Facilis Densensus Averno escrita por Heosphoros


Capítulo 23
Epílogo


Notas iniciais do capítulo

"Nossa festa acabou. Nossos atores,
que eu avisei não serem mais que espíritos,
derreteram no ar, no puro ar:
e como a trama vã desta visão,
as torres e os palácios encantados,
templos solenes, como o globo inteiro,
sim, tudo o que ele envolve, vão sumir
sem deixar rastros. Nós somos a matéria
de que se fazem os sonhos, e esta vida
encerra-se num sono".

William Shakespeare.



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A chuva caía como gotas prateadas de gelo, caindo sobre a pele como um remédio para a dor que, com toda a sinceridade, não ajudava em nada. O céu cinzento e também prateado, como uma lâmina, parecia melancólico e choroso. Melancólico e choroso como Jace sentia-se, ali, de pé na grama verde opaca, nos fundos do antigo casarão Morgestern.

Dizem que é bom honrar seus mortos e lembrar deles no dia 02 de Novembro. Jace Herondale, como bom supersticioso, ia, todo santo ano, para a casa abandonada de sua infância e juventude para honrar seus mortos. Mortos que arrancavam seu sono, traziam pesadelos...

Mesmo agora, ele sentia aquele desejo comum e familiar de voltar ao passado. Refazer sua história. Abandonar aquelas memórias que todo dia e toda noite o arrastavam de volta para a casa dos Morgestern, que o tiravam de sua nova casa, de sua esposa e de sua vida teoricamente pacífica.

Bem ali, olhando para a grama verde, brilhante e morta, apenas os olhos de sua irmã vinham a sua mente. Olhos decepcionados, desesperados e jovens demais para tornarem-se opacos e sem brilho. E ele escutava o vento, se arrastando como um gemido do céu choroso e pelas lágrimas de chuva, e jurava estar ouvindo a risada dela.

Clarissa. Um nome que sempre entoava em ecos no vazio de sua mente, como uma velha canção de ninar, aquela mesma ladainha de sempre, que se repetia como uma oração ou maldição. Clary, Clary, Clary.

Abaixo dele, ela jazia. Não ela exatamente. E sim, duas lápides cinzentas que choravam com o céu. Rochas que tornavam-se prateadas por conta da água que caía sobre elas. Túmulos que guardavam honra e memórias, como canções.

Sim, ele mudaria tudo. Por qualquer preço, tiraria sua família das garras gélidas da morte. Tiraria os Morgestern - legado tão grande para túmulos tão pequenos e simplórios - do esquecimento e da eternidade vazia. Traria o único laço familiar que tivera de volta.

Mas, novamente, era só mais um órfão chorando sobre túmulos.

Mea culpa. Mea maxima culpa.

Sentiu uma pontada nos dedos e percebeu, com um humor gelado e irônico, que havia apertado a rosa vermelha que segurava com demasiada força. A flor era rubra como os cabelos da mãe que ele jamais conheceu sem aquela máscara de melancolia, cuja filha, com cachos igualmente vermelhos, herdou a tristeza e a arte.

Mas ela ria. Em tempos remotos, memórias antigas...

Soltou a rosa, como alguém solta uma espada pesada como chumbo. Olhou para o túmulo da irmã caçula - Clary, sua canção repetitiva - e lembrou quando seus lábios ainda tinham vida para chocarem-se contra os dele, ou para só cantar para ele, falar com ele, sorrir para ele...

Havia plantas enroscando-se pela lápide de Clarissa, da cor viva e brilhante dos olhos dela, como se a mesma ainda o observasse e tomasse conta dele como sempre fizera. Mas Jace sabia, pois ele mesmo fez as lápides para os traidores que nem sequer mereciam ser honrados, o que estava riscado sob a pedra.

O traidor era ele, e sabia. E nunca teria perdão.

Na lápide cinza e verde da direita, estava escrito em perfeição:

Clarissa Adele Fairchild Morgestern. 1860 - 1877. Filha de Valentim e Jocelyn Morgestern.

Depois, uma citação:

"Somos feitos da matéria de que são moldados os sonhos. E esta vida encerra-se num sono". W. Shakespeare.

Uma das citações que ela gostava. Foi difícil pensar em algo para escrever em sua lápide. Mas, certamente, não era mais difícil e doloroso do que referir-se a ela no passado e nunca ter tido a chance de perguntar porque ela gostava tanto dessas palavras.

Antes de virar o rosto para a esquerda, Jace sabia o que o esperava.

Sabia que entraria numa grande discussão se colocasse a frase errada sobre aquele túmulo. Uma discussão que se seguiria com tapas, e brigas sérias arrancando sangue do rosto do irmão mais velho enquanto o outro revidava as pancadas, enquanto os dois rolavam pela grama, sujando-se de marrom e vermelho. Teria que apertar a mão dele depois, com o olhar baixo, mas sabendo que havia olhos pretos e brilhantes encarando o rosto dele e reclamando como ele. Porque, no final, aqueles olhos foram os únicos que olhavam o mundo como os olhos dele.

