Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 4
Capítulo 4 – Estado de sítio




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São Paulo, Brasil, dias atuais

Cíntia ordenou que o juvenil fosse levado para uma cela, e resolveu ligar para casa.

Sarah não atendeu ao telefone, o que deixou a investigadora um tanto quanto preocupada. Por que sua irmã não a atendia? O mundo estava muito diferente de dez anos atrás, e ninguém estava seguro, em lugar nenhum. Ninguém. Por mais que acreditasse na capacidade da irmã mais nova em se cuidar, preocupava-se com ela.

Cíntia serviu-se de outro café, e achou que Vitor estava demorando muito a voltar. Que tipo de problema encontrara no necrotério?

Um oficial interrompeu o pensamento dela. Entrou correndo na sala de espera, onde ficava a garrafa de café e água mineral.

— Srta. A-Amaral... – gaguejou o oficial.

Ela esperou que ele se acalmasse.

— E-Eles estão lá fora... Muitos d-deles... Dezenas deles nas telas dos computadores – disse o policial.

Cíntia acompanhou o homem até a sala de monitoramento. Havia muitos monitores, mas alguns deles mostravam apenas uma tela fora de sintonia. Em alguns era possível ver formas humanóides, caminhando lentamente pelo estacionamento do Centro de Investigação Criminal. Dezenas deles, uma horda marchando rumo ao complexo.

Era uma cena horrenda.

— O que está havendo?

— Ninguém sabe... Estes semi-vivos estão fora de controle... O comandante não está em lugar algum do prédio...

Cíntia suspirou e conferiu a automática. O Comandante Eric Fisher estava do lado da lei, era um protetor das diferenças, jamais permitiria que um tiro fosse dado antes de pelos menos três avisos – e ela sabia que, em se tratando de vampiros, não é possível dar nem mesmo um aviso antes de receber uma mordida no pescoço.

— O que faremos? – perguntou o policial.

— Estamos sob Lei Marcial, não estamos? Pois bem, isso quer dizer que a Constituição não vale mais nada. Abaixe as portas de segurança do complexo, ligue para o Batalhão Militar e peça reforços. Atirem e depois perguntem – ordenou ela.

O policial deixou a sala às pressas. Os semi-vivos continuavam avançando. Um deles parou próximo à câmera de segurança “A” e olhou detidamente para ela. Era como se pudesse ver a investigadora. Ele sorriu, e então flutuou até a câmera.

Não havia som, e a investigadora teve de ler os lábios dele.

            Eu vou pegar vocês.

***

O elevador sacolejou lentamente quando Cíntia entrou nele e apertou o botão “B2”.

As portas se fecharam com um rangido, e ela teve medo que nunca mais se abrissem novamente. Era um pensamento bobo. O elevador deslizou para baixo por duas vezes, com um gemido seco, então parou. As portas se abriram e um corredor vazio foi tudo o que ela viu.

Ela caminhou pelo corredor por algum tempo, procurando por uma sala iluminada. Não havia nenhuma. Cíntia, então, lembrou-se que Filipe trabalhava sozinho, então deveria escolher um local onde tudo ficasse mais próximo, mais fácil de ser usado.

A última sala de autópsias do corredor Norte era o lugar perfeito. Pequena e confortável – para o legista, claro.

Ela atravessou o corredor Sul e então chegou à divisória – um cômodo que ligava os dois corredores, e que tinha uma porta para a garagem subterrânea. As grades estavam abaixadas, mas era possível ver pelo vidro pessoas andando do lado de fora. Vultos entre os carros.

Passou rapidamente por lá, e avançou pelo corredor. A última sala estava com uma luzinha acesa. Ela avançou para a maçaneta e entrou. A porta gemeu quando a investigadora passou por ela.

A luz era mínima, no fundo da sala, e Cíntia não imaginava como alguém conseguia trabalhar naquele breu todo. Não conseguia.

A investigadora sentiu um calafrio e virou-se rapidamente, apontando a arma para o que ela acreditou ser o vulto de uma pessoa. Não havia nada lá. Ela continuou andando com a arma apontada para a escuridão, tentando encontrar uma viva alma naquela sala.

Continuou em frente, passou pela mesa de autópsias – vazia – deu a volta para ver o espaço que alguns armários escondiam.

Não havia ninguém lá também.

Aquele era um lugar morto.

***

Lugar não identificado, São Paulo, dias atuais

A jovem era pálida como gelo, e tinha os olhos vermelhos.

