Era Uma Vez o primeiro Vôo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 3
O Elevador




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-3-
O Elevador

    Existem muitos lugares onde grandes amizades, e coisas mais, começam. Não importa como, ou quando, nem mesmo onde. Acontece o tempo todo. Alguns conhecem pessoas especiais na escola, ou em algum parque, numa festa bacana de alguém que você não conheça, nos cultos de domingo, nas tardes jogando boliche. Mas existem lugares tão inesperados, em situações tão indesejadas, onde uma amizade pode começar, e deixar para nós algo que nunca vamos esquecer. A vida acontece dessa forma, ela não nos dá uma agenda com tarefas, não marca horas, ela simplesmente acontece sem previsão, e cabe a nós reconhecermos esses momentos e aceitá-los e, se possível, aproveitarmos.
    Foi assim que aconteceu no grande hotel em Paris, um hotel luxuoso, quatro estrelas, onde pessoas deleitavam suas fortunas em vinhos caros, caviar, bichos exóticos mortos, e qualquer coisa cujo nome seja tão difícil de pronunciar quanto comer.
    O hotel era organizado, com seus corredores adornados com peças caríssimas, feitas de ouro, cristais, quadros de ilustres artistas. Todo o tipo grã-fino freqüentava o lugar, fosse para negócios, um passeio de férias, encontros sociais ou ninho para amantes que se escondiam de suas famílias. Muitos estavam se hospedando naquela tarde, outros estavam acabando de sair, alguns pretendiam ficar por muito tempo. O luxuoso hotel contava com vinte e seis andares, um hall espaçoso, sala de jogos, de bebidas e qualquer outra utilidade que se possa dar a uma sala.
    Eram quatro elevadores sociais e outros dois específicos para o carregamento de bagagens. A porta de vidro emoldurada em madeira maciça envernizada se abria freneticamente, e uma maré de pernas apressadas entrava, sem nunca perder a pose que a gente da alta sociedade tanto prezava.
    Entre tantos, uma família, vinda do Canadá acabara de entrar. Mãe, pai, duas garotas e um menino mais novo, que insistia em enfiar as chaves do carro do pai nas fuças, cutucando o septo com selvageria.
    _ Querido – murmurava a mãe, preocupada com os olhares reprovadores para a criança – não coloque isso no nariz... Não, isso... Hei, isso vai te machucar.
    _ Deixa ele, mãe – falou a menina mais velha, cujos cabelos ruivos caíam até o ombro em um rabo de cavalo e os olhos verdes combinavam perfeitamente com a pele cor de pêssego. Pelos traços perfeitamente desenhados em seu rosto, devia ter seus vinte anos – Não precisa reprimir o menino.
    _ Não se meta, Marie. – pediu a mãe – quer que seu irmão se machuque?
    _ Ele ficou fazendo isso no carro o tempo inteiro com uma caneta e você não disse nada. – retorquiu a filha rápida e maliciosamente.
    _ É, mas...
    A mãe pensou em alguma resposta, qualquer coisa que pudesse convencer a filha de sua competência como mãe. Enfim, sem argumentos, desistiu. Simplesmente fechou a boca, puxou a chave da mão do menor e lançou um olhar de ultimato para os três filhos.
    _ É o seguinte – ela começou, seu rosto rígido e pálido como uma defunta viva – não quero ver nenhuma algazarra. Estamos em uma civilização, e uma muito privilegiada. Quero levar boas lembranças desse lugar. Marie, querida, seja um exemplo para seu irmão.
    O sermão cessou quando o gerente do hotel veio pessoalmente conversar com o pai. Eles trocaram uma conversa rápida, mas calorosa. Eles foram conduzidos até a recepção, onde receberam um cartão de acesso ao quarto.
    _ Suíte privilegiada – falou o gerente, pomposo – espero que gostem de nossa hospitalidade. Faremos o possível para atingir os seus padrões, senhores.
    _ Mãe, eu vou na frente, se não se importar. – pediu Marie, estendendo a mão para receber o cartão.
    _ Absolutamente – A mãe balançou a cabeça em negação – vamos juntos. Não quero ninguém perambulando o hotel.
    _ Mãe! Eu já sou adulta, posso me virar. – Marie cruzou os braços, deixando os filetes escarlates de cabelo deslizarem até o pescoço – não sou uma criança.
    _ Céus, Margareth! – o pai olhou para a esposa, tentando ser discreto e contendo o tom de voz irritado – não vamos fazer uma cena aqui, tudo bem. Dê logo a chave para Marie, ela sabe se cuidar. – dizendo isso, ele olhou para a filha, piscando discretamente.
    _ Obrigada, pai. – Marie encarou o pai, sorrindo aliviada e profundamente agradecida.
    _ Pelo menos leve a Angeline e o Greg – pediu a mãe.
    _ De jeito nenhum. – Marie simplesmente pegou o cartão magnético, sua bolsa acima da pilha de malas e deu as costas à família, sem se preocupar com os olhares zangados da mãe que quase perfuravam sua nuca. Quando estava perto do elevador, não conseguiu conter a primeira lágrima, que veio acompanhada da segunda, e da terceira. Ela só conseguiu conter o choro quando o elevador parou no hall e um jovem logo atrás dela, gritando e acenando os braços.
    _ Hei! Segura a porta, por favor!

    Entre o amontoado de pessoas que estavam no hall, muitos estavam em excursão. Fosse apenas por entretenimento, trabalhos de faculdade, ou pesquisas. Cerca de quatro grupos estavam hospedados no grande hotel. Entre eles, havia um grupo em específico, vindo do Brasil, onde os alunos de Arquitetura da USP já se despediam da cidade luz, onde fizeram passeios educativos, aprendendo a história da rica arquitetura de Paris. Eles acabaram de visitar a Catedral de Notre Dame, uma construção de 1163 com estilo gótico bastante marcante na cultura do país. Mas era a última visita, e o grupo de excursão já estavam se preparando para a despedida. Eles apenas precisavam pegar suas bagagens nos quartos e, em seguida, rumo ao aeroporto, onde tomariam o primeiro vôo de volta para casa.
    _ Hei, Lucas – um rapaz alto, magricela, com um rosto infantil demais para seus vinte e um anos, chamou o outro rapaz a sua frente.
    Lucas se virou para o amigo. Ele era alto, olhos e cabelos castanhos, um leve bronzeado no rosto e a barba contornando seu queixo e suas bochechas, um sorriso jovial que, ainda com vinte anos, revelava rugas já visíveis nos cantos dos olhos.
    _ O que foi agora, Brunão – Lucas falou para o amigo alto e magricela – se esqueceu como contar dinheiro estrangeiro?
