Utopia escrita por Renata Salles


Capítulo 22
Ser


Notas iniciais do capítulo

Diga o que você quer dizer, mas se mentir para mim novamente serei eu a pessoa a ir embora. Será que você consegue ser honesta?

Queria fazer seu coração voltar a bater.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/47823/chapter/22

Leia o post de abertura!

 

Seth suspirou pesadamente enquanto esperava que o portão automático da garagem abrisse. Seu carro estava cheio de documentos da Adália’s: contratos, notas fiscais, projetos... Lhe ocorreu que talvez Sophia quisesse distraí-lo, pois manter a empresa lhe daria muito trabalho.

Pensando bem, talvez ela apenas quisesse enlouquecê-lo.

Seth estava ansioso para arrancar a gravata e adentrar a floresta verde, queria afundar os pés no barro e sentir a água da chuva em sua pele. Sentia-se um animal enjaulado mesmo quando estava sozinho em sua casa, mas precisava de respostas.

O lobo sempre ajudou a esposa com o que quer que ela precisasse, mas nunca se interessou de fato pelas empresas, e eram tantas! Cada uma possuía seu próprio Diretor Geral, e todas respondiam a um único conselho, o que facilitava. A função de Seth como dono majoritário das ações da companhia era liderar o conselho e fiscalizar o trabalho dos diretores e do CEO, solucionando da melhor forma possível os problemas que eles não conseguiam ver, além de participar da criação e da implementação de estratégias e projetos para a marca como um todo.

Sophia costumava ficar à sombra do conselho, deixando que seus membros tomassem as decisões, interferindo apenas quando achava estritamente necessário, e Seth pretendia fazer o mesmo. O problema era que o conselho não o conhecia bem e não confiava nele. Cada um dos doze humanos da espécie mais gananciosa que existe queria garantir uma fatia maior do bolo, e como resultado nenhum deles deixava Seth em paz: tinham medo de mudanças, queriam tirar vantagem uns sobre os outros. Era uma loucura. Seth não encontrava uma forma de dizer que nada mudaria de modo que eles entendessem e aceitassem.

Em sua investigação pessoal sobre o paradeiro da esposa, a primeira coisa que descobriu é que Sophia tinha muito mais dinheiro do que ele imaginava, e que ela possuía várias propriedades ao redor do mundo, sendo a mais antiga uma fazenda na Grécia que estava em sua família a “gerações”. Ele também recebeu do escritório de Nova York um adendo ao relatório das propriedades particulares de Sophia, e por mais que fosse o esperado, se surpreendeu em descobrir que a esposa possuía um jatinho cujos destroços foram encontrados sobre o Oceano Pacífico. Foi assim que ela foi dada como morta.

Seth desceu do carro e recolheu as pastas, estava distraído e cansado. Ele adentrou a casa e equilibrou as caixas para deixar as chaves sobre o aparador. Paralisou.

Não era possível.

Ele lutou para relaxar a postura rígida e deixou os documentos no escritório. Subiu as escadas lentamente, evitando respirar profundamente, sentindo como nunca antes a textura do tapete.

Não tinha mais arrumado seu quarto desde que encontrara a outra carta da esposa, havia retirado apenas os pedaços grandes de madeira que um dia foram os móveis. Assim como ele, o cômodo estava vazio e despedaçado.

Seth hesitou antes de empurrar gentilmente a porta do cômodo com as pontas dos dedos, parecia ter um balão de ar inflando perto de seu coração que batia rápido, pressionando-o.

Ela estava de costas, olhando pela janela.

Um pequeno filme passou em sua cabeça e de repente Seth estava extremamente consciente de como era a da textura da pele dela tocando a dele, seu sorriso cativante e seu olhar profundo. Ele fechou os olhos e respirou por longos minutos; quando voltou a abri-los, sentiu todo o peso daquele momento. Era como se estivesse com uma forte vertigem, se equilibrando sobre um fio muito fino.

Seth engoliu a seco, analisando-a.

Seu vestido branco de um tecido leve estava sujo de barro e de sangue, assim como sua pele. Sophia estava descalça sobre os resíduos de vidro, madeira, e sobre toda aquela poeira; parecia pálida à luz da lua e muito magra, seus cachos negros antes longos, agora mal tocavam seus ombros.

Ela não se virou.

— Eu gostava da decoração — disse com um tom frágil.

Ouvir sua voz fez um calafrio percorrer o corpo dele. Seth deu um passo à frente, pisando em um pedaço de madeira. Hesitou.

— O que...

— Esta ainda é a nossa casa, não é? — interrompeu ansiosa.

Seth se escorou na parede. Não sabia o que dizer, por onde começar. Não ouvir uma resposta a fez se virar para encará-lo.

— Não é? — a pergunta escapou como uma súplica por entre seus dentes.

Eles se encararam.

Seth parecia frágil e forte ao mesmo tempo, e Sophia... pela primeira vez Seth podia ver medo em seus olhos. Havia manchas arroxeadas e sangue seco em seu rosto e pescoço.

— O que houve?

Um músculo sobre sua sobrancelha tencionou por um segundo.

— Caçada selvagem.

Seth apenas a encarou, conhecia suas meias verdades. A sombra de um sorriso se formou nos lábios dela.

— Você fica lindo de social.

— É. Não tive como te agradecer por isso — respondeu ranzinza.

Os olhos dela começaram a lacrimejar. Sophia fechou os dedos em uma bola e respirou profundamente: uma cicatriz vermelha aparecia na palma de sua mão, um corte que começava por dentro.

— Não gostou do presente? — perguntou como se não tivesse entendido a indireta.

— Não era bem o tipo de presente que eu esperava...

