Chiptune Works! - Random Events escrita por Shirodan


Capítulo 13
Track 12 - Fugues Collide II


Notas iniciais do capítulo

É... Então, os transitores da placa mãe do meu PC estavam superaquecendo, o que levou à suspensão do sistema de som, então ele foi pro concerto. Ele só voltou ontem pra mim, então, perdoem-me pela demora de 10 dias! ;-;



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Enquanto guardava a partitura de Fantasia e Fuga em Sol, de Bach na caixa de partituras de fugas, eu procurava uma partitura que há muito não era lembrada por mim.

Talvez sejam as circunstâncias nas quais me encontro, onde ainda há tempo pra ir naquele maldito ensaio. Quero dizer, ainda são 13 horas, eu ainda poderia ir. Mas eu recuso a oferta por vários motivos, e nenhum deles inclui a incapacidade técnica dos membros. Muito pelo contrário, inclui a minha incapacidade de conversar com as pessoas de modo que elas entendam o que eu quero fazer. Eu sou completamente ciente desse fato. Nem tudo que acontece de “ruim” comigo é culpa dos outros, eu não sou burro e egoísta a tal ponto. Eu acho, na verdade.

Eu não sei direito porque eu gosto tanto de Bach. Sério. Talvez seja o sentimento que ele passa por meio das notas, pontos, contrapontos, notações e harmonias que ele cria. Ou, talvez seja pela temática que ele escolheu. Ou, até mesmo seja porque eu gosto da pessoa que ele foi, uma pessoa que só queria viver da música (e que conseguiu fazer isso). A resposta mais provável é a junção dessas três com mais algumas coisas como “a técnica dele é inigualável, em sua própria maneira”.

Enquanto passava pelas partituras do mesmo modo que alguém passa pelos discos numa loja de discos. Impacientemente, porém ainda assim feliz de estar na companhia de todo aquele material. Sinceramente, eu tenho que organizar minhas partituras por compositor. O que eu tinha na cabeça quando decidi organizar por ano de composição?

Então, eu não acho o que eu procurava, mas sim uma partitura que não poderia ser ignorada por mim, naquele instante. Eu deixo a caixa na borda do órgão e me direciono ao piano elétrico.

“Die Kunst der Fuge” ou “A Arte da Fuga”, BWV 1080, lançada em 1745.

Eu ponho o livreto no apoio para partituras do meu piano elétrico e folheio ela até achar a parte que queria, Contrapunctus IX. Piano para quatro mãos.

O interessante nessa obra, como um todo, é que ela considerada como um dos pontos altos da música europeia. A complexidade de sua forma e estrutura são surpreendentes, a ponto de terem fugas espelho, onde se consegue inverter a partitura completamente e não ter perda da musicalidade. Infelizmente, ela ficou incompleta por conta da morte de Bach. Atualmente, ela é organizada por complexidade e tipo de peça. É bem interessante de se ver.

Enfim, o único jeito de eu tocar uma peça para quatro mãos é cortando duas das linhas. Logo, eu vou cortar as secundárias e ficar com a mão esquerda primária e a mão direita primária. Sim, o som vai ficar incompleto, como uma bolacha sem recheio, mas eu não ligo. Eu sinceramente não ligo mais pra isso.

Essa fuga, Contraponctus IX, demonstra toda a capacidade musical de Bach. Em poucas palavras, ela é como um passeio em um dia nublado onde a neblina é alta, e as calçadas estão lamacentas. É pura e suja, ao mesmo tempo. Dá aflição e prazer ao mesmo tempo. É a convivência do ódio e do amor, da guerra e da paz. Até que, por fim, esse passeio termina junto com a música. Como se fosse uma volta pelo quarteirão, com início e destino nos portões de sua casa. É um ciclo autossuficiente.

E mesmo assim, meu espírito não se acalma. Algo me deixa em aflição, algo me deixa irritado, algo me deixa triste. Algo me deixa com ódio de mim mesmo.

Ao me esticar parar pegar a caixa de partituras de fugas, eu acabo derrubando-a, pois ela era mais pesada do que eu pensava, além de eu não ter conseguido pegar em um lugar que daria um equilíbrio melhor pra mim.

189 livretos no chão. Em cima de todos eles, está aquela partitura, a que eu estava procurando.

Ludwig van Beethoven, Grande Fuga, Op. 134.

Essa é considerada a maior fuga feita por alguém além de Bach. Ela foi feita por um Beethoven quase completamente surdo. Infelizmente, eu não tenho a Opus 133, que é a versão verdadeira da obra com o fim que Beethoven acreditava ser o melhor. O outro foi solicitado pela publicadora das obras dele, pra que fosse algo mais comercial e tocável.

Dizem que na primeira vez em que ele tocou a Grande Fuga, pediram para que repetissem somente dois dos movimentos do quarteto de cordas. Beethoven, enfurecido, gritou “E por que eles não repetem a Fuga? Aquilo sozinho deveria ter sido repetido! Gado! Asnos!”. Como se pode ver, ele não era simpático.

