Era Uma Vez o primeiro Vôo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 5
A melhor noite de Todas




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-5-
A melhor noite de todas

A cidade estava em completo silêncio. Era como se ninguém ousasse quebrar a atmosfera pacífica com o menor ruído que fosse. As estrelas se aglomeravam no céu, como um show de pequenas luzes, acompanhadas pelo brilho branco-pérola de uma lua cheia tão alva que parecia um buraco no céu, como um furo em um manto negro. Talvez fosse. Talvez ninguém tivesse notado que acima de suas cabeças existisse uma janela para um mundo onde, naquele exato momento, ainda era dia, onde o sol repousava e deixava repousar também as pessoas lá embaixo.
    Os edifícios tão sólidos, tão imóveis, apenas as árvores farfalhando com o vento da madrugada. Tudo tão quieto que um sussurro poderia ser ouvido a metros de distância. Os semáforos piscavam para ninguém, os papéis de propaganda dançavam no ar, seguindo o ritmo silencioso do vento, uma canção muda, uma dança sem nenhuma sincronia, mas com movimentos tão leves e complexos que chegava a ser uma bela coreografia.
    No meio da madrugada, do completo silêncio, o ruído de corrente quebrou a quietude da noite. Um barulho de corrente rangendo em uma coroa de bicicleta. Embaixo de um poste, uma jovem parou, empurrando uma bicicleta vermelha com tiras brancas amarradas no guidão, e um livro de capa preta na mão direita. Era suspirou por um breve momento, como se aquele clima ameno tivesse o cheiro mais doce que já sentira, tão agradável e pacífico, e já não se incomodava com o esfolado no joelho, queda de bicicleta. Sangrava um pouco, mas não era o suficiente para estragar a noite. Na verdade, era tudo perfeito. Depois que amanhecesse ela teria uma marca, assegurando de que aquela noite aconteceu de verdade. Não poderia ser um sonho, ela não queria que fosse um. Estava bom sento a realidade, era bom saber que a realidade era daquele jeito, não como ele pediu. Muito melhor.
    Sentou-se no meio-fio, deixando a bicicleta de lado por alguns segundos. Olhou para o céu, admirando o furo no manto negro. Era uma janela sim, ela sabia. E sabia também quem estava lá. O Homem do outro lado do buraco também olhava pra ela, e sentia-se feliz, tanto quanto ela. Provavelmente as estrelas fosse a comemoração daquela noite perfeita, ela nunca vira tantas estrelas juntas. Segurou o livro mais uma vez, sorrindo para si mesma. Como era possível se sentir tão bem? Passou o dedo pela ferida, sentindo uma fisgada de dor. Ela sorriu novamente, sem sentir a menor raiva, ou tristeza, ou qualquer outro sentimento que tornasse aquela ferida mais dolorosa do que realmente era.
    Pensou no Homem lá encima do outro lado da janela de luz. Ela pensava muito n’Ele, e sabia que Ele pensava muito nela, porque era isso que Ele havia prometido.
    A corrente da bicicleta estava quebrada, teria pelo menos mais um quilômetro para caminhar até sua casa solitária. Saiu da sua cidade natal muito nova, quando discutiu com os pais. Eles não entendiam que ela devia ser livre. Conhecera um rapaz, e ele a convidara para morarem juntos na cidade grande. Seus pais não aprovaram, mas a menina só queria ter os seus dias de gloria com o namorado. Mas esses dias se passaram tão rápido e, quando ela percebeu, estava trabalhando como secretária em uma clínica para pagar o aluguel quitinete, além de vender alguns pastéis para completar o orçamento. Com apenas vinte e um anos, já se mantinha sozinha, passava por dificuldades de gente grande. “Rebecca”, ela falou o próprio nome, baixinho, quase inaudível “você sabia que as coisas podem melhora?”. Depois sorriu feliz em saber que a resposta era “sim”.
    Ela estremeceu de leve, sentindo uma pontada no peito, lamentando as noites anteriores àquela. Lembrou-se do dia em que desistiu de viver, seu namorado havia sumido, seus pais não respondiam ás suas ligações, seus amigos não se lembravam dela. Ela só não esperava que tudo pudesse ser diferente, como aquela noite.
   
