Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 5
Capítulo 5 - Dezenove dias




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Quando Simon mordeu o bife, um filete de sangue escorreu por seu queixo.

Lorde August olhou para Florence, que abaixou os olhos para o prato vazio que mantinha diante de si. Ele pedira um bife bem passado, como era do gosto de Simon, mas Florence não nascera com o dom para a cozinha.

Ela aparentemente não tinha dom para nada.

Lorde August observou enquanto Simon cutucava o bife, como quem ainda tentava adivinhar do que se tratava.

O jovem olhou para o anfitrião com curiosidade.

— Perdoe a Florence, ela ainda precisa melhorar suas habilidades culinárias – disse o vampiro. – Você dizia que seus pais...

— Morreram muito cedo, de gripe meu lorde.

August pareceu condescendente com a dor de Simon. Aquele jovem despertava o melhor que havia em August, lembrava a si mesmo na juventude, dias a muito esquecidos, que é o que acontece quando se vive por tanto tempo.

— E você não conseguiu terminar os estudos primários?

— Não, meu lorde. Sempre ouvia meu pai dizer que desejava que eu fosse advogado, mas, por ironia do destino, não terminei nem os estudos mais básicos.

Lorde August sorriu. Havia algo nele, uma propriedade quase magnética, que atraía a atenção do jovem Simon. Nem mesmo a fome era suficiente para fazê-lo deixar de prestar atenção no anfitrião.

— Florence, querida, por que não compra alguma carne assada no vendedor da esquina? E traga uma garrafa de licor de cassis quando voltar.

— Sim, meu lorde. Voltarei em breve.

Florence saiu, e Simon pareceu aliviado por não ter que comer carne crua.

— Estou dando trabalho – disse o jovem. Acho que eu tenho muita sorte por encontrá-los.

Lorde August limitou-se a sorrir. Levantou-se e caminhou até a abarrotada estante de livros, acumulados em sua longa estadia neste planeta. Puxou um livro de capa cinza.

— “Sorte é o que sucede quando a preparação e a oportunidade se encontram e se fundem.” Voltaire.

Simon pareceu encantado com a citação. Seus olhos se mantinham ligados aos de August, como que por fios invisíveis.

— Você pode ter tudo o que quiser, Simon.

— Como, meu lorde?

— Basta dizer sim.

Simon exibiu uma expressão confusa. Os olhos do vampiro brilharam.

— Sim a que pergunta, meu lorde?

Lorde August fechou o pesado livro com um estrondo.

— As perguntas de nada importam, meu caro Simon. Basta dizer sim, e as portas da vida finalmente se abrirão para você.

O vampiro sorriu enquanto andava na direção do jovem e assustado Simon Von Bauer.

***

Dezenove noites.

O Gigante dos Mares deixaria a Flórida no dia 6 de dezembro e chegaria ao Brasil dia 25. Durante esse tempo Betegelse dormiria em um caixão de madeira especialmente encomendado por Kassius, onde se lia FRÁGIL. Com sua persuasão, ele convencera o Capitão, um robusto homem de 52 anos, mas que aparentava bem menos, que transportava peças de cerâmica muito caras. O Capitão imediatamente oferecera proteção extra à carga. Kassius matara um comerciante de peças antigas chamado Abdul Kaluq e roubara sua identidade. Desde então projetava a imagem de um senhor de 65 anos, o que pelo menos garantia um pouco de respeito.

Agora estava com a passagem e a taxa de transporte do volume nas mãos, pouco antes de embarcar, olhando detidamente para o Porto de Tampa. Havia descido do trem que os levara até lá há pouco mais de uma hora, quando os carregadores entraram com Betegelse no navio e ele ficou um pouco mais, observando.

Alguma coisa parecia sussurrar que era a última vez que ele via aquela paisagem, e isso o entristecia um pouco – pelo que se lembrava de sentimentos, apesar de saber que talvez, não fosse isso. Todos diziam que vampiros não tinham sentimentos, e não estavam completamente errados (embora também não estivessem completamente certos). Se era capaz de sentir ódio, raiva e dor, porque não seria capaz de entristecer? Parecia mas correto dizer que vampiros são capazes de controlar todos os sentimentos, em por cento do tempo, e escolher o que sentir e o que não sentir.