A lápide de Sebastian era puramente cinzenta e prateada. Não havia plantas enroscando-se pela rocha, mas havia uma flor crescendo ao seu lado. Jace adoraria ter conhecido o que tinha de belo como aquela flor, por baixo da rocha de indiferença de Sebastian. Ele conhecia a máscara de pedra, pois uma também foi lhe dada, mas era só isso que conhecia sobre o irmão.

E, sim, também se arrependia disso.

Queria tê-lo amado, puramente e incondicionalmente, como se ama um irmão.

Mas ninguém o ensinou a amar. Nem a Sebastian. Nem a Clarissa.

Amar é destruir.

Mas não colocaria isso sobre a lápide de sua família.

As palavras que mandou colocarem em seu túmulo foram simples e decididas com delicadeza, embora ele nunca iria saber se o irmão mais velho teria ou não as aprovado. Talvez não estivesse se importando. Ou quem sabe, de qualquer lugar que aqueles olhos pretos estejam vendo o mundo, ele não esteja, como Jace, chorando lágrimas de chuva e aceitando, como ele aceitava.

Quem sabe os dois não estariam rindo agora, se estivessem juntos, compartilhando de comentários sarcásticos com uma hostilidade reciproca e, ao mesmo tempo, familiar e confortável.

Uma sensação que fazia parte da rotina amada e odiada pelos Morgestern.

E na sua lápide, Jace leu:

"Sebastian Fairchild Morgestern. 1858 - 1877. Filho de Valentim e Jocelyn Morgestern".

E, em baixo, a citação que ele achou correta de se colocar:

"O homem nasce para a tripulação, como faíscas voam para cima".

Soava como Sebastian.

E, doía admitir, também soava como Valentim.

A última vez que Jace viu o pai foi nos fundos do palácio dos Herondale, olhando para os olhos negros e cansados de um homem velho e cansado, que se preocupava - pela primeira vez - com a família. Valentim ordenou ao filho adotivo que corresse para a mansão Morgestern de volta, pois algo dera errado e os filhos estavam em perigo.

"Confio em você, Jonathan". As últimas palavras que o ouvira dizer.

Sentia falta do homem que o criara, assim como sentia falta da mãe que não conhecia e dos irmãos que traíra. Mas ainda haviam coisas boas. A vida pode ser escura, mas quase nunca se perde no breu.

– Papai! Papai!

Jace se virou e sorriu ao ver a pequena criatura com cabelos dourados como os dele, que alcançava apenas seu joelho, ter que levantar a cabeça para encarar seus olhos. Olhos iguais aos dela. Cor de âmbar. A garotinha sorria como um raio de sol e erguia uma boneca familiar.

Uma boneca com cabelos vermelhos trançados e um sorriso inquebrável.

Soava assustadoramente familiar.

– Papai, posso ficar com ela? Eu a achei na mansão!

Jace riu. Pegou a filha no colo e, com um abraço que confortava sua alma, sorriu para ela.

Como aquela pequena criatura podia tornar o escuro tão iluminado?

– Não sei... Falou com sua mãe? O que ela acha disso?

– Ela deixou! - fez beicinho - deeeeeixa.

Jace beijou a bochecha dela com ternura.

– Pode ficar com ela.

Rindo e gargalhando com a inocência de uma criança, Jace e a filha foram voltando seus passos para dentro. A chuva fazia com que os cabelos dos dois ficassem mais escuros e molhados, com gotículas de prata nas pontas. Mas o abraço parecia o suficiente para proteger ambos de qualquer coisa.

– Jonathan! - a voz de sua esposa veio de dentro do casarão - vamos logo! Sebastian fez a proeza de cortar a mão em um caco de vidro, precisamos ir logo a um médico.

Jace riu consigo.

– Ela fala como se ele fosse morrer - suspirou - Sebastian tem uma alma forte, assim como seu nome.

– S-E-B-B-Y - a menina soletrou no colo dele, orgulhosa - Sebby, de Sebastian.

Ele olhou para a filha. Para seu anjo.

– Sabe soletrar o seu?

Ela balançou a cabeça, lamentando.

– Não se preocupe - ele disse, com uma súbita paz - é assim; C-L-A-R-Y. Clary. De Clarissa.


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Notas finais do capítulo

Amo voces. E queria agradecer a recomendação da Gaby Chan. Muito obrigada!!!! Mesmo. Me sinto feliz e emocionada demais rsrs. Não esqueci seu comentário hein !

Espero que nos vejamos novamente, nas fics Clastian qe virão. E isso serve para todas. Amo voces.