    _ Não seja idiota. – Bruno levantou a mão para uma garota loura do outro lado do hall, chamando-a para mais perto – não podemos nos atrasar. Vamos perder nosso vôo. A Cláudia e o Michel sumiram, e o Tomás subiu pra pegar umas malas e até agora não voltou.
    _ Calma, cara. – Lucas olhou o relógio, despreocupado – ainda é cedo. Temos pelo menos duas horas até chegar no aeroporto.
    _ Eu não quero arriscar – Bruno apontou para o amigo, sério – você sabe, melhor que ninguém, como essa turma é. Eles vão dar um jeito de nos atrasar.
    _ Bruno, manda cada um pegar as suas malas e pronto. Eu não sei que idéia é essa de deixar o Tomás trazer toda a nossa bagagem sozinho.
    _ Mas ele se ofereceu – retorquiu Bruno em sua defesa.
    _ Ora... Ah! – Lucas deu um tapa na própria testa, como se uma resposta acabasse de passar por ela como uma mosca irritante – ele estava se esfregando com aquela camareira a semana inteira. Eles devem estar em um quarto, com certeza.
    _ Como é?
    _ Ah, você sabe como é o Tomás. Só carrega bagagem se ela for sentar no colo dele.
    Lucas riu da própria piada, mas Bruno não parecia interessado na brincadeira e, pela sua expressão, estava realmente preocupado com a pontualidade. Depois de tanto tempo longe das praias tropicais e o ar brasileiro, Bruno se sentia um peixe se asfixiando em um balão de ar.
    _ Vou fazer o seguinte – Lucas colocou a mão no ombro do amigo, tentando tranqüiliza-lo – eu vou lá em cima, encontro o Tomás, pego algumas malas e trago. Encontra a Claudia e o Anderson e manda os “cara” buscar as malas.
    _ É, já vi que não tem outro jeito...
    _ Não tem mesmo, irmão – Lucas se virou para os fundos do hall, onde se concentravam os elevadores – opa, deixa eu correr, se não vou esperar mais uma hora para outra carona.
    Lucas começou sua corrida até o elevador, atropelando algumas pessoas e pisando em sapatos de grife. Lucas avistou uma jovem de frente ao elevador, prestes a embarcar. Lucas teve que gritar em inglês, torcendo para que a jovem entendesse o idioma, se não fosse mais uma francesinha metida que mal conseguia pronunciar o próprio dialeto.
    _ Hei! Segura a porta, por favor!

    Apenas seis pessoas entraram no elevador. Um casal de meia-idade, carregados de jóias e pacotes de lojas de roupas, uma mulher com um Yorkshire nas mãos, um homem de terno risca-de-giz, e dois jovens bem apessoados. Lucas observou o cachorro encará-lo com um olhar malicioso, mostrando os dentes superiores. Marie se deteve na feição chamativa do homem de terno, com o bigode fino e repicado, os olhos azuis cintilantes e uma expressão dura, imóvel, como uma estátua.
    Nesse momento, um momento breve, mas ao mesmo tempo incontável, os olhares de Lucas e Marie se encontraram. Eles não sabiam ao certo o tempo que ficaram se encarando. Apenas que, quando perceberam, o homem de terno descera no sexto andar. Todos haviam desembarcado, apenas os dois estavam ali.
    Lucas desviou o olhar, preocupado com o que pensaria a moça quando percebesse que ele a encarar tão dsscaradamente. Marie fez o mesmo, desconfiando do tipo diferente do rapaz, a pele bronzeada, uma aparência que gritava “sou estrangeiro”. Foram apenas segundos, mas pareceram dez minutos longos e demorados. Finalmente, pararam no vigésimo primeiro andar. Lucas e Marie desceram no mesmo andar, mas seguiram direções opostas no corredor, seguindo caminhos diferentes. Lucas sorriu para si mesmo, lembrando-se dos olhos encantadores da moça, lamentando deixar o lugar.
    Lucas foi até o quarto de Tomás, ao lado do seu. Estava prestes a bater na porta, mas um ruído o fez parar. Era um barulho estranho, de algo rangendo. Uma risada ofegante e um gritinho feminino abafado, outras risadinhas baixas e o ranger outra vez. Lucas saiu de perto do quarto, entrando no seu às pressas. Sabia o que o amigo estava fazendo e, por mais que estivessem prestes a pegar um avião, era expressamente proibido, no código da amizade, interromper um amigo durante uma “despedida em grande estilo”.
    Ele simplesmente juntou suas coisas, roupas sujas, livros, máquina fotográfica, e souvenires dentro de duas malas e, com ímpeto, praticamente chutou-as quarto a fora, desanimado de carregar quase vinte quilos de bagagem até o hall. Puxou suas malas até a porta do elevador. Apertou o botão, esperando pacientemente a porta se abrir. Finalmente, depois de aparentes horas de espera, o elevador chegou, abrindo-se para o jovem. Lucas enfiou as malas no elevador vazio mas, antes que pudesse descer, ouviu um grito que vinha do corredor. Uma voz feminina, suave, tipicamente norte-americana.
    _ Segure o elevador, por favor!
    Mecanicamente, Lucas meteu o pé entre a porta e a parede, fazendo o elevador se abrir novamente, permitindo a passagem da jovem. Assim que ela chegou, os olhares se cruzaram novamente. Marie ficou nervosa, olhando o rapaz estrangeiro com as enormes bagagens ao seu lado, uma cara cansada estampada por traz dos simpáticos olhos castanhos.
    _ Er, pensando bem, acho que vou de escada. – Marie olhou para o lado, como se procurasse algum guardinha, ou alguém que não fosse um possível psicopata – eu tenho...
    _ Olha, não precisa – Lucas pegou suas malas e, puxando-as com esforço para fora do elevador, ainda segurando a porta, falou seu fluente inglês, acompanhado de um sorriso profundamente ofendido visível em seu rosto – Pode ir, eu espero o próximo.
    _ Não. Eu prefiro...
    _ Pode não parecer, moça – Lucas acenou com a cabeça para o interior do elevador, agindo cortesmente – mas eu sei ser cavalheiro.
    Marie olhou o interior do elevador, estudando as paredes com os olhos verdes atentos, como se a simples presença de Lucas pudesse impregnar o lugar e trazer alguma maré de desastre.
    _ Olha, eu não sou terrorista, ok? Não plantei nenhuma bomba nesse elevador– falou Lucas – eu só não quero que o meu último dia aqui seja estragado por alguém que não teve a menor importância pra mim durante toda a semana.