Talvez fosse apenas o vento, a luz do sol – que ele tanto desejava sentir novamente –, a noite que chegava, ou uma mistura de tudo isso. Talvez não fosse nada. Mas, fosse o que fosse, era um presságio de que as coisas mudariam em breve.

Quando entrou no navio uma Comissária foi atendê-lo.

— Senhor Kaluq, espero que esteja sendo bem recebido em nossas acomodações – disse a moça.

Kassius reparou que ela tinha um coque perfeito. A moça mantinha um sorriso plastificado no rosto, e ele leu os pensamentos dela.

Como eu gostaria de estar completamente nua com meu namorado agora, e não aqui, puxando o saco desses ricos esnobes que nem mesmo ouvem o que eu digo. Ah, Tony, mal posso esperar para transarmos hoje à noite...

— Senhor Kaluq? O senhor está bem?

Kassius piscou – para manter as aparências – e só então voltou de seu transe temporário.

— Desculpe-me, o que a senhorita disse?

— Disse que, se o senhor precisar de qualquer coisa, é só pedir.

Kassius sorriu. Claro, claro, havia poucas coisas que o dinheiro humano não conseguia comprar. De sexo a diamantes, tudo tinha seu preço.

— Obrigado. Eu só preciso do roteiro da viagem, por enquanto.

— Pedirei que alguém leve em sua cabine.

A moça do coque sorriu mais uma vez e então foi embora, ainda pensando na transa que teria com o namorado.

Kassius seguiu para a suíte de luxo que reservara para a viagem.

***

Deitado na enorme cama, Kassius olhou o mapa que acompanhava o roteiro de viagem.

Deixaram a Flórida e a primeira parada era nas Ilhas Virgens Americanas. Depois, Bridgetown, capital de Barbados. Após um dia de descanso, parariam no Porto de Espanha, em Trinidad e Tobago. Depois, seguiriam diretamente para o Brasil, fazendo paradas em Fortaleza, Ilhéus e Rio de Janeiro.

Kassius planejava deixar o navio antes de aportar. Pensara em tudo. Uma lancha os pegaria quando se aproximassem de Fortaleza, para garantir que nada de ruim acontecesse a ele e sua preciosa carga.

O restante das malas estava empilhado próximo à janela. Kassius deixou o mapa sobre a cama e caminhou até a pilha de bagagem. Pegou uma pequena caixa de metal, muito parecida com um kit de maquiagem, e segurou o cadeado. Um segredo que só ele sabia.

— Vejamos se está tudo bem com você – sussurrou, abrindo a caixa.

De dentro da escuridão os olhos de Isaac fitaram a face de Kassius.

***

Estava muito escuro quando Cíntia voltou pelo corredor Norte.

Não encontrara Vítor, o que a deixara extremamente frustrada. Seguia com passos rápidos, e quando alcançou o corredor Sul, percebeu que a grade que dava para a garagem estava aberta.

Quando eu fui para a sala de autópsias, estas grades estavam fechadas.

Instintivamente apontou a arma para o vão da porta, naquele momento completamente tomado pela escuridão da noite.

Longe, luzes vermelhas piscavam.

Deus! O que está acontecendo? Estas grades não podem permanecer abertas, apesar de que nenhum deles entrará sem convite... A não ser que seja obra de alguém que já está aqui dentro, ou que esteve aqui...

Antes que pudesse pensar em alguma coisa um semi-vivo saltou da escuridão, parando no vão da porta. Era o mesmo sujeito que a ameaçara através da câmera, momentos antes.

Cíntia, apesar do susto, manteve a arma apontada.

— AFASTE-SE DA PORTA! – gritou ela.

O semi-vivo sorriu, mostrando os caninos pontiagudos. Perder duas costelas era um preço baixo a se pagar pela imortalidade.

