Facilis Densensus Averno escrita por Heosphoros


Capítulo 6
O Baralho em Vermelho


Notas iniciais do capítulo

"Livrei-me da tempestade,
Da cerração, das escolhas,
Mas acabei naufragando
No recife dos teus olhos"

Arthur de Salles



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No dia seguinte, Clary procurou não encher a mente de preocupações. Jace pareceu pensar o mesmo, pois, depois de ignorá-la durante a noite inteira, a convidou para comprar um traje decente para que vestisse no casamento da princesa - que seria na semana seguinte.

Os dois foram até o centro de Londres, tão silenciosos que alguém poderia pensar que estavam mortos (se não caminhassem). A própria Clary estava se esquecendo de respirar, e se pegava inspirando uma grande quantidade de ar depois de um bom tempo prendendo-o.

Era estranho ficar perto de Jace, por mais que não aguentasse ficar longe dele. Ás vezes o encarava, observando as linhas rígidas de seu rosto e os olhos dourados suaves. Então olhava para os lábios e encarava o chão logo depois... Não podia pensar nisso. Não depois de ver a recusa do irmão mais velho em relação aos seus sentimentos. Se foi daquele jeito com Sebastian, imagine com Valentim!

De qualquer forma, nada mais aconteceria... Agora ela tinha certeza. Nem se pedisse para Jace fugir com ela, duvidava que ele iria aceitar. Talvez dissesse que fugir era um ato de deslealdade contra Valentim, embora ela não tenha interesse em ser leal ao homem que nunca demonstrou um mínimo ato de amor sequer.

– As ruas parecem mais calmas hoje - Jace disse, de repente cortando o silêncio entre os dois - estranho, não?

Ela fixou o olhar nele, tentando entender o que havia dito, pois estava muito perdida na própria mente para entender de prontidão. Depois olhou para frente, e viu que poucas pessoas andavam pelas ruas de uma Londres enevoada e fria. Algumas carruagens passavam aqui e ali, mas poucas... Em comparação aos outros dias em que Clary visitou o lugar.

– Sim - ela disse, por fim - é estranho. Mas acho que a razão é, provavelmente, o tempo nublado. As pessoas não gostam de caminhar onde não conseguem ver o chão.

Jace olhou para os próprios pés, cujos sapatos pretos estalavam contra os paralelepípedos da rua cinzenta. Parecia querer comprovar sobre o que ela disse, ou apenas refletir sobre isso. Ela não sabia e decidiu apenas prosseguir com o caminho até a Boutique de Madame Dorothea, onde os dois comprariam a bendita roupa do casamento.

– Estamos fazendo isso - Jace falou.

Clary franziu o cenho.

– Isso é bem óbvio! - exclamou. E era, na verdade. Os dois estavam caminhando na rua envolta por névoa que maioria dos londrinos procurou evitar naquele dia... A frase de Jace foi até desnecessária.

Mas Clary se surpreendeu ao vê-lo balançar a cabeça, negando.

– Não estou falando da rua, ou de Londres, ou de um lugar palpável - disse - estou falando sobre o que eu sinto por você... É como andar no vazio, sem ver onde se está pisando.

O que eu sinto por você...

O coração dela gelou. Por um momento as batidas pararam, para depois voltarem mais rápidas que o coração de um rato.

– Isso é errado - foi só o que a voz permitiu que ela falasse.

Ela sentiu o olhar de Jace repousar em seu rosto, mas não tinha coragem de retribuir. Não conseguia encarar aqueles olhos feitos de âmbar tristes ou dolorosos, jamais conseguiria.

– Sim, totalmente errado – ele fez uma pausa tão longa que Clary achou que tornariam a caminhar no silêncio, até falar um pouco mais alto – Merda! Quem estou querendo enganar? Eu amo você. E papai jamais permitiria qualquer coisa. Acho que é bem provável que ele mande nós dois ao exílio por isso... Mas não precisa ser assim.

– Claro que precisa - disse Clary, cada palavra a torturando por dentro - fomos criados juntos. Ninguém entenderia, pois sempre verão a nós dois como irmãos e nada mais, além disso.

– Mas se fosse diferente...

– Não é diferente – ela disse, finalmente olhando para ele – é, Jace?

Ele retribuiu o olhar, parecendo que alguém enfiava uma faca em seu peito. Clary imaginou se ele choraria, ou se apenas uma lágrima escorreria de seus olhos como aconteceu antes dele beijá-la.