    Marie, a principio, o encarou, ofendida. Mas, percebendo que o elevador era seguro, finalmente entrou, aliviada. Lucas ficou do lado de fora, suas malas ao seu lado, esperando o próximo elevador. A jovem olhou o rapaz por um minuto, e uma onda de remorso invadiu seu peito. “É só um rapaz”, pensou ela, sentindo-se estúpida, “Ele não deve ser uma pessoa ruim. Eu sou a megera aqui”.
    O elevador estava quase se fechando quando Marie meteu a mão na porta, empurrando-a pra frente, obrigando o elevador a se abrir novamente. Lucas assustou-se com o impacto da porta batendo na sua mala, mas conseguiu disfarçar.
    _ Desculpe o meu modo – pediu Marie, sorrindo educadamente – eu não tenho o costume de fica sozinha... Venha, eu não me importo em dividir o elevador com você.
    _ Tudo bem, eu posso esperar...
    _ Seja um bom cavalheiro e atenda ao pedido de uma dama.
    Seu sorriso era um convite tentador, e Lucas não poderia recusá-lo, ainda que quisesse. Puxou as malas pesadas para o elevador, acenando com a cabeça em agradecimento. Ela se afastou alguns centímetros, ainda insegura, mas tentou disfarçar sua atitude com um sorriso.
    Lucas apertou o botão “H”, e o barulho das engrenagens soou acima de suas cabeças, o tilintar discreto das correntes que seguravam a caixa de madeira fez um ruído duvidoso antes de o elevador dar o primeiro arranque. Ele já estava em movimento, suave e quase imperceptível, até o hall. Marie, tentando parecer indiferente, começou a observar o elevador com um interesse fingido. A madeira escura coberta de camurça verde, o carpete vermelho, os botões dourados e a luminária de cristal que emanava uma luz amarela aconchegante.
    _ LeOir – murmurou Lucas – 1940.
    _ Como? – Marie olhou para o rapaz.
    _ A luminária – ele apontou para a luz amarela acima de suas cabeças – é um LeOir, feito em 1940. Foi feito durante a segunda Guerra. LeOir era um francês pouco conhecido, mas não se pode negar seu talento na arquitetura urbana.
    _ Realmente – Marie olhou novamente a luminária, sem interesse algum – muito interessante.
    _ Não é.
    _ Perdão?
    _ Você disse que é interessante – Lucas continuou falando, seu inglês impecável e bem treinado – mas não é. É entediante. Gastam uma nota com uma luminária enquanto pisamos em um carpete de brechó. Não percebeu? Isso aqui é sintético, e de péssima qualidade.
    Marie sorriu, divertida com o comentário do rapaz. Era difícil ver alguém desprezar o mundo de glamour e, ainda usando da intelectualidade, parecia ainda mais... Atraente.
    Marie estava prestes a fazer qualquer comentário. Mas não teve tempo. A engrenagem rangeu acima de suas cabeças e, com um barulho nada agradável, o elevador parou. Por instinto, a jovem olhou para cima, como se tentasse ver o que havia acontecido. Lucas, por outro lado, olhou para baixo,apurando os ouvidos.
    _ Você ouviu um barulho? – perguntou ele, ainda atento, olhando para o chão.
    _ Antes ou depois que o elevador parou? – respondeu ela, tentando ser sarcástica, mas sua voz saiu tremida e amedrontada.
    _ O barulho de trinca, algo do tipo.
    _ Eu deveria ouvir? – ela o olhou, abandonando a idéia de encarar o teto inutilmente.
    _ Sim. As travas de segurança do elevador. Eles ficam na parte de baixo. Se eles não travaram, então podemos cair a qualquer momento...
    _ Céus... – Marie olhou para o interfone dentro do elevador – vou falar com a recepção...
    Antes que ela pudesse se mexer, outro ruído desagradável, e o elevador foi impulsionado com uma velocidade fora do normal para baixo. Eles sentiram a inércia agir dentro das entranhas, fazendo os órgãos “subir”, enquanto o resto do corpo acompanhava o chão do elevador.
    Finalmente, o som que Lucas esperava ouvir. Como se uma enorme trava tivesse batido contra a parede, o elevador parou imediatamente. O rapaz pôde imaginar as faíscas do lado de fora devido ao atrito entre as barras de metais. Mas, sabia, estavam seguros.
    Marie pegou o interfone, desesperada.

    Foi uma longa conversa. A recepcionista não entendia nada que Marie falava e Lucas levou uns cinco minutos para convencer a garota a lhe entregar o fone e, depois de conseguir, explicou tudo para a mulher. A recepcionista chamou o gerente e ele disse que logo estariam fora do elevador. Era uma questão que minutos e um pouco de paciência. O gerente pediu mil desculpas pelo inconveniente e, estava prestes a pedir a milésima primeira, mas Lucas desligou o fone.
    _ Eles logo estarão aqui – informou o rapaz para a jovem ao seu lado – só precisamos de paciência.
    Marie encarou Lucas com desconfiança, um medo contido nos olhos, sua respiração era ofegante, mas decidida.
    _ Escuta, eu não sou um terrorista – Lucas enfatizou a palavra “não” – eu sou brasileiro. Estudante de arquitetura. Sou uma vítima aqui, tanto quanto você.
    Marie não se convenceu, mas, depois disso, sua respiração ficou amena, e seus olhos puderam descansar.
    O silêncio tomou o elevador, constrangedor e irritante. Marie, com um vestido amarelo, ficou de pé, no canto da parede, sem dizer uma palavra. Lucas, cansado de esperar, sentou-se em uma de suas malas, descansando as pernas, bocejando e esticando as mãos, espreguiçando-se sem cerimônia.
    _ Quer se sentar? – perguntou Lucas, apontando para sua outra mala.
    _ Não, obrigada. – respondeu ela, ríspida – estou bem em pé.
    Lucas revirou os olhos, irritado.
    _ Olha, moça. Você pode ficar em pé o dia todo e criar varizes, porque eu sei que o céu pode desabar mas você não vai se sentar no chão com esse vestido de grife. Mas se eu fosse perigoso, sentar na minha bagagem seria o menor dos seus problemas. Faça um favor a si mesma e relaxa. Os caras estão vindo nos tirar daqui.
    Marie fitou Lucas, sentindo-se insegura e, ao mesmo tempo, constrangida. Realmente, se ele fosse perigoso, ela já estaria em maus lençóis muito antes. Sentindo-se rendida pelo nervosismo e o cansaço, jogou-se sobre a bagagem do rapaz, tirando os sapatos de salto alto pretos e, colocando-os no outro canto do elevador, conseguiu relaxar os músculos.
    _ Não foi difícil, foi? – Lucas sorriu para ela, que retribuiu, agradecida.
    _ Varizes não combinam comigo.
