Facilis Densensus Averno escrita por Heosphoros


Capítulo 10
Curando Machucados


Notas iniciais do capítulo

"Amei-te, então arrastei estas correntes de homens para as minhas mãos e pintei minha vontade pelo céu, com estrelas"

T.E. Lawrence



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Havia sangue. Muito sangue.

A visão verde e serena do parque ao redor parecia turva e borrada aos olhos de Clary. Ela só conseguia enxergar a própria barriga, num ponto específico onde seu vestido marfim ia se tornando rubro e encharcado com o próprio sangue dela.

Depois ela olhou para suas mãos, que ainda seguravam a espada com firmeza, e a soltou. Clary cambaleou para trás e a dor (a infinita e angustiante dor) a puxou para o chão, onde ficou; encarando a lâmina prateada suja de vermelho escuro.

Aquele sangue não era dela. E isso fez seus olhos tomarem outro rumo.

Como se o tempo tivesse parado naqueles pequenos segundos que ela observava o estrago a sua volta, Clary viu o que antes era Hodge Starkweather sangrar como uma torneira no solo verde. O cadáver estava flácido como uma boneca de pano, os olhos castanhos estavam vidrados em surpresa; encarando-a.

E o pescoço... Clary se arrepiou. No pescoço havia uma linha escarlate de onde o líquido de mesma cor espirrava. Uma poça de sangue se formou embaixo de Hodge.

Culpa dela. Tudo culpa dela.

Mea maxima culpa.

Jace falou aquilo certa vez, ela só não lembrava quando. Talvez em alguma de suas crises em relação à sua adoção, certamente algo menos preocupante do que a própria Clary havia acabado de fazer.

– Clary!

Ela finalmente deitou na grama. Sebastian se aproximou a passos lentos – ou pareciam lentos, como todo o tempo ao redor dela – e se ajoelhou ao lado da irmã. Tudo parecia girar, mas ela conseguiu ver os olhos dele. Olhos escuros, olhando fixamente para ela. Não havia decepção, não havia nojo, só havia o Sebby. Aquele Sebby que curava os machucados dela e brigava com Jace quando ele a magoava.

Seu Sebby. Só seu.

A dor foi se tornando mais insuportável.

Clary gritou.

Colocando a mão sobre o machucado, ela o ouviu dizer:

– Não deveria ter feito isso – sua voz não estava mais firme, estava fraquejando. Ela nunca o viu ou ouviu fraquejar – não devia ter me salvado.

– Devia – ela disse, cada movimento de seu maxilar a matando de dor – queria.

Sebastian a pegou no colo com cuidado, como se fosse uma criança.

– Você é muito teimosa – sussurrou com suavidade.

– Tive a quem puxar... – então a voz dela tornou-se um sussurro, e o mundo que girava, as visões turvas que rodopiavam em seus olhos, começaram a tomar conta dela. Clary gritou de dor, uma última vez, antes de tudo ficar escuro.

__

Quando abriu os olhos, estava em casa. Teve que piscar várias vezes para se certificar de que não estava sonhando. Não estava. Ali era seu quarto; grande, espaçoso e iluminado apenas pela luz branca da lua cheia.

Clary estava soterrada por cobertores e... apenas cobertores. Embaixo da camada de tecidos felpudos ela estava nua. Havia um curativo onde havia sido baleada e umas coisas verdes embaixo do curativo. Talvez ervas.

Embora usar ervas seja uma prática pagã e proibida.

– Oh, ela acordou...

Clary virou-se bruscamente ao som de uma voz desconhecida.

Encostado na soleira da porta havia um homem. Era moreno, vestia-se como um burguês e possuía cabelos negros estranhamente espetados por baixo de uma cartola. Seus olhos eram grandes e amarelos, como os de um felino.

– É ótimo ver meus pacientes se recuperando – ele prosseguiu – não cobro tanto para que os resultados sejam promíscuos.

Ela franziu o cenho, ainda um pouco tonta.

– Quem é você?

Seus lábios rasgaram-se em um meio sorriso.

– Prazer em conhecê-la, srta. Clarissa – falou, tirando a cartola e revelando mais cabelos espetados – meu nome é Magnus Bane. Sou seu curandeiro.

Curandeiro?

Ah, sim. Ela foi baleada enquanto matava um homem no Hyde Park.

Clary se sentou, trazendo os cobertores consigo para que aquele estranho não a visse nua. O quarto deu um giro de 360 graus. E ela abaixou a cabeça para vomitar.

– Urgh – exclamou Magnus Bane – não sou pago para cuidar disso.

Ela limpou a própria boca.

– Imagino que não – Clary tossiu um pouco – posso saber quem me despiu?

Magnus deu um risinho.

– Seu irmão cuidou disso. E me ameaçou de morte se eu tirasse os panos de seus seios e dos seus... Hm... tesouros.