– Não – falou – não é diferente. Mas eu vou fazer questão de que seja. Não vamos viver infelizes, Clary, eu prometo.

Ela olhou para frente novamente, enquanto os dois caminhavam na névoa. Imaginou se naquele momento deveria se sentir feliz. Era bem milagroso encontrar alguém que você amasse e te amasse da mesma forma, era raro alguém se declarar para você e você já querer que isso aconteça. Mas, no caso dela, as coisas melhoram de um lado e pioram de outro.

Em um lado da balança, ela não precisa mais temer que Jace a odeie (coisa que ela não suportaria se acontecesse). Mas, de outro lado, ela nem gostaria de imaginar o que Sebastian faria se os dois iniciassem um caso. Provavelmente faria algo com Jace também, tendo uma arma perfeita para que nenhum dos dois fale ou recuse os termos dele.

E Jace sofreria como ela estava sofrendo agora. Clary não tinha certeza se iria aguentar algo assim.

– Clary – ele disse ao seu lado.

– Sim? – perguntou, olhando para ele.

Jace, porém, olhava para frente. Seus cabelos dourados pareciam mais opacos na neblina, e seu rosto mais sombrio. Ele encarava um ponto invisível à sua frente como um falcão pronto para alçar voo. Ou, melhor dizendo, como um leão observando uma caça.

Então, quando ele abriu a boca para falar, seus olhos suavizaram.

– Lembra quando eu disse que viveríamos para sempre?

Ela engoliu o choro.

– Claro que sim – respondeu.

– Estava falando sério – então olhou para ela, os olhos parecendo duas pequenas chamas amarelas, brilhantes e vivas – nós seremos eternos.

– Está falando como o papai nas aulas de religião – ela brincou.

Jace não riu.

– Mas é verdade. Porque, o que eu sinto por você é algo impossível de morrer.

Ela sorriu, e por um segundo pôde desfrutar da felicidade que deveria sentir.

– Eu sinto o mesmo, Jace – falou num tom baixo, mas ele ouviu. Ela sabia que ouviu.

Ele virou o rosto para uma pequena construção com grandes janelas de vidro que iam até o chão, cuja porta era a única coisa de madeira além do teto e das colunas que sustentavam o vidro. O telhado era de tijolo, e de um laranja avermelhando como tal.

– É aqui – Jace falou – a Boutique de Madame Dorothea. Alguma francesa que veio tentar a sorte como costureira em Londres – deu de ombros – vamos entrar.

Por dentro, a loja era arejada e cheia das peças de roupa mais lindas que Clary já vira. Manequins vestiam vestidos de seda pura e uma mulher costurava atrás de um balcão de madeira, os cabelos grisalhos presos em um coque trançado.

Ela ergueu os olhos para eles, e sorriu.

– Estamos fechados, desculpe.

Jace deu um passo à frente.

– Vim comprar algo para usar no noivado da Princesa Tessa. É muito importante, e só tivemos permissão do nosso pai para sair hoje.

– E não vejo porque ele esteja errado... Londres está perigosa durante esses dias. Mortes, muitas mortes. Pessoas são encontradas em cada esquina, adormecidas em poças de sangue. Os olhos eternamente fechados. Não deveriam sair por aí.

A costureira observou os dois, que estavam boquiabertos e assustados, e sorriu docilmente.

– Fique a vontade para procurar o que lhe servir melhor, meu jovem, estará seguro dentro desta loja.

Jace e Clary se entreolharam rapidamente, mas ele deu de ombros logo depois... Sempre corajoso. Ela observou enquanto o irmão adotivo caminhava com a graça de um leão até mesmo para escolher uma roupa em uma pequena boutique inglesa. Isso a admirava!

Clary se encostou ao balcão, sem tirar os olhos dele até que desaparecesse em um mundo de manequins e trajes a rigor.

– Você parece preocupada, minha querida – Dorothea disse atrás dela, num tom baixo - e não acho que seja por conta dos assassinatos, se me permite dizer.

Clary a encarou.

– A vida não tem andado muito pacífica – ela respondeu. Era totalmente idiota ser tão sincera com a sua vida com uma mulher que acabara de conhecer, mas havia algo nela. Uma tranquilidade e uma sabedoria que parecia compartilhar com quem conversava. E também havia mais uma coisa...

Jocelyn costumava visitar a boutique, era amiga da dona.

Qualquer um que ganhasse a amizade da mãe, tinha a de Clary.