    _ Não mesmo – Lucas riu, encostando a cabeça na parede – acho que vamos ficar aqui por algum tempo.
    Marie consultou seu celular, olhando as horas. O sinal dentro do elevador não pegava, então não havia como falar com ninguém da família e, desanimada, desistiu de tentar qualquer coisa por conta própria.
    _ É tão embaraçoso – murmurou Marie, meio rindo, meio lamentando – ficar presa em um elevador.
    _ Nem tanto – Lucas olhou para a garota bem nos olhos, admirando novamente como eles conseguiam ser belos e atraentes – vai ser legal quando eu chegar na minha cidade e dizer que fiquei preso com uma garota histérica.
    _ Para o seu bem, é bom que haja outra garota aqui dentro – ela brincou mas, apalpando a bagagem, ficou séria – só nós estamos aqui, certo?
    _ Se você quer saber se eu estou carregando algum corpo na mala, a resposta é não. Francesas não são as melhores lembranças de turistas.
    Marie sorriu, embaraçada outra vez. Mais uma vez tinha insultado o rapaz, mas ele apenas brincava e se divertia com a atitude infantil e desesperada da garota. Lucas sorriu sem saber porque, apenas sentindo que era um ótimo momento para sorrir.
    _ O que seu namorado vai dizer quando souber que ficou presa no elevador com um cara desconhecido? – perguntou Lucas quebrando o silêncio.
    Marie cruzou as pernas, puxando a saia para baixo, tentando cobrir as coxas, como se o comentário de Lucas fosse um convite para um sexo rápido dentro do elevador.
    _ Eu não tenho namorado – disse ela, rapidamente.
    _ Não tem? – Lucas olhou a garota, cético – como assim, “não tem”? Uma menina bonita... Quero dizer, não bonita... Gentil, bem apessoada... Você entendeu, certo? Eu não quis dizer que você é bonita.
    Marie riu do rapaz, levando a mão à boca como se tivesse algo nos dentes.
    _ Você ficou vermelho – falou Marie, apontando com a mão livre para o rosto enrubescido do rapaz.
    _ Não estou não.
    _ Ah, está sim.
    _ Deve ser o calor.
    _ Ou talvez – Marie apoiou os cotovelos nos joelhos, a cabeça sustentada pelas delicadas mãos – você não tenha muito jeito com garotas.
    _ É claro que eu tenho – Lucas cruzou os braços, irritado, olhando a expressão cômica da garota – Eu tenho uma namorada.
    Marie sorriu de leve, se perguntando se era uma forma de fugir do assunto, ou se, de fato, ele tinha uma namorada. Ela desejou que fosse apenas uma fuga.
    _ Sério? Quer dizer – Marie se virou para o rapaz, um pouco mais séria – você tem mesmo?
    _ Tenho sim – Lucas enfiou a mão no bolso, tirando uma carteira de couro preta com uma fivela marrom – Veja só.
    Lucas abriu sua carteira e, tirando algumas notas, volantes de propagandas e outros pedaços de papel, encontrou uma foto. Lucas estava sem barba na fotografia, uma camiseta branca exibindo os braços até os ombros, ao lado de uma garota de biquíni, belíssima, com os cabelos negros longos, molhados, caídos por cima dos seios. Ao fundo, uma praia ensolarada e tropical, cena brasileira, completava o momento amoroso do casal.
    _ Vanessa – Lucas disse – minha namorada. Estamos juntos desde o ensino médio.
    _ Vocês parecem muito felizes – disse Marie, olhando atentamente a foto, admirada como a pele morena da garota brilhava com a luz do sol – hei, você é bem fotogênico. Mas você fica melhor de barba – Ela completou, sorrindo.
    _ Obrigado – Lucas disfarçou o constrangimento, sorrindo forçadamente – mas Vanessa prefere sem a barba. Eu deixei crescer antes de vir, sabe. Queria experimentar um estilo novo.
    _ Novo é legal – falou Marie, entregando a foto nas mãos do dono.
    _ Também acho. Mas ela prefere meu rosto lisinho – Lucas colocou a foto na carteira e de volta no bolso – em troca ela não usa saias acima do joelho.
    _ Ciúmes? – Marie observou-o novamente – não parece o seu estilo.
    _ Você não me conhece.
    A resposta de Lucas pareceu grossa demais, e isso foi o suficiente para que o silêncio encontrasse uma brecha, dominando a atmosfera, que pesara um pouco. Lucas estava começando a se sentir pouco a vontade. Mas, dessa vez, Marie falou.
    _ Eu não tenho namorado. Na verdade – Marie suspirou profundamente, jogando a cabeça para o lado, soltando os cabelos ruivos do rabo de cavalo. Eles escorreram pelo ombro feio lava incandescente – Na verdade ele é meu noivo.
    Lucas estudou a expressão da garota por algum tempo, tentando compreender o que se passava em sua mente. Rendido pela curiosidade e simpatia pelos olhos verdes, ele perguntou:
    _ Você não parece satisfeita com isso.
    Marie pensou, e logo respondeu.
    _ Não estou. – Ela se ajeitou sobre a mala tentando encontrar uma posição menos cansativa. Assim que seus quadris pararam de se mexer, ela continuou – Quero dizer, ele não é uma pessoa ruim. Devon. O nome dele é Devon.
    Marie olhou para o rapaz e, percebendo que ele estava atento ao que dizia, continuou dizendo única e exclusivamente para seu único expectador.
    _ Ele me trata muito bem, é educado, vem de uma família inglesa. O pai dele freqüentou Harvard com o meu pai. São amigos desde então. Devon e eu crescemos juntos.
    _ Ah, entendi. Confusão de sentimentos. – deduziu Lucas.
    _ Não é bem isso. – pela primeira vez, Lucas percebeu o anel de compromisso no dedo da garota – eu sei muito bem o que somos. Grandes amigos, os melhores. Não digo que somos como irmãos, porque já nos beijamos e tudo o mais. Acho que somos algo entre isso. Nenhuma palavra inventada para descrever essa relação.
    _ Você quer se casar com ele ou não? – perguntou Lucas, sem entender ao certo qual era a o interesse da garota.
    _ Não que eu não queira. Eu só não acho que ele seja o grande amor da minha vida, aquele que vai fazer meu coração bater mais forte.
    _ Mas...?
    _ Mas ele me trata bem. Ele não suporta me ver triste, é um doce. – Marie parou por um minuto, e Lucas teve certeza de que a garota estava tentando conter algumas lágrimas teimosas – Então eu concordei.
    _ Vocês nunca namoraram? – Lucas ficou se perguntando como uma pessoa se casa com outra sem namorar. Era natural, um rito necessário antes que duas vidas se prendam uma na outra completamente.
