Era Uma Vez o primeiro Vôo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 2
Dois Mundos




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-2-
Dois Mundos

    Ele estava de pé na beirada da calçada, ao lado de um carro luxuoso, admirando os malabaristas que instigavam a atenção dos pedestres e motoristas. Perto daqueles artistas de rua, aquele carro com todo o seu luxo não chamava atenção alguma. Ele gostava de ver a sincronia, a perfeição dos movimentos, a habilidade que fazia o coração dos espectadores palpitar a cada lance, quando a bola de tênis quase tocava o chão e, talentosamente, era arremessada de novo, e de novo, e de novo. Uma repetição que os olhos não se cansavam de ver. Ele gostaria de poder fazer aquilo, mas não podia. Suas oportunidades eram poucas, sabia que nunca poderia movimentar com tanta maestria as bolinhas que, sozinhas, não despertavam interesse algum.
Do outro lado da rua, dois anjos prateados permaneciam imóveis, suas mãos curvadas sobre a cintura, os pés dobrados como um cortejo às moças que passavam pela rua, e sorriam para as estátuas vivas. Se piscasse, perderia o movimento rígido e ágil dos anjos cobertos de tinta. Ali, no meio da cidade, onde os passos apressados seguiam o ritmo frenético do relógio, havia algo mágico, encantador, capaz de levar, por um breve minuto, todas as preocupações. O garoto continuava imóvel na calçada, admirando os artistas que ganhavam a sua vida divertindo as pessoas, dando a elas um pouco da alegria que sentiam quando tinham controle total sobre a atenção do mundo. Mas o garoto sabia como a vida era difícil, sabia que uma oportunidade daquelas nunca iria se abrir pra ele, e uma ponta de desesperança abriu seu peito. Se pudesse ganhar dinheiro arremessando bolas, se pintando e alegrando tantas pessoas, ele amaria sua vida. As outras crianças do outro lado da rua, com suas roupas surradas e encardidas, vendiam saquinhos de bala, riam e batiam palma para as estátuas vivas.
    O sinal se abriu, e os malabaristas se afastaram, deixando a pista livre para os carros. Algumas pessoas sorriam e batiam palmas, outras fechavam a cara e olhavam com repulsa. Mas os artistas não se importam com isso. Eles simplesmente tiram seus chapéus e fazem uma reverência, para os dois tipos de pessoas. O garoto gostaria de ter muitas moedas e um carro, passar por aquele semáforo todas as vezes e torcer para a luz ficar vermelha, enquanto assistia o espetáculo e enchia a latinha dos malabaristas com as moedas.
    Ali, a luz vermelha era o holofote, a largada, onde as bolinhas apostavam corridas entre si nas mãos meticulosas dos artistas. Novamente, os garotos do outro lado da rua bateram palmas, e o garoto sozinho na calçada voltou sua atenção para os anjos. Agora um deles segurava uma rosa branca e entregava a uma senhora que carregava duas sacolas de compras. Ela sorriu, agradecida. O anjo segurou sua mão delicadamente e beijou as costas da mão, um cortejo doce e sincero, como se agradecesse pelo sorriso. Era como se todos eles estivessem ali, não pelo dinheiro, mas pelo reconhecimento. Ali, no meio de tanta fumaça negra e pessoas apressadas com as agendas cheias de estresse, ele conseguiam se divertir.
    O garoto desejou saber manejar o bastão do malabarista, as bolas de tênis, lançar ao ar e segurá-las, mas quando mais pensava nisso, mais percebia que era um sonho inalcançável. O mundo lhe tirara essas oportunidades. Ele só podia assistir, e se imaginar no meio da faixa de pedestres. Seu coração batia em disparada quando o sinal voltava a ficar vermelho. Ele sentou-se na calçada e colocou os joelhos próximos a cabeça, envolvendo-os com as mãos e apoiando o queixo nos braços, sem nunca se cansar dos movimentos repetidos dos malabaristas, dos gestos rígidos e robóticos dos anjos prateados.
    Atrás dele, a porta de correr da farmácia se abriu quando um senhor gordo passou por ela. Ele parou por um minuto, a um metro de distância do carro e, encantado com o design do veículo, pregou o rosto flácido e gorduroso no vidro fosco, tentando enxergar o interior. A marcha automática, o couro preto que revestia o banco, o painel de bordo, o interior possante e o carpete vermelho. O garoto se deteve por um segundo para olhar o homem que admirava o carro de luxo. “Pobre senhor”, pensou o garoto. “Enquanto o mundo aqui fora nos oferece um espetáculo gratuito, o senhor fica aí, olhando um monte de metal”. Para o garoto, trocar os malabaristas e os anjos de prata por um carro importado era um desperdício, a forma mais eficiente de se mostrar fútil e superficial. Não, o garoto jamais faria aquilo. Ele trocaria mil carros daquele por um dia embaixo do semáforo, vivendo aquela aventura e sentindo a emoção, os olhos de estranhos atraídos pela sua habilidade. Mas era uma pena. Ele não teve esse tipo de oportunidade... Ele só podia assistir, e lamentar sua falta de sorte.
    A porta de correr da farmácia logo atrás dele se abriu novamente. Quem saiu, dessa vez, foi uma mulher de meia idade, cabelos louros impecavelmente amarrados, uma roupa de grife e os sapatos de salto alto lustrosos. Ela enfiou a mão no bolso do casaco e, pegando a chave, apertou um botão. O som do “bip” veio do carro de luxo. O garoto se virou para a mulher, que caminhava até o veículo. Ela percebeu a criança sentada na calçada e, com um olhar repreensivo, falou:
    _ Filho, não vá sujar sua roupa. Saia desse chão sujo e entre no carro, por favor.
    Sem uma palavra, o garoto se levantou, olhando pela última vez o malabarista e os anjos. Ele entrou no carro, pesaroso. Que pena, ele não tinha oportunidades na vida... Não as que ele queria.


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