– A vida quase nunca é pacífica – Dorothea disse, pondo a mão no ombro de Clary – é cheia das desgraças mais estranhas e miseráveis que se pode imaginar. Mas ela também é maravilhosa! É só saber como e quando esperar pelos momentos certos.

– Momentos certos... – Clary estremeceu ao pensar em Sebastian – deve estar falando de momentos felizes, não é? Não sei o que é isso faz um bom tempo. E acho que a vida gosta de abrir exceção para pessoas especiais!

Dorothea suspirou, encarando-a com olhos castanhos lamentosos, então seu tom se tornou mais baixo ao falar:

– Eu posso ajudar se quiser.

Clary franziu o cenho.

– Como?

Dorothea fez um gesto para que ela esperasse e se abaixou. Clary a ouviu revirando alguns objetos embaixo do balcão, mas não conseguiu ver o que procurava. Não fazia ideia do que a senhora queria.

Então ela se levantou, e pôs algo em cima do balcão. Um bolo de cartas de baralho vermelhas.

– É meu antigo Tarot francês – ela explicou – gostaria de jogar para você.

Clary hesitou, então deu de ombros.

– Não acredito nessas coisas – disse.

Dorothea sorriu.

– Então encare apenas como alguns conselhos de uma velha costureira. Tudo bem?

Ela pensou por um tempo.

– Tudo bem.

Dorothea embaralhou as cartas e as colocou uma do lado da outra sobre o balcão de madeira.

– Bom, basta escolher quatro. Uma de cada vez, e farei a leitura.

Clary não sabia muito bem como funcionava essa coisa de “escolher a carta certa”, então pegou qualquer uma que estivesse ali por cima. Virou ela sobre o balcão e observou a imagem tingida em cores vermelhas e douradas.

Dorothea olhou a carta.

– Os Amantes – murmurou – vamos ver o que ela pode significar com as outras cartas que virão, escolha outra.

Clary virou mais uma. Esta brilhava em cores opacas; azul, amarela, marrom... Havia uma roda, com desenhos esquisitos em torno dela. Mas como estava de cabeça para baixo, Clary não conseguiu distingui-los.

Dorothea pôs a mão na boca.

– A Roda da Fortuna – murmurou – invertida. Isso não é muito bom querida, tire as outras duas.

Tirando as outras duas de uma vez só, Clary mal pôde distinguir suas cores e desenhos. Apenas viu o olhar assustado de Dorothea ao olhar as cartas e a forma como segurou a mão de Clary com tanta força que chegava a doer.

– A Sacerdotisa – murmurou, então pôs a mão na última carta – e...

– O que? – Clary perguntou – que carta é essa?

Dorothea encarou os olhos dela, triste. Parecia um daqueles olhares que você sabe que são os últimos que a pessoa dará a você... O Último Olhar... Até que seria um ótimo nome para uma pintura.

– A Morte – Dorothea disse.

– O que significa? – Clary ficou desesperada – vou morrer?

– Não sei – ela admitiu – pelo conjunto das cartas, sua sorte é amaldiçoada. Vejo deslumbres de seu futuro nesses pedaços de papel. Há Luz e Trevas. Muitas trevas. Sangue em suas mãos. E um amor que queima o coração como chama queima madeira e carne. Você vai se apaixonar pela pessoa errada, minha querida.

Clary deu um sorriso amargo.

– Desculpa, mas isso já aconteceu.

Foi atrás de Jace, perplexa com as besteiras que a velha havia lhe contado. Não voltou a falar com Dorothea enquanto Jace pagava a roupa e encomendava para que levassem até a mansão Morgestern. Muito embora, Clarissa sentisse o olhar da mulher sobre ela.

Quando saiu, se sentiu aliviada... Mas por pouco tempo.

. . .

Dorothea observou incrédula quando a garota passou por sua porta. Jamais iria desejar um destino como o dela para ninguém, muito menos a filha de uma amiga sua, mas há coisas que não podemos desejar ou lutar.

E quando Clarissa Morgestern saiu de sua loja, Dorothea respondeu a sua última sentença. Disse, como se a jovem menina ainda estivesse ali para ouvir, e o vento gélido que passou pela janela pareceu lhe responder de forma perversa e seca.

– Não, minha jovem, ainda não aconteceu – foi o que disse – não mesmo.

E o que o vento parecia desesperadamente frio.


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Notas finais do capítulo

AMOOOORES! Mil perdões por ter demorado a postar. Os estudos estão uma coisa frenética!!!! Espero que tenham gostado do pouco de Clace do capítulo e da leitura da Dorothea