    _ Não. Meus pais acharam que isso não seria necessário.
    _ Ah, entendo.
    _ Pois é. Eles são meio antiquados. Preferem um bom partido ao amor de nossas vidas.
    _ Isso é triste. – murmurou Lucas, imaginando como estaria Vanessa do outro lado do oceano, sem ter nenhuma notícia sua.
    _ Minha mãe disse que ela se casou assim com meu pai. Um homem rico, simpático. Não, ela não estava dando o golpe do baú. Ela sabia que ao lado dele seria feliz, e acho que não há nada de errado em querer ser feliz. Ela prometeu a si mesma quando subiu no altar que se esforçaria para amá-lo tanto quanto ele a amava.
    Lucas absorveu a história da jovem ao seu lado, perguntando a si mesmo como uma pessoa poderia conviver com a consciência limpa pensando dessa forma. Nesse momento, ele percebeu como as fronteiras, os oceanos e as ilhas não separam apenas etnias, culturas e línguas. Separava algo mais. Separava a forma de amar.
    _ Você não parece feliz. – Lucas disse para a jovem, sentindo que, talvez, não devesse ter feito o comentário.
    _ Como você mesmo me disse, você não me conhece.
    _ Tem razão.
    O silêncio continuou por alguns minutos. O ruído do elevador ao lado indicava que a cabine vizinha havia subido. Lucas sentiu um desejo enorme de falar, ouvir a voz da garota dos olhos verdes. Queria muito conhecer a sua vida, entender porque aqueles olhos escondiam uma tristeza que seu sorriso tentava encobrir. Talvez seria esse o efeito de se ficar preso em um lugar fechado com uma completa estranha, sabendo que não poderiam fazer nada além de conversar quando sua namorada estava do outro lado do oceano esperando notícias.
    _ Eu gostaria de ter filhos – disse o rapaz para a garota, sem encará-la.
    Marie olhou para o rapaz com assombro, como se fosse outro convite para um romance dentro da cabine.
    _ Não seja idiota – falou Lucas interpretando o olhar da garota – eu estou dizendo que eu sempre quis ser pai.
    Marie sorriu o seu conhecido sorriso de desculpas, e Lucas olhou como quem aceita o pedido.
    _ Você é jovem. Tem muito tempo ainda. Pode ser pai de muitos filhos.
    _ Eu poderia – Lucas respondeu, desanimado – mas Vanessa não quer ter filhos. Ela acredita que não veio ao mundo para cuidar de uma criança. Acha uma responsabilidade grande demais.
    _ Sinto muito.
    _ Mas ela disse que eu posso ter um Labrador, se quiser – Lucas riu, mas soou pouco convincente.
    _ Talvez deva conversar com ela – falou Marie, olhando o rapaz brasileiro, notando como o tom de pele combinava com os olhos castanhos, a voz grossa e rouca, provavelmente em função do cigarro – Isso não é algo que uma pessoa deva decidir em uma relação a dois.
    _ É difícil não ceder aos pedidos dela.
    Marie sorriu, encontrando no rapaz uma semelhança tão comum em seu noivo.
    _ Homens apaixonados são cegos – falou Marie, rindo.
    _ E você. – Lucas cortou o comentário antes que ele ficasse vermelho outra vez – não pretende ter filhos?
    _ Ah, como quero – Marie apertou os nós dos dedos no colo, excitada com a vaga imagem do futuro que a esperava – eu seria uma boa mãe, saberia educar, ouvir meus filhos, permitir que eles cometam seus erros, entende? Eu não iria sufocá-los com compromissos que eles não quisessem fazer parte, eu os deixaria ser crianças quando fossem crianças, adolescentes quando fossem adolescentes, e adultos quando eu precisasse de alguém para cuidar de mim.
    Lucas sorriu, sentindo a poesia na voz da garota sonhadora, admirado como o destino das pessoas eram tão diferentes.
    _ Você diz como se nunca tivesse nada disso.
    _ E não tive – Marie concordou rapidamente – ah, se você conhecesse minha mãe. Ela me sufoca. Ela pensa que eu tenho, o que, doze anos. Acho que ela não me viu crescer.
    _ Talvez ela tenha medo que você cresça e tenha sua vida longe dela.
    _ Não. Ela não liga muito pra isso. – Marie encarou o rapaz, e notava como seu olhar era repreensivo, como se ela fosse uma megera por dizer coisas daquele tipo a respeito da mãe – mas meu pai me ouve. Ah, ele me entende, sabe. Ele viveu esse mundo que estou vivendo, ele compreende a pressão de uma mãe severa. Eu tenho muito dele na minha personalidade. Minha mãe sempre me implica por isso.
    _ Se isso é verdade, seu pai deve ser uma pessoa incrível – Lucas sorriu e, Marie retribuiu, agradecida pelo elogio.
    _ Mas e quanto a você? – Marie empurrou os cabelos para traz das orelhas, exibindo brincos de ouro puro, com pedras que combinavam com o tom de sua pele – vai me dizer que não sofre nenhuma pressão em casa?
    _ Ah, desde criança! – respondeu Lucas, rindo para si mesmo lembrando do seu passado no Rio de Janeiro – quando eu descobri que tinha passado em uma faculdade em outro estado, minha mãe teve um ataque. Depois que ela aceitou minha partida, chorou o tempo inteiro. Quando eu estava indo, ela me beijou e disse que eu seria o menino dela pra sempre. Ah, Dona Glória. Saudades da minha velha.
    _ Que doce! – ela se admirou com o depoimento do rapaz, sua história parecia ser muito mais interessante e divertida que viver em uma casa cara onde a maioria das pessoas que transitavam por ela eram empregados – ela deve ser uma ótima pessoa.
    _ Foi isso que meu pai viu nela. O carinho. – Lucas continuou sua narração, sentindo como se estivesse lá, em cada momento, cada sensação singular, nunca esquecida – Minha mãe não freqüentou faculdade, mas meu pai fez Direito. É defensor público e é a única renda que eles têm. Ainda assim, são muito felizes. Nossa, você precisa ver como meu pai fica envolvido com os casos. Ele não se importa se elas não podem pagar, se as pessoas são inocentes, ele se dedica. Mas ele não é de ferro, tem seus momentos de desânimo.
    _ Sua família parece feliz. Se não fosse Angeline e Greg... Os meus irmãos. – Marie explicou quando o rapaz fez menção em perguntar – Se não fosse meus irmãos, eu teria ido embora de casa. Estou lá para protegê-los.
    _ Eles tem sorte em ter uma irmã tão dedicada. – Lucas acenou a cabeça positivamente.