Na clínica, há poucos dias atrás, um senhor muito de idade esperava a sua hora de ser atendido. Rebecca estava absorta em pensamentos, tentando se lembrar da última vez em que falou com os pais. Não conseguia se lembrar. Olhou para aquele senhor, tão tranqüilo, aparentemente feliz, suas feições tão pacíficas, e tão concentrado em um livro preto que segurava, lendo página por página.
Rebecca engoliu em seco. Conseguiu ler as palavras “Bíblia Sagrada” na capa, em dourado. Rebecca não conseguia se lembrar da última vez em que fora a igreja, e desistiu de recuperar suas lembranças, certa de que o resto da sua vida não seria melhor.
_ O doutor irá atender o senhor logo, logo. – disse Rebecca, quebrando o silêncio.
    _ Obrigado – ele sorriu, respondendo com uma voz rouca e calma.
    Rebecca tentou se conter. Nunca vira alguém, e olha que tinha visto muitas coisas, ler tão assiduamente a bíblia. A única coisa que se lembrava de ter lido era o Salmo 23, algo sobre o Senhor ser o pastor, e nada faltaria... Apenas uma fábula.
    _ Senhor. Qual é a sua religião? – ela perguntou, sem conseguir conter a curiosidade.
    _ Perdão? – ele desviou os olhos do livro, olhando para a menina.
    _ Sua religião – Rebecca repetiu, desejando ter ficado calada.
    O velho deu uma risadinha que saiu como um grunhido baixo, mas tão sereno que chegava a ser curioso.
    _ Minha religião é Deus – ele respondeu.
    _ Ah... – Rebecca murmurou, sem compreender. Não compreendeu a resposta, e preferiu não pedir explicação.
    O velho foi atendido pelo médico e, assim que saiu, foi até o balcão da recepção, onde estava Rebecca.
    _ Minha jovem... – ele entregou uma ficha preenchida pelo médico e, depois, um papel amarelo – quer conhecer a minha religião?
    _ Não, obrigada. Eu tenho a minha.
    _ Sua religião é Deus?
    _ Eh... – Rebecca não compreendia. Ouvira falar em muitas religiões, e todas pregam sobre Deus. Mas Deus como religião? – Acho... Acho que não.
    _ Acredite, a minha religião é melhor.
    _ Qual a sua religião, senhor? – ela insistiu.
    _ Minha religião é Deus – o velho sorriu e saiu em seguida, deixando pra traz uma dúvida tão densa e sólida que começou a pesar na mente de Rebecca.
     Foi naquele momento que ela se deu conta do papel amarelo que ele havia deixado sobre o balcão. Imprimido com simplicidade, sem muito floreio, apenas letras pretas. “Encontro com Deus”, era o que dizia. As letras menores, abaixo, diziam “Venha conhecer a Deus, e descobrir que os problemas que você tem não são tão grandes como parece. Deus não se esqueceu de você. Mas e você? Se esqueceu dEle? 21h30min”.
    Rebecca se deu conta que não conseguia se lembrar da última vez que tinha ido a igreja e, pensando melhor, não pensava em Deus há um bom tempo. Uma pontada de culpa sem explicação fisgou o seu peito. Ela decidiu. Iria ao encontro, aceitaria o convite e tentaria, uma última vez, ajustar a sua vida desordenada, sem pais nem amigos.
    Enfiou o papel amarelo no bolso, grifando com uma caneta o endereço e, depois do encontro com o velho misterioso, não parou de olhar para o relógio, ansiosa, esperando o fim do seu serviço.
    Foi para casa, se arrumou e montou em sua bicicleta. No caminho, a corrente acabou arrebentando, ela caiu, e ralou o joelho. Praguejou muitos nomes, sentindo raiva da bicicleta, do chão duro demais, de si mesma, daquele velho na clínica, e de Deus, por não ter segurado a corrente por mais alguns minutos. Ela chorou, sentindo toda a raiva de uma vida inteira, sentindo que não podia agüentar mais. Enxugou o rosto, levantou a bicicleta e, empurrando-a com fúria, passou pelas ruas pouco movimentadas.
Poucos minutos depois, viu um aglomerado de pessoas em volta de um carro. Ela apenas ouviu sussurros, “Ele estava bêbado”, “Veio que nem louco”, “Atravessou o sinal vermelho”, “Podia ter atropelado alguém”, “Foi Deus quem abençoou”, “Graças a Deus ninguém se machucou”. Rebecca ouviu as palavras, que a engolfaram com tanta intensidade, como um ar fresco depois de sair de um forno de raiva e rancor. Graças a Deus ninguém se machucou. De repente, a ferida no joelho lhe pareceu uma benção, um milagre de estar viva. Ela seguiu o restante do trajeto sentindo o gosto salgado das lágrimas que escorriam dos seus olhos e caíam nos seus sapatos sem cerimônia.
 Quando chegou no “Encontro com Deus”, a primeira impressão foi de decepção. Não era um casarão, ou um palácio. Era uma casinha comum com janelas para a rua, pintada de azul claro e janelas brancas. Modesta, mas não o tipo de lugar onde Deus estaria. Uma senhora estava na porta, recebendo as pessoas que chegavam. Rebecca apertou a mão da mulher e entrou em seguida.
    A sala estava cheia de cadeiras de plástico, muito desgastadas, mas estavam quase todas ocupadas. Rebecca, por um momento, desejou não ter ido, mas, já que estava ali, não custava nada ficar um pouco mais. Procurou pelo velho que lhe dera o convite, mas não o encontrou.
    As nove e meia em ponto a porta dos fundos se abriu. O velho entrou, o mesmo velho que fora ao consultório aquela manhã. Ele se apresentou como Paulo e, indo à frente da sala, colocou a bíblia sobre um púlpito velho de madeira e, abrindo, começou a falar.
    Quase duas horas falando de Deus, do seu amor pelo mundo, dos milagres, os testemunhos de algumas pessoas, de Jesus, seu filho que deu ao mundo pelos pecados. Rebecca havia compreendido tudo o que Paulo disse, absorvendo cada palavra, refletindo em cada versículo lido.
   
