novamente, era muito assustador.

–Então... Aléxia... lembre-se de tudo, lembre-se do outro ritual.

Fecho os olhos e me vejo no centro da mansão Spencer. A mansão voltou a ser o que era. Vejo Ela, Aléxia. Ela está com um vestido roxo. Vejo várias pessoas ao redor, olhando pra ela...

Estou vendo as pessoas ao meu redor, não consigo acreditar... eu estou no meio do ritual! Vejo Alexander com o mesmo manto vermelho.

–Está na hora. O nosso deus virá à Terra, e ela será o meio usado.

Vejo todos aplaudirem. Eu estou ali de pé, tento me mover mais não consigo. Tenho a sensação de estar revivendo algo, mas as emoções são muito reais.

–Alfred, sua deixa.

Vejo ele tirar o capuz. É um rosto muito parecido com o meu, só que é um garoto da mesma idade. Ele se aproxima de mim como se estivesse em alguma espécie de transe. Ele ergue as mãos e coloca no meu pescoço. Tento me mover pra tirá-lo, mas não consigo fazer nada. Ele pressiona as mãos, sinto minha pressão subir e falta de ar... minha pulsação acelera, meu corpo começa a formigar... estou morrendo.

Minha vista fica embaçada, não consigo respirar e nem gritar... quero me soltar, quero ser livre, não quero trazer o deus à Terra. Não mais... desmaio.

Abro os olhos, vejo Alfred ainda segurando Aléxia com as mãos no pescoço.

–Já chega Alfred, tá na hora de injetar o reagente antes que o cérebro perca todo o oxigênio!

Alfred solta o corpo no chão, eu observo tudo. Alexander se aproxima do corpo com uma seringa e injeta algo no pescoço. O corpo se contorce. Vejo agora um símbolo circular bem no meio do hall, onde Aléxia está caída. Há uma porção de velas ao redor.

–Certo, agora vamos a parte principal...

Tenho a impressão de facas em brasa perfuram todo o meu corpo. Abro os olhos e me vejo queimar, vejo as pessoas ao redor... Sou Aléxia de novo. Meu corpo queima e eu grito, grito em desespero. Meus olhos lacrimejam, mas as lágrimas evaporam com o fogo que me envolve. Meu estômago dói, e por algum motivo a dor é pior que o meu corpo queimando.

–Soco...

–Deixem a queimar, saiamos todos.

Grito. Meu corpo inteiro dói, tudo dói. Não consigo suportar tanta dor... Grito. Todos saem, inclusive Alexander, meu pai. Meu coração dói, minhas emoções doem, tudo em mim dói. Queimando e abandonada. O fogo diminui sobre mim, mas não a dor...

–Eu... vou... me vingar de todos eles!

Continuo com dores. Meu estômago se contorce, parece que há algo dentro... E há. O deus está se formando em mim.

Não consigo conter o ódio que sinto de tudo e de todos. Eles querem o paraíso, eu vou mostrar o paraíso para eles. Conheço os segredos antigos da cidade e vou usar o que for preciso.

Vejo Alexander dar uma ultima olhada pra mim e sair pela porta principal. Eu queimo, as coisas queimam ao meu redor, mas não o suficiente para causar um incêndio. Se esse deus está se formando, não vou o deixar nascer. Uso toda a minha força pra projetar minha alma para fora do corpo, se estiver fora, ainda que por pouco tempo, conseguirei retardar o nascimento dele.

Abro os olhos, vejo meu corpo queimado ali no chão, sofrendo. Pelo menos sei que consegui projetar minha alma pra fora, ainda que sinta as dores que o corpo sente agora. Se conseguir tirar o corpo daqui...

Decido correr até a estrada principal. Se conseguir encontrar alguém, posso atraí-lo ate aqui e fazer com que ele salve meu corpo. Se fizer isso, vou dar um jeito de leva-lo até a cidade para tentar usar uma magia antiga que me livrará de tudo isso.

Abro a porta da mansão e vejo Alexander próximo. Espero que ele não saiba do que se passa. Saio correndo pela floresta densa. Vejo a névoa comum de outono em meio ao escuro comum da noite. Paro um instante. Estou com muita raiva deles. Olho pra trás e vejo a fumaça ainda do ritual saindo da mansão... Eles me pagarão por tudo.

Fecho os olhos e sinto uma forte vontade de projetar a névoa... sim. Talvez consiga fazer isso. Centro meus olhos na fumaça que emana do ritual e mentalizo toda ela sobre a cidade. Consigo. A névoa que está apenas sobre o chão começa a tomar conta da cidade inteira, ainda que pouco densa. Vai ficar melhor quando eu estiver menos desesperada.

Continuo correndo em direção à estrada, evitando tropeçar em qualquer coisa. Finalmente avisto a estrada e vejo ao longe um caminhão. Corro até a margem da estrada e quando o caminhão se aproxima, simplesmente atravesso. Como planejado, o caminhão freia e desvia.

Olho para o homem vestido com o macacão bege que desceu do caminhão. Cabelo castanho, partido no meio, com roupa de encanador, mecânico ou alguma coisa assim. Faço um gesto pra ele me seguir, ele parece preocupado comigo. Saio correndo em direção à mansão, sentindo ele bem atrás de mim.


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Notas finais do capítulo

Sherry encontra Aléxia, ou que seria sua memória. Ela decide ouvi-la e descobre um passado sobre a cidade e até sobre si mesmo que parece irreal, inimaginável. Pelas portas da memória, a menina começa a mergulhar em suas próprias lembranças, revivendo experiências horríveis de um passado que parece não ser o seu.



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