    _ E você. É herói de algum irmão caçula? – perguntou Marie, cada vez mais curiosa com a história do rapaz.
    _ Na verdade, não. Eu era... Sou o caçula. Meu irmão mais velho, Gustavo, tinha saído de casa para viver nas ruas com sua banda. Sabe como é, era uma época propícia para novas bandas, com todo aquele talento, desejos de mudança, tudo o que sempre teve no Brasil. Eles viajavam todo o tempo, fazendo shows. Tinham até fã-clube, e, modéstia parte, meu irmão era bonitão como eu. Eu até assisti alguns shows, e sempre era o primeiro a ouvir os novos hits da banda... – Lucas fez uma pausa, como se vasculhasse na própria mente as palavras certas para descrer a sua história o mais fiel possível - Um dia meu irmão foi dirigir, mas ele tinha bebido demais. Ele bateu a vã do grupo com um caminhão.
    _ Eu sinto muito... – Marie foi sincera, e Lucas sentiu isso no tom da sua voz.
    _ Tudo bem. Ele cometeu um erro, mas eu sei que ele gostaria que eu corresse atrás de meus sonhos, e usasse os erros deles para não cometer os mesmos
    _ Então Gustavo foi o herói de um irmão caçula.
    Lucas ouviu o que a garota disse e o mesmo calor que sentia quando ouvia o irmão cantando o envolveu.
    _ É, acho que você está certa.
    Marie, cansada de ficar sentava, levantou-se um pouco espreguiçando e esticando as pernas. Lucas estava acostumado a ficar horas sentado em uma cadeira na faculdade. Apesar disso, ambos estavam igualmente ansiosos. Mas, estranhamente, era como se não quisessem que o elevador voltasse a andar, como se quisessem continuar ali por mais um tempo.
    Marie, depois de uma rápida ginástica, sentou-se no chão, os pés juntos encostados e os joelhos acima a mesma altura do queixo. Ela encostou-se na parede de frente ao rapaz.
    _ Você disse que faz engenharia?
    _ Arquitetura – o rapaz corrigiu.
    _ Está aqui pela faculdade?
    _ Na verdade, a excursão foi paga por um amigo meu. – respondeu Lucas – o pai do meu amigo Bruno é dono de uma exportadora no Brasil e, futuramente, pretende entrar na política. Está investindo na imagem primeiro, entende.
    _ Hum, boa estratégia.
    _ Nem tanto – Lucas riu, provavelmente imaginando o pai do amigo de terno, acenando para a multidão que aplaudia enquanto confetes coloridos choviam sobre milhares de cabeças – Ele já não é muito novo. Se demorar demais...
    _ Entendo... A vida acontece muito rápido.
    _ Rápido demais para se esperar.
    _ Meu tio-avô era senador – refletiu Marie – tinha quarenta e dois anos quando assumiu o cargo, mas morreu seis meses depois. Infarto.
    _ Sinto muito.
    _ Não precisa, eu não tinha contato com ele. Mas é estranho. Era um homem novo, se foi tão de repente. É que às vezes eu fico imaginando...
    _ Imaginando o que?
    _ Se eu tivesse conhecido ele... – Marie pareceu aluada por um momento, como se tentasse vivenciar uma vida que nunca acontecera – E seu o tivesse conhecido? E se ele tivesse feito parte da minha vida? Eu teria chorado no funeral dele? Será que a morte dele teria me afetado de alguma forma? Essas perguntas que nunca terão respostas, entende, porque nunca aconteceram...
    Os dois ficaram pensativos, como se, de repente, o passado fosse mais complexo do que realmente é, como se Marie tivesse aberto uma porta que sempre estivesse destrancada, mas as pessoas sempre ficavam alertas com o aviso de “perigo”.
    _ É como esse elevador – pensou Lucas, falando em voz alta, seguindo o raciocínio da garota – Pensa bem. E se ele tivesse continuado o seu curso? Não teríamos conversado. Não teria tido uma experiência engraçada e, confesso, foi uma das melhores paradas de elevador que eu tive.
    _ Eu concordo – Marie riu, mas dessa vez não cobriu o rosto, deixou os dentes brancos à mostra, e Lucas sentiu seu hálito fresco e cheiroso invadir suas narinas.
    _ Quando a gente sair daqui, bem que poderíamos tomar um café – arriscou Lucas.
    _ Um café? – Marie pareceu surpresa e feliz com o convite mas, quase imediatamente, seu semblante caiu, e o ânimo desapareceu – eu não posso. Provavelmente daqui vamos visitar um monte de clientes do meu pai. Precisamos parecer uma família perfeita.
    _ Não existe essa de família perfeita. – Lucas suspirou, lembrando-se dos amigos – é, acho que não vai ter jeito mesmo. Aliás, Bruno deve estar querendo me trucidar por entrar num elevador errado e, provavelmente, está tentando trocar as passagens para o próximo vôo.
    _ Acho que vamos ter que nos contentar com pastilhas de menta, então – falou Marie, tirando da mala de Lucas, um pacote verde e muito pequeno na bolsa lateral de redinha.
    _ Hei, isso é meu. – reclamou Lucas, nitidamente cômico. Na verdade, ele teria o maior prazer em dividir aquilo e muito mais com a garota.
    _ Tem o suficiente para nós dois aqui. – Marie, sorrindo maliciosamente, teve uma idéia inesperada – acho que vou dar uma olhada por aqui, ver o que tem de interessante.
    _ Não... – Lucas estendeu, tentando puxar a sua mala para longe da moça, mas ela usou o corpo como escudo – Não, essa aí não... Ela tem...
    A garota levantou a mala pesada, tentando afastá-la do rapaz, mas ele era muito mais forte que ela. Tentou puxar a mala mas, ainda assim, era pesada. Marie meteu a mão no zíper da mala e abriu, prestes a espiar o que havia dentro, mas o rapaz não desistiu, lutando sutilmente, sem tocar na jovem, tentando recuperar sua bagagem. Mas o espaço era muito pequeno e os dois não conseguiram se manter em pé muito tempo. Eles perderam o equilíbrio, a garota pisou no pé do rapaz, fazendo-o escorregar e cair de costas no chão macio, e a ruiva veio logo atrás, caindo sobre seu abdome. A bagagem se abriu desordenadamente, deixando várias mudas de roupas, fotos e lembranças caírem no chão com baque macio.
    _ Cuecas – murmurou Lucas.