Ele parecia alguém que tinha acabado de sair de um atropelamento – onde ele era a vítima. Estava sem camisa, e usava calças jeans rasgadas nos joelhos. A pele era azulada, e os cabelos loiros como raios de sol. Manchas de sangue salpicavam seu rosto feito uma maquiagem diabólica.

— Sabe, eu já matei mais policiais hoje do que durante toda a minha vida – disse, tranquilamente.

Cíntia sabia que era uma provocação. Ele não poderia entrar, por isso queria fazê-la sair a qualquer custo.

— Você está preso, sanguessuga. Tem o direito de permanecer em silêncio...

A criatura riu debochadamente.

— Para me prender, terá que vir até aqui, policial – disse ele, estendendo as mãos até o limite do vão da porta. – Mas eu acho que você não tem coragem para isso...

Cíntia manteve a arma apontada para a cabeça da criatura.

Não havia ninguém ali. Por que não puxava o gatilho? Ninguém saberia. Ninguém precisava saber. Mais do que isso, ninguém ligaria. Estavam em estado de Lei Marcial, poderia dizer que fora em legítima defesa. Estavam sozinhos ali. Para isso, bastava um movimento, e bum! Problema resolvido.

Mas havia algo dentro de si que dizia que era preciso fazer o que era certo, independente da situação.

***

Carlos levara o juvenil até uma das salas especiais do segundo andar, onde ele deveria permanecer isolado. Há muito tempo ninguém era preso naquele pavilhão, de forma que o jovem vampiro ficaria sozinho em sua cela.

Em silêncio, seguiram até o local. O juvenil entrou na cela e então ficou parado a meio metro da grade.

Edgar Santos lera os pensamentos do policial, e descobrira algo, no mínimo interessante.

Quando Carlos trancou a cela e afastou-se para sair, Edgar chamou-o:

— Policial Carlos.

O policial parou próximo à porta, e permaneceu de costas para a cela.

Tinha trinta anos, seis deles dedicados à corporação. Carlos era conhecido por seu temperamento introspectivo e dedicação ímpar ao trabalho. Estava sempre com o uniforme perfeitamente passado e alinhado – morava com a mãe.

— Saciando sua curiosidade: sim, meu pinto é capaz de ficar duro.

O policial manteve-se na mesma posição, embora tenha apertado a arma com mais força.

— E sim, tem uma chance de você vê-lo, até usá-lo, se quiser. Sei que sempre desejou ficar com um semi-vivo. Eu já fazia programas antes de me tornar um vampiro, e não vejo mal nenhum em continuar a fazer depois disso.

Carlos virou-se lentamente, e viu o convidativo corpo nu de Edgar.

***

Antes que pudesse tomar sua decisão escutou passos vindos do corredor, ao seu encontro.

Por dois instantes torceu para que fosse Vitor, embora soubesse que isso era improvável. Vitor ainda estava em alguma das salas do corredor Norte, e os passos vinham do Sul.

A silhueta de um indivíduo aproximava-se lentamente.

Ela apontou a arma, e esperou.

O rosto de Edgar Santos surgiu da escuridão, e de sua boca pingava sangue fresco. A policial não escondeu sua expressão de terror ao perceber o que acontecera.

— O que você fez? Onde está o Carlos... Você o matou? – perguntou Cíntia, tremendo levemente a arma. – E onde está seu colar?

O juvenil sorriu. Por um instante ela esqueceu do vampiro no vão da porta.

— Eu não o matei, policial. Fiz algo melhor, o converti – disse Edgar, sorrindo.

Cíntia negou com a cabeça.

— Isso não pode estar acontecendo! Deus!

Então Cíntia se lembrou do outro vampiro, que esperava pacientemente. Os olhos de Edgar e os dele se encontraram.

— Irmão... Vejo que você está em uma posição privilegiada... Por que não me convida para entrar? Temos muito o que conversar.

A policial olhou para as duas criaturas, uma de cada vez, então foi agarrada por alguém que se aproximara sorrateiramente pelo corredor Norte.


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