    Rebecca pegou a sua bicicleta, ouvindo com prazer o ruído da corrente, contente consigo mesma. “Deus não segurou a minha corrente”, era disse, seus olhos marejados de lágrimas, mas que transbordavam de alegria, “Obrigada, Deus. Obrigada por não segurar minha corrente”.
    Ela voltou para casa, tomou um banho, desinfetou e cobriu a ferida, vestiu o pijama e se deitou, exausta. Leu um pouco do livro que trazia consigo desde o encontro, quando o velho Paulo lhe dera de presente, e, finalmente, rendida pelo cansaço, dormiu.
    Lá fora, a lua continua alva, iluminando as ruas. Não havia ninguém caminhando pelas calçadas, tudo estava deserto. Mas a lua continuava brilhando sobre o silêncio, ela estava de olho em tudo. O Homem do outro lado da janela de luz olhava para o mundo, um mundo que não olhava através da janela. Mas Rebecca havia aprendido uma lição importante. “Quando menos se espera, Alguém está nos olhando. Nós é que somos cegos demais para olhar de volta”. Paulo estava certo. Mesmo estando Rebecca com os olhos fechados, a lua ainda estava aberta, e o Homem ainda estava de olho em cada suspiro seu, em cada sonho. Na manhã seguinte ligaria para os pais, e contaria que teve um ótimo encontro. Nenhuma noite poderia superar aquela. Não que fosse a melhor. Era a única que valia a pena ser lembrada, e, com certeza, seria. Dessa, Rebecca não esqueceria. 


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Notas finais do capítulo

Essa história é inspirada em minhas crenças, na fé que alimento e no que acredito: Deus. Tem que existir alguém capaz de reger o universo, então deposito toda a minha confiança n'Ele, que me presentou com a inspiração para esse conto xD



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