    Ela escorregara para o seu lado, e seus olhares se encontraram quando eles estavam no chão. Por um momento, um breve momento, as pontas de seus narizes quase se tocavam, mas seus olhos definitivamente eram mais calorosos que o abraço de um casal de amantes no auge do amor, algo que nem mesmo o tato poderia medir a intensidade. Lucas, sentindo o corpo macio da moça, tratou de se levantar rapidamente, sentindo-se constrangido. Marie ajoelhou-se ao lado do rapaz, ambos muito vermelhos, talvez fosse pelo esforço durante a luta pela bagagem, ou pela vergonha de se tocarem. Dois estranhos se tocando, não se conheciam, jamais haviam se visto. Mas se aproximaram de uma forma que nunca fizeram com qualquer outra pessoa. Lucas nunca tinha visto tanta vida nos olhos de uma mulher.
    _ Cuecas, han... – Murmurou Marie, tentando apagar o breve momento de constrangimento – acho que posso lidar com isso.
    _ Desde que me ajude a arrumar tudo depois – Lucas decidiu fazer o jogo da jovem ruiva, fingindo que aquele encontro entre os olhos e o quase encontro de narizes não tivesse acontecido.
    A medida em que eles olhavam as peças, Marie ia dobrando e guardando cuidadosamente. Ora ria das estampas nas cuecas, ora achava muito sexy, provocando acessos de constrangimento no rapaz. Ela gostou ainda mais da foto do jovem com a namorada Vanessa em uma barca debaixo de uma ponte, o sol ao fundo projetando sombras quase vivas no assoalho de madeira da barca, o sorriso de um casal apaixonado e despreocupado.
    _ Sente falta dela? – perguntou Marie, admirando a fotografia.
    _ Um pouco – Lucas respondeu, mas, naquele momento, teve que mentir. Naquele momento, aliás, nada lhe faltava. Nada fazia diferença – nos falamos muito por telefone. Ela não dá essa oportunidade.
    _ É difícil passar muito tempo longe de quem sempre esteve do nosso lado – Marie olhava a fotografia, mas era como se visse outras pessoas, e Lucas suspeitava quem seria – Devon passava quase todos os dias lá em casa antes de ir para a faculdade. Me levava flores, dizia que estava pronto para me tornar a mulher mais feliz do mundo. Eu sinto falta de ouvir isso, às vezes.
    _ Tomara que ele consiga...
    _ Consiga o que? – Marie deixou a moldura sobre as roupas dobradas.
    _ Te tornar uma mulher feliz.
    _ Não. A mais feliz.
    Os dois trocaram sorrisos. Lucas imaginou se esse Devon conseguiria arrancar tantos sorrisos daquela garota como ele conseguiu em alguns longos minutos dentro de uma cabine de elevador. Marie imaginou que, se Devon conseguisse deixá-la tão feliz quanto aquele estranho estrangeiro conseguia, então ela estaria muito bem.
    Marie reuniu todas as coisas do rapaz na mala, organizou melhor do que como estava antes, e Lucas agradeceu a moça, ajudando-a a fechar a mala quase entupida de peças de roupa desnecessárias. Estavam forçando o fundo da mala com os pés, batendo com força, quase perfurando o pano. Eles se sentaram no chão, exaustos com o exercício, rindo de qualquer coisa e, quando perguntaram um para o outro do que estava rindo, nenhum deles sabia responder.
    Os dois simplesmente ficaram ali, esperando. Não sabiam o que, mas o silêncio que os envolvia parecia aproximá-los ainda mais. Embora estivessem ali há um bom tempo, só naquele momento notaram o frio que começara a fazer, talvez fosse o ar condicionado que estava ligado. Lucas pegou dois casacos de tecido fino, entregando um para a garota.
    Eles continuaram sentados, sentindo o frio, o silêncio. Marie deixou sua cabeça escorregar, caindo de leve nos ombros do rapaz. Ele não se importou, apenas gostou do toque suave as sua bochecha em seu pescoço, como se, de repente, fossem íntimos, se conhecessem desde crianças e, agora, suas almas haviam se reencontrado, esperando por aquele momento por muito tempo.
    _ Quando eles vão nos buscar? – falou Marie, em voz baixa, mas de forma que o rapaz pudesse ouvir.
    _ Não sei, talvez não demore.
    _ Que pena – Marie estava com os olhos entreabertos, mas não sentia sono, apenas conforto – aqui está tão bom.
    Lucas sorriu para si mesmo. Concordava com ela, mas queria guardar aquilo para si, em respeito a Vanessa, a namorada que ele escolhera para viver ao lado o resto da vida.
    _ Quanto tempo deve ter passado? – perguntou ela.
    _ Não sei. Umas duas horas, talvez.
    _ Puxa... pra mim parece uma vida inteira.
    Era verdade. Ali dentro, naquela caixa fria e estreita, eles haviam dividido sentimentos de uma vida inteira, partilhado de confidências que jamais diriam ao resto do mundo. Uma história acabara de ser escrita naquele momento, e eles nem haviam se dado conta disso.
    Marie olhou para o rapaz, seu queixo ainda apoiado nos ombros de Lucas e, sentindo uma proximidade inexplicável, sorriu. Ele retribuiu, sentindo o estranho desejo de abraçá-la e dizer que gostaria de passar os próximos cinqüenta anos ao lado dela. Ao invés disso, ele apenas colocou os cabelos ruivos da moça atrás das orelhas, e voltou sua atenção para o carpete aveludado.
    _ Estou pensando em não me casar com Devon – murmurou Marie, deixando os olhos saírem de foco, olhando para o nada.
    _ Estou pensando em ter filhos – Lucas murmurou – Se for menino, ele vai jogar basquete, ou futebol. Se for menina, vai ser médica, ou advogada.
    _ Você vai se sair um ótimo pai – sorriu Marie, sentindo a verdade em suas palavras, como se não houvesse ninguém melhor no mundo para ser pai de uma futura médica e um jogador de futebol.
     _ Ele vai se chamar Lucas. Lucas Júnior.
    _ Ai, esquece o que eu disse – Marie balançou a cabeça – você vai ser um pai terrível.
    Os dois riram, suas vozes se misturaram sutilmente no ar, como num abraço, como se o som fosse capaz de substituir um toque entre eles. Lucas se impressionava em como a vontade de continuar ali crescia, como se ficar preso em um elevador fosse a melhor coisa que poderia ter lhe acontecido. Melhor do que a Catedral de Notre Dame. Melhor do que Paris inteira.       
    De repente, sem aviso nenhum, um ruído estridente fez estremecer o metal do elevador, como se a cabine tentasse se mover. Marie levantou-se, assustada. Lucas deu um salto, deixando sua bagagem cair com estrépito. Ele correi até o interfone mas, antes que pudesse pegá-lo, ele tocou. Ela a recepcionista. Ela havia dito que o elevador já estava funcionando.