É uma obra cheia de dissonâncias, que Beethoven parecia gostar desde que havia ficado surdo. São cinco minutos de pura dissonância e então um clima etéreo e tentador se instaura. A complexidade dissonante e contra pontual é o que faz dessa obra quase irreprodutível. São necessários m´sucias muito bons pra se tocar isso em quartetos de cordas ou em piano pra quatro mãos. É frenético e suave ao mesmo tempo. É a cara de Beethoven.

E eu realmente não sei como vou tocar isso sozinho. Quero dizer, todas as linhas têm destaque. É praticamente impossível tocar isso sozinho. Mas eu o farei, nem que seja a última coisa que eu faça. Nem que meus dedos se quebrem, nem que meu ombro se desloque, nem que eu morra. Eu estou disposto à morrer pela única coisa boa nesse mundo. Eu estou disposto à morrer pensando na única vez em que a música com outras pessoas foi divertida.

Não é como se eu existisse nessa sociedade de qualquer forma. Eu sou um vazio preenchido por nada. Importante pra ninguém, digno das notas de ninguém.

Não que isso seja de alguma importância para mim. Eu escolhi essa vida, eu me basto. Mas, mesmo assim, porque eu me sinto tão mal? Porque eu não me satisfaço com a minha própria música?

Com esse turbilhão de pensamentos em minha cabeça, eu começo a tocar.

O meu maior erro nessa situação foi deixar a porta do meu quarto aberta.

Os primeiros compassos, o primeiro minuto é fácil. É como o fim de uma tempestade, um céu de azul vibrante, os campos mais verdes do que nunca, as flores mais belas do que nunca. Cada passo é uma nova descoberta.

Aí as outras duas mãos entram. É aqui que minha dificuldade começa.

Não importa o quão talentoso ou habilidoso eu seja, é impossível tocar uma obra de quatro mãos em duas. É a mesma coisa que tentar tocar uma obra orquestrada com 2 pessoas, é essencialmente impossível.

É triste. É frustrante. Ludwig van Beethoven, por quê escrever obras para quatro mãos, meu caro? O que se passava na sua cabeça quando você estava compondo isso?

É melhor que eu desista de tudo, de uma vez por todas. Não tem um porquê em continuar com essa tolice. Isso é autodestruição. Isso não combina nem um pouco com a minha personalidade.

No exato momento em que eu tirei minhas mãos do teclado, eu fechei meus olhos em frustração, mas...

A música não parou. Era a linha do segundo par de mãos, que eu não estava conseguindo tocar.

Eu abro os olhos, e aquelas mãos eram definitivamente as de uma garota. Unhas grandes e pintadas de preto. Mãos delicadas, as mãos de um pianista de verdade. As mãos de alguém que vê o piano como uma parte de seu corpo. As mãos de alguém que ama a música e, acima de tudo, faz de tudo para preservá-la.

“Não se toca uma obra para dois pares usando só um par, Shion-kun.”

A mesma coisa que aquela pessoa me falou, há exatos nove anos e cinco meses. Exatamente a mesma coisa.

Essa voz... Se não me engano, é a voz de uma das pessoa do clube. Daquela garota de cabelos azuis, que mudaram de cor no meio da semana ou algo assim.

Enquanto eu voltava a tocar a minha parte, nós começamos a conversar, naquele cenário majestoso que só Beethoven consegue compor e destruir ao mesmo tempo. No meio do campo florido, uma valsa. As flores murcham e voltam à vida em ritmo frenético, mas a valsa se mantém intacta. Aqueles dois personagens intocáveis em um cenário completamente bizarro era algo belo de se ver e ouvir. Essa é a música, esse é o universo de Beethoven. Um universo de realismo e beleza inigualáveis.

“...”

“A sua face enquanto tocava essa peça de modo incompleto... Você estava em sofrimento, não, Shion-kun?”

“...”

“Shion-kun, sem você, eu não conseguiria tocar isso.”

“... Não posso negar que sem você, eu também não conseguiria tocar isso. Mas não se engane, não é por ser você especificamente.”

“A música não é algo solitário...”

“Muito menos um Réquiem eterno cantado por várias pessoas.”

“Ou uma Fuga eterna, Shion-kun.”

“...”

A calmaria. Um abismo com uma flor do outro lado. As infinitas possibilidades que se abrem, mas o retorno à Fuga é seguro. Mas agora, a valsa já não está presente, e tudo o que há é a dança da vida por si só. Belo e assustador ao mesmo tempo. Um desespero romântico, uma urgência imparável de beber a vida num gole só e uma consciência eterna de que esse gole lhe custaria a vida. O retorno aos primórdios. O eterno ciclo da Grande Fuga de Beethoven.

“Você não gostaria de depender dos outros e dos outros dependerem de você, Shion-kun?”

“Isso é tudo uma farsa, e você sabe disso.”

