A Garotinha: Sherry escrita por Walter


Capítulo 12
Interseção


Notas iniciais do capítulo

"A Humanidade é uma espécie de Interseção entre dois mundos: O real e o ideal. Os valores do mundo ideal podem atuar sobre o mundo real." - Nicolai Hartmann (adaptado).



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Fico boquiaberta observando. Eu falo, o corpo mexe a boca. Não consigo compreender e isso me assusta. Alexander parece feliz.

–Aléxia, levante-se.

Tento mais uma vez, não consigo. Ele quer que eu faça algo que não posso.

–Vamos lá Aléxia, você consegue.

Me sinto mais pesada que o normal, mas finalmente levanto minha mão direita. Semelhante a um espelho, vejo o corpo levantar a mão direita também, o que me faz baixar bruscamente a minha com o susto que tomo. O corpo também baixa a mão bruscamente.

–Aléxia... é você! Volte para o seu corpo!

Já chega! Estou apavorada, não consigo levantar da cadeira e ainda por cima esse homem que mal conheço fica tentando me dar ordens. Sinto raiva dele, raiva e desespero de tudo aqui... aquele corpo, as chamas, o quase escuro, as pessoas vestidas de preto e Alexander.

Sinto uma forte dor no estômago que me faz gritar. Coloco as mãos na barriga ainda gritando. Todos olham pra mim. Continuo gritando, a dor é insuportável, tão insuportável que faz cair lágrimas dos meus olhos, fazendo minha visão embaçar. Vejo Alexander sorrir.

–Ele... ele está vivo! O deus continua vivo!

Todos fazem um círculo em torno de mim, Alexander e o corpo. Eu ainda solto alguns gemidos de dor, meio sem entender. As pessoas começam a girar com seus incensários e cajados fazendo barulho que se soma ao do fogo crepitante. Também percebo que cada pessoa está recitando algo, em algum tipo de língua que não conheço. Alexander olha para mim e estende os braços.

Sinto o impulso de levantar, de buscar repouso em Alexander... mas eu estou com raiva dele. O homem continua olhando e sorrindo pra mim e eu sinto uma súbita vontade de levantar e agora me aproximar do corpo sentando na cadeira de rodas. De alguma forma que não sei explicar, ele me atrai. Então, aos poucos, começo a me levantar da cadeira. Para minha surpresa, os mesmos movimentos foram feitos pelo corpo, que agora estava se erguendo da cadeira de rodas. Agora, ele está de pé assim como eu, bem diante de mim. Não consigo distinguir se está vivo ou morto, apenas vejo que está em pé, tão parado quanto o meu. Me surpreendo ao perceber que não estou com uma gota de medo e... Não, estou enganada. Uma coisa que deveria estar morta está bem viva diante de mim.

–Aléxia, está na hora de voltar a ser quem você é.

Ouço a voz de Alexander soar em minha mente e sinto que ele está certo. De alguma forma, aquele corpo morto ali chama por mim de uma maneira tão forte, tão fraternal... é como se fosse eu mesma chamando por mim.

Me aproximo do corpo em pé parado diante de mim.

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Vejo Aléxia se aproximar aos poucos do corpo, creio que ela entendeu. Já está mais do que na hora. Ela se aproxima com cautela, tentando entender tudo, penso eu. Apenas espero que agora o destino faça sua parte, juntando novamente o que um dia foi separado. Afinal, estamos lutando contra o Caos do mundo e caminhando para a Ordem. Logo será o momento em que seremos redimidos e o Caos eterno terminará. Ele irá nascer.

Aléxia estende a mão e o corpo faz o mesmo movimento. Chegou a hora. Vejo as pedras penduradas no pescoço de ambos brilharem e uma luz branca inunda o lugar, o que ofusca meus olhos e me impede de ver... mas eu sei o que aconteceu.

A forte claridade começa a se dissipar aos poucos junto com as chamas ao redor. Eu a vejo, apenas ela ali, incompleta em seu corpo queimado gritar de dor, gritos que não se podem ouvir. Ela olha pra cima de boca aberta, na tentativa de emitir de sua alma as dores mais profundas que está sentindo agora... mas não sai nenhum som. O corpo agora um pouco mais vivo do que antes cai sentado na cadeira de rodas. Sei agora o que se passará com Aléxia: ela reviverá tudo outra vez.

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Vejo a mão estendida do corpo assim que estendo a minha. Caminho até ele, sentindo um certo formigamento e dormência no corpo inteiro que aumenta a cada passo que dou me aproximando daquela coisa. Não consigo parar. Ele parece olhar pra mim como se soubesse de algo.

De repente, o pingente pendurado no seu pescoço começa a brilhar. Era o mesmo pingente que que estava no meu. O brilho começa a ficar mais forte até tomar conta de toda a sala. Começo a me sentir puxada em direção a ele e tento correr na direção oposta, mas é muito mais forte do que eu. Estou sendo arrastada até o corpo por uma força que não sei de onde vem. Tento resistir. A luz ilumina toda a sala, fazendo com que tudo fique branco tirando-me a visão por alguns instantes. Sinto a mão gélida do corpo tocar minhas costas...

A dor é muito forte. Milhares de facas ardendo em brasa penetram ao mesmo tempo todo o meu corpo. Começo a gritar e a chorar, mas não ouço absolutamente nada. Meu desespero cresce conforme minha dor... vou morrer. Perdi mamãe, papai e agora minha vida. Melhor é se eu morrer mesmo, não consigo suportar... Grito, grito e grito. Minha dor não parece parar, eu estou desesperada... Sinto-me sufocada, acho que vou desmaiar. A luz começa a se dissipar, consigo enxergar umas três pessoas vestidas de preto. Não vejo mais o corpo, mas consigo contemplar Alexander com um sorriso no rosto... ele está feliz em me ver sofrer?

Mais uma rajada de dor e grito mais uma vez sem ouvir o som da minha própria voz. As coisas começam a ficar embaçadas e tudo dói, inclusive meu estômago de onde sinto fortes pontadas. Perco a visão e pouco a pouco a força das pernas e dos braços. Sinto meu corpo cair sobre uma cadeira. Desmaio.

Abro os olhos. Vejo árvores com folhas de outono. Sinto o cheiro de fumaça, vindo de fogueiras de acampamento. Ao fundo, havia a mansão, a mansão que eu estava até pouco tempo atrás. Está tudo coberto por uma névoa, mas não tão densa como na cidade. A névoa paira sobre o chão. Caminho lentamente em direção à mansão e encontro uma garota loira virada de costas pra mim. Me aproximo dela e ela se vira me mostrando meu próprio reflexo.

–Sherry...

Eu assinto com a cabeça e caminho em sua direção. Era uma menina exatamente igual a mim. Talvez fosse a menina que Alexander tanto falava: Aléxia.

O cheiro de outono continua a nosso redor. Por alguns instantes, ficamos apenas em silêncio, observando uma a outra. Ela resolve falar.

–Eu estava esperando por você.

–Quem é você?

–Que sou eu? Sou Aléxia Ashford, ou pelo menos a memória dela.

–E... –tenho medo de perguntar -onde estamos?

Aléxia olha pra mim tentando ler meus pensamentos.

–Nós?

Começo a temer a resposta. Ela sorri ao perceber isso.

–Estamos em Lugar Nenhum!


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Notas finais do capítulo

Sherry fica atemorizada ao descobrir que o corpo na cadeira de rodas se move conforme seus movimentos. Aos poucos, ela começa a entender que tem uma ligação muito mais profunda com ele do que imaginava. A história se desenrola, e ela decide finalmente seguir os impulsos projetados por sua alma, por aquele corpo.



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