Ela ergueu a cabeça lentamente, e tentou se lembrar de onde estava, e do que acontecera para chegar até lá – mas foi um esforço inútil. Era um cômodo amplo, com o teto baixo e um cheiro de mofo quase insuportável. Com sua audição superdesenvolvida, ela ouvia um gotejar incessante perto de onde estava. Alguém precisava consertar a torneira, pensou, tentando se levantar.

Estava fraca, e o máximo que conseguiu foi ficar de joelhos – cada esforço muscular parecia arrancar-lhe o resto das forças, que gastara sem saber como, e ainda não tinha ideia de como recuperar.

Seus longos cabelos vermelhos dançavam cada vez que ela mexia a cabeça, e os braços magros pareciam quebrar a cada movimento. Estava morrendo – novamente.

Do meio da penumbra surgiu um rapaz. Ele caminhou lentamente até a garota e sorriu. Tinha uma caixa debaixo do braço – uma caixa de sapatos. O rapaz ajoelhou-se na frente da garota e colocou a caixa no chão.

Ela olhou para ele, e fez uma cara de ponto de interrogação. Ele empurrou a caixa na direção dela.

— O que é isso? – perguntou ela, retirando a tampa da caixa.

Ele não disse nada, apenas esperou.

Dentro da caixa um gato parecia dormir, mas estava morto. Ela sabia disso porque era capaz de ver com muita precisão as linhas de Ley— e elas corriam somente para fora do gato, em uma velocidade impressionante. Se estivesse vivo as linhas correriam tanto na direção dele como para longe.

O cheiro não era dos melhores, e o gosto também não seria. Mas ela estava com muita fome, e o sangue não serviria para nada quando esfriasse completamente, e as linhas deixassem de correr.

Ela pegou a correntinha que o gato tinha o pescoço. Fofura. Era uma gata. Uma gata cuja dona provavelmente procurava, desesperada. Uma gata com uma família que a amava – o que de nada adiantou para ela.

A garota agarrou o animal e levou-o à boca, sugando do pescoço. A gata estava com os olhos abertos, como quem em êxtase, e sua cabeça se mexia para os lados enquanto a garota se alimentava. Estava com tanta fome que estraçalhou o pescoço do animal, e a cabeça rolou pelo chão, para longe deles.

O rapaz afastou-se momentaneamente, e quando voltou carregava uma toalha suja nas mãos.

— Limpe-se com isso quando terminar – disse ele.

Ela terminou, e limpou a boca na toalha. A marca de seus lábios ficou impressa, um beijo vermelho no tecido encardido.

— Por que está me ajudando? – perguntou ela, sentando-se.

Apoiar as costas na parede doía um pouco, mas era preciso, porque doía ainda mais para ela tentar manter o peso do próprio corpo sem apoio.

— Porque somos amigos – disse ele, sentando-se em um caixote.

A garota esboçou um sorriso. Não tinha amigos, ele estava inventando aquilo.

— É tudo em vão, logo morrerei. Estou fraca, e não posso viver de gatos.

— Eu, eu tenho um plano...

— O quê, vai matar alguém da próxima vez e arrastar o corpo até aqui? – zombou ela, fechando os olhos.

O rapaz pareceu desconcertado. Cerrou os punhos e torceu os lábios.

Ele não parecia ser muito mais velho do que ela. Era magro, tinha os cabelos loiros cortados bem curtos, e um rosto liso. Seus dentes eram brancos e pequenos, e o queixo um pouco projetado para frente.

— Você não sabe como está lá fora... Um caos. Parece que os semi-vivos decidiram se rebelar esta noite. Eu pensei em tentar roubar alguma coisa numa loja de conveniências, ou o hospital, mas é arriscado – falou ele. – Eu pensei em...

— Pensou no quê?

— Em trazer alguém até aqui – terminou ele.

Ela sorriu e reprovou a ideia dele com os olhos. Mostrou um dos braços magros e flácidos.

— Eu não consigo lutar com alguém neste estado...

— E se esse alguém também não puder lutar?

Ele sorriu, talvez tentando convencê-la a aceitar aquela ajuda. Ela nem mesmo sabia o nome dele – se é que ele tinha um.

— Eu... Eu não sei... O que você quer de mim afinal?

— Só quero ajudá-la – disse ele. – Meu nome é Cachorro Louco.

A garota riu.

— Isso não é um nome.

— Mas é como eu me chamo. Encontrei você caída em um beco, lá em cima... Eu jamais faria mal...