“Se o mundo inteiro é uma farsa, ele acaba por se tornar verdadeiro. Irrefutavelmente verdadeiro.”

Eu não tenho um contra argumento pra isso.

“Não vá mais fundo no poço da solidão, Shion-kun... Tire essa armadura pesada...”

“...”

“Eu quero te ajudar! Me deixe te ajudar!”

“Por que você quer isso?”

“Porque eu sei como é estar nessa situação! E porque...”

“Porque...?”

“Eu quero fazer música com você, Shion-kun! Imagine as maravilhas que criaríamos juntos?!”

Talvez, só talvez, essa pessoa seja quem eu estive procurando por todo esse tempo.

“Você... Beatles ou Rolling Stones?”

“The Who.”

“Eca. Tchaikovsky ou Mussorgsky?”

“Vivaldi.”

“Eles não são nem da mesma era!”

“Vivaldi é melhor que tudo, Shion-kun!”

“Acho que você está errada, mas... Pat Metheny ou Paco de Lucia?”

“Al di Meola!”

“Boa escolha, mas... Ah, pare de dar uma resposta que não está nas alternativas, pelo amor de Deus! Qual é o melhor compositor do Grupo dos Cinco?”

“Rimsky-Korsakov!”

“Boa escolha.”

“Então, o que você acha de uma pessoa cuja mente não está mais nessa realidade, mas o corpo está?”

“Eu acho isso completamente normal. Todo mundo vê o mundo do jeito que quer, não, Shion-kun?”

É, minhas suspeitas estavam corretas, infelizmente ou felizmente. Disso eu não sei.

“Mas, então, Shion-kun, você quer ser ajudado? Você quer fazer música junto comigo?”

Eu não falo nada, mas meu silencio agora é o de quem consente. Meu sorriso é o de quem consente. Eu fecho meus olhos e aproveito o final desse longo prólogo da minha vida.

E, na paz banhada na loucura e grandiosidade de Beethoven, a Grande Fuga dele acaba.

O último acorde, que perdura por ¼ de compasso.

E junto com a música, a minha pequena fuga, construída em cima de plágios e falsidades, colide com o meu futuro, construído em cima de nada, baseado em nada.

Eu me levanto e me dirijo até o meu armário. De lá, eu tiro um caderninho pautado e jogo ele em cima da cama. Também tiro uma camiseta do Camel e uma calça jeans de lá.

“Shion...kun?”

“Você poderia fechar os olhos, por favor?”

É triste, mas não teria como ela sair do quarto facilmente. Iria demorar pelo menos uns 3 minutos, e isso demoraria demais, além de ser meio entediante e trabalhoso.

“Por que?”

Eu tiro minha camiseta e ela entende completamente o que eu queria dizer. Isso é constrangedor. Insanamente constrangedor. Eu quero morrer. Sinceramente.

Já em minhas roupas que há muito não vestia (quero dizer, eu só saía pra comprar comida ou instrumentos musicais, além de ir pra escola), eu falo pra ela que ela já pode abrir os olhos, e é exatamente isso que ela faz.

Quase fechando a porta do armário, eu me lembro da coisa mais importante. A essência da chiptune music. Um NES. Ou, melhor dizendo, o meu NES.

Sim, há uma expressa diferença entre o NES dos outros e o meu. E essa diferença está no método que eu usei pra usar minha guitarra e baixo por ele.

Pegando os cases da minha guitarra, uma sacola de pano pro NES e pro meu caderninho pautado, eu me direciono à porta.

“Então, vamos?”

“Onde?”

“Tocar juntos, num estúdio, onde mais?”

“Então...”

“É, eu estou indo naquele maldito ensaio.”

Um sorriso mais brilhante que o próprio céu pintou a tela do rosto dela, cujo nome não me vem à mente. Ela parecia quem estava esperando ter essa resposta, o que de fato ocorreu. As palavras dela, feliz ou infelizmente, me atingiram. Grudaram em mim. Era como se eu não conseguisse ignorar aquelas palavras em especial. Como se fosse um encantamento.

Não que isso me importasse, de qualquer forma.

Melhor falando, não que isso me incomodasse.

Na sala, eu pego o meu potinho de economias, que parecia mais com um cofre do tamanho de um metro e que era imensamente mais cheio que o da minha irmã. A essência de se sustentar como um hiki-NEET é ter bastante dinheiro e saber administrá-lo. Eu estava poupando esse dinheiro, mas acho que pegar alguns milhões não fará falta e muito menos afetará o meu futuro estilo de vida, que envolve ficar no meu quarto 24/7.

E então, eu e aquela senpai cujo nome eu ainda tenho que perguntar, saímos de minha casa.

Saímos em rumo ao estúdio.

Saímos em rumo à felicidade da vibração das ondas sonoras de vários instrumentos em harmonia, mesmo que haja polirritmia generalizada.

Saímos em direção à minha verdadeira e nociva Fuga.


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