– Meu irmão? – ela sentiu as bochechas esquentarem – ele nunca me viu... Hã...

– Nua? – Magnus riu alto – realmente pareceu que não. Eu deveria ter um pintor para registrar o rosto dele em algum lugar que eu pudesse ver no futuro.

Futuro. Pintor. E pensar que aquelas palavras existiram nos planos de Clary algum dia. Naquele momento, onde os dedos dela estavam sujos de sangue seco que não a pertencia, a garota só conseguia pensar em uma coisa:

Quando havia se tornado uma assassina?

Parecia estar cheia de trevas dentro de si. Estava apaixonada pelo irmão adotivo, odiava o pai que a colocou no mundo e a educou, não visitava mais o quarto da própria mãe e havia matado um homem. Talvez Hodge Starkweather não fosse inocente, talvez ele tivesse esses podres que Sebastian dizia, mas ela não deveria... Não deveria...

Foi para salvá-lo, uma voz insistiu, salvar seu irmão.

Como se seu irmão se importasse com ela. Como se ela também não a odiasse.

Ouviu Magnus estalar a língua.

– Parece que você não está bem – falou – vou chamar seu irmão. A casa é dele, ele que chame os criados para limpar essa sujeira que você fez... – suspirou – apesar desse infortúnio, foi um prazer conhece-la, Clarissa.

– Obrigada – ela disse, mas soou um sussurro.

Magnus ouviu.

– Por nada – foi o que disse antes de sair.

Depois de alguns instantes, Sebastian chegou. Entrou no quarto e sentou-se ao lado dela. Clary não conseguia olhar para ele, não queria ver seus olhos escuros cheios de ódio e enxergar a si mesma naquelas trevas. Quem quer que fosse aquele Sebastian assassino... Ela era como ele.

Decidiu olhar para a lua. Aquela grande bola branca, que iluminava um quarto inteiro com sua luz pálida e fria. Era linda. Olhe para a lua, Clary. Só olhe para ela.

– Obrigado – o murmúrio de Sebastian atravessou seus pensamentos – obrigado, Clary.

– Não me agradeça – ela disse – não quero que me agradeça.

Ele ficou quieto.

Clary prosseguiu.

– Eu matei um homem hoje – repreendeu as lágrimas – matei para salvar você, mas mesmo assim... – soluçou – eu não precisava disso. Sabe, minha vida já estava um completo Inferno antes disso acontecer. Acha que é tudo fácil? Com meu pai tratando-me como se eu fosse um mero fantasma nessa casa, com meus sentimentos nojentos para com meu irmão adotivo, com minha mãe perecendo trancada em um quarto? Acha, Sebastian?

– Também é difícil para mim... – ele disse – você não sabe o quanto...

– Então por que me arrastar nisso? Por que colocar nessa plano sujo? – ela estava gritando – quer que eu sofra mais? Quer que eu termine como a mamãe?

Sebastian a olhou nos olhos. Foi como se ela tivesse quebrado algo nele, como se ele fosse de vidro. Uma lágrima rolou até o seu queixo e desapareceu nas cobertas. Talvez Clary se sentisse um lixo de manhã, por tê-lo feito chorar, mas estava com muita raiva naquele momento para pensar nisso.

– Eu não sei... o que eu queria com isso – ele sussurrou – talvez fazer de você... igual...

– A você? – ela não conseguiu controlar o nojo na voz.

Mais lágrimas rolaram dos olhos dele.

– Eu... Eu... Clary... – ele parecia tão destruído, tão frágil - você é a única coisa que eu já amei.

Foi como se algo a jogasse para trás.

Sebastian não amava o pai, não amava a mãe e nem mesmo o irmãozinho que conheceu antes dela. Não. Ele só a amava. A pequena Clary, sempre com problemas, sempre com um machucado a ser curado. Essa Clary sempre o amou e sempre o amaria.

Mas quem era a Clary agora? Quem era Sebastian agora? Os dois pareciam estar perdidos em novas essências sombrias. Não eram eles mesmos.

– Você esqueceu que eu também te amo? – ela perguntou.

O olhar dele para ela brilhou. Ele se inclinou na direção no rosto dela e Clary só conseguia ficar parada enquanto algo estranho ardia em seu peito como fogo. Ele ficou surpreendentemente próximo dela, ela ouvia seu coração bater com força, e encostou os lábios nos dela como costumavam fazer quando eram muito pequenos.

De alguma forma, não pareceu como antes.

Sebastian se afastou, os olhos ainda brilhavam com as lágrimas, e então a deixou sozinha.

Eles não tinham mais cinco anos, algo na mente dela continuava insistindo, era claro que beijinhos paternais seriam estranhos. Mas, ainda assim, algo soou extremamente certo.

Clary afastou o pensamento e foi dormir.


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Notas finais do capítulo

Espero que os Clastians shipps tenham gostado desse pequeno começo. E então? Valeu a espera? ;)