    Lucas nem tinha desligado e o elevador começou a se mover, silenciosamente, tranquilamente, no embalo sutil do cabo que o prendia tão firme, como um pai que segura o filho no escorregador, garantindo sua segurança.
    Marie e Lucas se entreolharam, permitindo que o silêncio os envolvesse mais uma vez, uma última vez, deixando que o movimento quase imperceptível da cabine os transportasse para outro lugar, sem nenhum ruído, sem vento, sem outras pessoas desconhecidas. Apenas dois desconhecidos que se conheciam mais do que imaginavam, sentindo que, dentro de alguns minutos, eles teriam que partir.
    Pareceu ter durado horas, mas foram apenas vinte e quatro segundos. O elevador parou no hall, a porta se abriu e as vozes, o eco, os carrinhos recheados de bagagens arranhando o chão, todos os sons invadiram a cabine em um alvoroço despertando os dois. Marie só pode perceber que estava fora do elevador quando sentiu o perfume do seu pai. Ele estava abraçando a filha, preocupado com a garota, sentindo que, talvez ela tivesse ficado com medo.
    _ Eu estou bem, papai. – falou a garota vagarosamente – eu estava com o...
    Então ela se deu conta. Não perguntara seu nome.
   
    Lucas foi puxado por Bruno e Anderson, dois amigos bastante rabugentos, tagarelando sobre como foi difícil trocar as passagens, e que deveriam estar no aeroporto dentro de trinta minutos. Suas malas não estavam mais no elevador. Na verdade, ele também não estava. O grupo da excursão estava no hall, conversando, perguntando se Lucas estava bem.
    _ Eu estou bem, pessoal. – falou o rapaz vagarosamente – eu estava com a...
    Então ele se deu conta. Não perguntara seu nome.

    Lucas vasculhou o hall, procurando por qualquer indício da garota. Seus olhos pararam bruscamente em uma moça ruiva dentro do elevador, a porta estava se fechando, e ele pode admirar, num último segundo, seus olhos verdes muito vivos. Ela o encarou também, tentando esticar o pescoço para ver melhor o rosto de seu estrangeiro por mais um segundo e, pela última vez, eles puderam sentir o calor dos olhares trocados.
    Ele queria ter corrido, queria ter buscado a garota, a feito voltar com ele. Mas então se lembrou de Vanessa, do amor de sua vida, a sua futura esposa que não queria ter filhos, lembrou-se de Devon, o melhor amigo que nunca poderia ser o grande amor. Lembrou-se de Dona Glória, do irmão Gustavo e da vida que o esperava fora daquele hotel. Ele pensou em sua vida, pensou na vida dela, pensou na vida dos dois juntos, e na vida de cada um, separados. Tantos pensamentos o seguraram no chão, atônito, indeciso e impressionado, percebendo, pela primeira vez, como amar poderia ser bem mais complicado.
    Naquele momento, não importa o que acontecesse, aqueles olhos verdes estariam marcados em sua mente pelo resto da vida. Ele se casaria, não teria filhos, teria um Labrador chamado Rex, ou talvez Pluto, mas a garota ruiva não estaria em seu futuro. Ele levaria a namorada ao altar, e a garota do elevador não estaria sentada no fundo da igreja. Ele percebeu que a menina sem nome faria parte de sua vida para sempre, ainda que não estivesse lá, assim como ele faria parte da vida de Marie até o altar, os filhos, as festas caras, a velhice, até o dia em que aqueles olhos verdes se fechassem para o mundo para sempre. Eles teriam um futuro distantes, mas lado a lado. Ele jurou nunca se esquecer da voz dela, ou do tom dos seus olhos, ou da maciez da sua pele, ou do seu temperamento divertido e imprevisível.
    Lucas saiu do hotel, sentindo a rajada de ar quente que tomou todo o seu corpo. Ela estava em algum quarto daquele hotel, pensando nas mesmas coisas que ele. Talvez ele nunca mais fosse encontrá-la de novo, talvez fosse para ser assim mesmo. Talvez fosse um amor que se idealizasse e nunca fosse esquecido. Mas Lucas estava confortável, pensando que, talvez, em algum lugar como aquele, Marie e Lucas saíram do elevador de mãos dadas, tomaram uma xícara de café e fizeram uma viagem, se casaram, tiveram seus próprios filhos e um vira-latas, e viveram um romance que não estava escrito pra eles.
Vanessa era o amor de sua vida. Então, o que era a garota do elevador, dona dos olhos verdes mais lindos que ela já vira? Não poderia ser o grande amor de sua vida, Vanessa já o era, mas não poderia ser uma grande amiga, quase como uma irmã. Estava entre isso. Não. Estava acima de qualquer coisa. Nenhuma palavra tinha sido inventada para descrever essa relação.

    Seis anos depois, Marie se casou com o amigo Devon, teve dois filhos. Lucas e Gustavo, os pequenos mais importantes de sua vida que carregariam em seus nomes, lembranças que nunca poderiam ser esquecidas. Lembranças que estariam visitando os corredores da sua mente enquanto ela pudesse viver. Toda vez que chamasse o pequeno Lucas ou Gustavo para um passeio de carro ou para o jantar, ela se transportaria outra vez para dentro daquele elevador, onde, um dia, conheceu o seu quase-amor pra toda a vida.
   
Lucas se casou com Vanessa, compraram um Labrador e o batizaram de Devon. O melhor amigo de Lucas traria preso à coleira o nome do homem que tornaria os dias da jovem do elevador os dias mais felizes possíveis. Daria a ela todo o amor e afastaria toda a dor que pudesse incomodá-la. Lucas simpatizara com o nome, sentia-se profundamente grato quando o cão encostava o focinho molhado em sua perna, ou deitasse no seu colo, espreguiçando-se, como um sinal de que a ruiva dos olhos verdes estava bem, e feliz. Ele sabia que, mesmo depois de casado, ela seria eternamente seu quase-amor pra toda a vida.   
   
Eles nunca se encontraram depois daquele dia no hotel, mas nunca deixaram de pensar naquele dia. Envelheceram, tiveram uma vida boa, com boas lembranças, boas amizades, bons momentos. Viajaram para todos os lugares e, frequentemente a Paris. Olhavam de um lado para o outro, andavam nas ruas atentos aos rostos, tentando familiarizá-los ao estranho no elevador. Mas nunca mais se viram. E viveram essa busca em segredo, algo mais do que amor, diferente de amizade, um sentimento secreto e desconhecido. Um amor que nasceu sem explicação, e se fez vivo sozinho, vivendo insistentemente na cabeça de Lucas e Marie. Até o último suspiro, carregaram na memória a imagem de seus rostos, nenhum nome, nenhum cenário em especial. Apenas dois estranhos e um elevador.

 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

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