Dissonâncias são coisas comuns quando se compõe uma peça musical sem conhecimento teórico ou prático de um instrumento. Também são coisas comuns em peças que nos querem dizer algo sem ter expressões líricas ou vocais.

Bandas de jazz fusion usam muito disso, bem como alguns compositores como Stravinsky. É essencialmente caótico e desagradável ao ouvido, diferente das consonâncias e harmonias musicais, que nos impõem o sentimento de nostalgia, fantasia, calma, grandeza. Coisas boas em geral.

As dissonâncias são a tempestade de um homem, são o lado negro da música.

Quando uma pessoa entra em dissonância consigo mesma, isso quer dizer que essa pessoa entrou em um conflito de personalidade própria, creio eu. É aquela coisa onde um conceito não está de acordo com uma atitude, ou um conceito contraria outro, ou até mesmo onde um gosto sobrepõe o outro.

São os pontos de mudança de uma personalidade, e o período em que eles ocorrem é pequeno e verdadeiramente estranhos. Determinada pessoa gostará de dois estilos musicais, punk rock e prog rock, exemplo, ao mesmo tempo. Gradualmente, ela se sentirá inclinada a escolher ouvir apenas um dos dois e terá certo receio em citar o outro, que não foi escolhido. É essencialmente desagradável.

É exatamente por isso que eu acho que meu irmão, Shion, está em um ponto de mudança em sua vida e personalidade. Até semana passada, até começar as aulas, ele tocava todo tipo de música e sempre era algo doloroso, difícil e ao mesmo tempo prazeroso de se ouvir. Depois que as aulas começaram, ele começou a tocar coisas mais e mais aventurosas, que me lembram Yes ou Anamanaguchi. Sim, eu sei, as duas bandas são completamente diferentes, exceto por um ponto: o imenso senso de aventura e imersão que se tem quando se ouve essas bandas.

Por vezes, ele tocaria coisas com tempos e compassos variados. Por vezes, ele tocaria coisas em 4/4 à 120 bpm. E, nas melhores vezes, ele tocaria coisas com tempos e compassos variados, mas com a praticidade e ênfase das coisas em 4/4 à 120 bpm.

Eu vou dizer uma coisa, antes de começar tudo: eu não sou inteligente como meu irmão, eu não sou talentosa como meu irmão. Não espere que eu toque algum instrumento ou vá bem nas provas da escola, porque eu não irei. O pouco que eu conheço de música foi o meu irmão que me mostrou.

Mas eu sei o motivo de tudo isso estar acontecendo com meu irmão mais velho. E eu sei porque isso me foi explicado.

Anteontem, enquanto eu voltava para casa, uma aluna do colégio do meu irmão me parou e começou a conversar comigo. Seus cabelos eram brancos, ela era bonitinha e tudo mais. Do tipo, “já vi melhores e já vi piores”.

“Com licença, você é a irmã do Kuraragi-kun?”

“Sim... Do que você precisa?”

“Eu faço parte do mesmo clube que o seu irmão, e...”

“Conhecendo ele, ele não vai ir em nenhum dos dias da semana ou do ano.”

“É, eu já percebi isso. Sabe, eu moro no apartamento à frente do seu e... Seu irmão tocou uma improvisação no órgão pra mim. Você quer ir lá em casa, pra conversarmos melhor?”

Eu aceitei, obviamente. Até porque, ela é uma pessoa pra qual ele tocou algo e isso é especialmente raro. Ele só faz isso para as pessoas que ele mais quer longe dele, e geralmente, essas pessoas são boas pessoas.

Meu irmão pode falar o que ele quiser, mas eu farei o que eu puder pra tirar ele de casa. Pelo amor de Deus, ele é mais imaturo que um garoto 2 anos mais novo que ele! E isso é por causa da falta de convivência com os outros.

Na casa dela, nós nos sentamos à mesa enquanto tomamos chá e comemos senbei. A mobília era normal, bem feita, com bom acabamento mas sem um design que deixasse o ambiente mais bonito. Era uma casa completamente normal, assim como a minha. E é bom saber que existem pessoas com a mesma condição financeira que a gente, porque dá um sentimento de que nós não estamos tão mal assim, financeiramente.

“Então... É...”

“Pode me chamar de Shiina. Eu não sou que nem meu irmão, fique tranquila, Hiyori-san!”

“Isso é um alívio... Shiina-chan.”

“Então, sobre o que você gostaria de conversar?”

“Seu irmão...”

“Ele anda estranho ultimamente.”

“Como assim?”

“Digamos que antigamente ele tocava Tchaikovsky ou Bach ou Beethoven. Algum desses caras que são difíceis de ouvir e tocar. Agora, ele toca algo que seria uma junção de Yes e Anamanaguchi. Algo nele mudou... Eu acho.”

Um sorriso se abre no rosto dela, cujo nome era Hiyori Harumi.

“Sabe, eu acho que ele é a pessoa que falta no nosso clube. Alguém que não seja aloprado ou paranoico, sabe? E o potencial musical dele... É sem precedentes.”

“É, eu sei disso. Mas porque você iria querer um pseudo hikikomori no seu clube?”

“O que ele não diz com as palavras, ele diz com as notas musicais.”

Ah, ela é uma pessoa que entende o meu irmão. Uma das poucas pessoas nesse mundo que entendem ele.

“Então...?”

“Eu gostaria que você me ajudasse.”

“Ajudar como?”

“Convença ele a ir no ensaio de sábado. Eu já falei pra ele sobre o ensaio, mas conhecendo o pouco que conheço dele...”

“Ele não irá.”

“Exato.”

Creio que essa seja uma oportunidade de fazer o Shion-nii sair do fundo do poço da vida e fazer alguns amigos. Ver que a sociedade não é cruel como ele pensa. Ver que o mundo não é tão brutal quanto ele pensa.

Eu acho que o que ele mais precisa agora é de alguém exatamente como a Hiyori-san: alguém que não explorará os limites dele, não o confrontará diretamente, mas sim que o ajudará a se tornar alguém mais humano aos poucos.

Falando a verdade, eu realmente quero ajudar meu irmão. Eu posso quase não falar com ele, mas ele não deixa de ser meu irmão. Creio que ele faria o mesmo por mim.

Não, esqueçam essa última sentença, meu irmão não faria nada por ninguém. Ele mal faz algo pelo próprio bem, imagine pelo bem dos outros?

“Ah, eu ajudarei você, Hiyori-san. Mas tudo tem um preço...”

“E qual é o seu?”

“Seja paciente com o Shion-nii, por favor.”

Dava pra ver que ela estava surpresa.

Shion-nii, você deveria agradecer à Deus por ter uma irmãzinha tão boa quanto eu. Ainda vou fazer você me pagar um sorvete deluxe no verão. Espere pra ver!

E assim, começou uma grande amizade e parceria com a Hiyori Harumi-san. E agora, eu tenho uma missão quase impossível.

Temerosa, me encontro na frente do quarto do meu irmão em um sábado qualquer que acabou se tornando um ponto de mudança não só na vida dele, mas como na minha também.