— Eu sei – interrompeu-o ela. – Já li sua mente. Você não quer meu mal. Eu me chamo Samanta.

— Eu voltarei logo, Samanta. Prometo.

Ele desapareceu na escuridão, e Samanta fechou novamente os olhos. Se ainda conseguisse sonhar, certamente sonharia com Cachorro Louco naquela noite.

***

O abrigo era protegido por um enorme crucifixo de madeira. Até onde se sabe vampiros não podem nem mesmo atentar contra um crucifixo.

Cachorro Louco entrou no abrigo e observou. À noite todos os moradores de rua iam para lugares como aquele – era isso ou virar jantar de sanguessuga. Três homens jogavam cartas, uma mulher dormia em um canto e no outro um homem movimentava sua cadeira de rodas. Deveria ter uns cinquenta anos, e vagava pelas ruas durante o dia, pedindo esmolas. À noite ele ficava andando de um lado para o outro do abrigo. Não tinha amigos porque todos diziam que era meio louco. E tinha as duas pernas amputadas.

Cachorro Louco aproximou-se sorrateiramente. Sabia o que ofertar para conseguir o que desejava.

O homem parou com a cadeira na direção de uma das janelas de vidro, e viu quando o rapaz se aproximou. Seus reflexos pareciam formar uma única imagem encoberta pela noite.

— Entediado? – sussurrou Cachorro.

O velho virou-se para o jovem, e pensou em xingá-lo e mandar que fosse embora. Nunca haviam se falado antes, e não havia motivos para começarem agora.

— Isso não é da sua conta... O que você é, um dos malditos sanguessugas?

 O garoto sorriu.

— Pode ver pelo meu reflexo que não sou.

— Então o que quer?

— Vi o senhor aí, sozinho, parecendo aborrecido, e pensei que talvez pudesse oferecer um entretenimento...

O velho torceu as sobrancelhas, e então, com uma indignação incontrolável, avançou com a cadeira sobre Cachorro, que pulou para o lado.

— Eu não sou um afetado, seu doente! Procure pelos seus!

Os homens que jogavam cartas olharam para os dois rapidamente e riram, voltando ao vício logo depois.

— Não é nada disso seu velho louco – disse Cachorro contidamente. – O entretenimento é uma amiga minha...

O velho pareceu demonstrar interesse, mas ainda estava desconfiado. Olhou para Cachorro Louco durante um tempo, como se tentasse descobrir as verdadeiras intenções dele.

— Sua amiga, é? E onde está ela?

— Ela mora aqui perto, é uma de nós – disse o jovem, piscando com o olho direito.

O velho animou-se mais. Esfregou as mãos e sorriu com a boca mole, sem metade dos dentes.

— Por que não a traz aqui, filho? – perguntou o velho.

— Ela não pode vir aqui, porque despertaria o interesse de outros. E vai custar uma grana.

O velho torceu o nariz.

— Quanto exatamente?

— Cem – disse Cachorro.

— Eu não tenho tudo isso.

— Quanto tem?

— Vinte.

— É muito pouco – fingiu negociar.

O velho olhou para Cachorro Louco com indignação.

— Cinquenta é minha última oferta.

Cachorro louco assentiu, então os homens que jogavam cartas gritaram, pois uma rodada terminara e  Marcão ganhara novamente. Começaram outra.

— Não pode contar para ninguém, certo? – disse o garoto.

O velho olhou para Cachorro Louco com certo ar de desconfiança.

Cachorro olhou rapidamente para os homens que jogavam cartas. Marcão era alto e musculoso, e trabalhava descarregando caminhões durante o dia. Com certeza era uma refeição melhor, mas Samanta estava muito fraca. Voltariam ali quando ela recuperasse suas forças e a plenitude dos poderes.

— Entendo... Onde ela está?

— Ela mora em um abrigo aqui perto. Posso levá-lo até lá – disse Cachorro, e, abaixando-se ao nível dos ouvidos do velho: – Ela faz serviço completo.

O velho lambeu os beiços. Mal podia esperar. Há muito tempo não transava com ninguém, e não se importaria se fosse uma mulher feia, desde que ela o fizesse ver estrelas, como na juventude.

— O que estamos esperando? Vamos, filho, mostre-me o caminho – pediu ele, enfiando a mão dentro do bolso do casaco que usava.Ele retirou um crucifixo de prata e beijou-o. Depois pendurou o artefato no pescoço.

Cachorro Louco pensou que, talvez, não fosse tão fácil quanto imaginara.


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