Sophia balançou a cabeça de cima para baixo, compreendendo, e encarou seus pés. A dor a mantinha forte, um truque que seu pai lhe ensinara.

Seth soltou o ar em desistência.

— Por onde esteve Sophia? — perguntou quase como um apelo.

Ela hesitou. O que poderia dizer?

Suspirou.

— Por aí. — Engoliu a seco. — Estou aqui agora.

Um tremor percorreu o corpo dele, Seth sentiu como se seu sangue estivesse pegando fogo.

Por aí? — deu mais um pequeno passo à frente, a raiva inundando seu corpo, seu maxilar tencionado. — Você me deixou, Sophia! Me largou aqui com uma maldita carta por mais de um ano! — Seth fechou as mãos em punho. — Você tem ideia do que isso fez comigo?

Mas antes que Seth pudesse encontrar uma forma de colocar toda a sua raiva e ressentimento em palavras, Sophia cruzou o espaço entre eles e o prendeu em um abraço desesperado, afundando o rosto em seu peito, molhando sua camisa com lágrimas. Ele não a tocou, não sabia se era seguro seguir em frente, ou se deveria desistir  — não a deixaria ir embora novamente, mas não queria vê-la naquele momento.

Seth a segurou e encostou sua testa à dela, respirando profundamente antes de se afastar para encará-la.

— Não me peça para fingir que nada aconteceu — disse com um sussurro firme.

Sophia sentiu como se parte do seu corpo tivesse quebrado e se desprendido quando ele soltou seus braços e a deixou sozinha.

.

Jacob se encarou na janela do carro. Usava uma blusa xadrez, calça jeans e tênis. Colocou um casaco, humano algum encararia aquele frio sem um casaco. Suspirou.

Mesmo antes de Paul lhe contar a história da moça Jacob vinha reunindo forças para procurá-la. Ela estava lá afinal, quando seu corpo falhou Emma o ajudou sem pedir nada em troca, e seguiu sua vida sem olhar para trás. Jacob soube assim que a conheceu que ela era especial, e saber pelo que passou despertou um instinto de proteção muito forte nele. Era sua obrigação protegê-la, ajudá-la com qualquer coisa que precisasse.

Jacob tirou uma vida. Precisava salvar quantas pudesse.

Então começou a observá-la à distância.

Em geral Emma ia do trabalho na escola de Forks direto para sua casa que ficava convenientemente perto da delegacia, a não ser às sextas, quando tinha sessões de duas horas com um psicanalista em Port Angeles, para tratar o transtorno de estresse pós-traumático que desenvolveu. Essas sessões a destruíam. Nos finais de semana não comia nem bebia absolutamente nada, não saía da cama apesar de não conseguir dormir. Ficava tão fragilizada que parecia que iria quebrar a qualquer momento. 

E por isso Jacob sentiu a necessidade de conhecê-la.

Em alguns dias ele já sabia que Emma gostava do chá bem quente, e que não tomava se esfriasse o suficiente para deixar de subir o vapor; sabia que ela colocava o despertador dez minutos antes do horário para ter mais tempo na cama; sabia que ela gostava de comida italiana e que odiava aglomeração. Mas Jacob era um intruso se esgueirando em seu jardim.

Logo, apenas observá-la não era mais suficiente.

A vida foi cruel com Emma, alguém tinha que fazê-la ver que ela também poderia ser boa, e ainda que Jacob não fosse a pessoa mais indicada para tal missão naquele momento, faria o melhor que pudesse, pois o destino os fez se encontrarem e o timing não podia ser apenas coincidência.

Jacob pegou uma cesta e caminhou pelo supermercado — queria que o encontro parecesse um acaso. Pegou um saco de pão e uma garrafa de leite, estava pensando o que iria almoçar quando a viu no corredor de massas. Ela logo o encarou com a testa franzida e um sorriso surgiu em seus lábios, estava sempre alerta ao que a rodeava.

Tudo aconteceu no mesmo minuto.

Enquanto Jacob apenas pensava em se aproximar e ela esperava que ele o fizesse, um senhor parou atrás dela e se abaixou para pegar um molho de tomate, ele se levantou com dificuldade e por acidente seu cotovelo encostou nas costas dela. O senhor pediu desculpas e se afastou, não havia notado o que provocara.

Jacob observou o rosto dela empalidecer junto à luz dos seus olhos, seu corpo arqueou e as pupilas dilataram. Ela começou a tremer, olhando para os lados em completo terror, seus joelhos falharam e ela caiu no chão, derrubando a cesta que segurava.

Foi apenas um minuto.

— Saia daqui — disse Jacob a um funcionário que arrumava produtos em uma gôndola.

O lobo se aproximou devagar e sentou no chão a sua frente, mantendo uma distância que a deixasse confortável.

— Emma... Emma olhe para mim — disse lento e firme. Ela olhava para os lados e seus dedos se retorciam, seu coração estava batendo tão rápido que parecia que iria explodir. — Olhe para mim, Emma — ela o encarou por um segundo. — Você se lembra de mim? Eu sou o Jacob — disse quase com um sussurro — nos conhecemos na minha oficina...

Ela arranhou o chão e fechou o punho com força. Lágrimas escorriam por seu rosto. Emma balançou a cabeça de um lado para outro, como se estivesse tendo um pesadelo.

— Emma, olhe para mim — ela abriu os olhos. — Você se lembra de mim?

Ela balançou a cabeça de cima para baixo e se encolheu como uma criança.

— Me escute — Jacob continuou com um tom baixo e rouco. Ela fechava os olhos com força. — Olhe para mim — ela o encarou novamente. — Estou aqui com você, está segura. Respire. Você está segura — dizia devagar. — Eu vou cuidar de você, ninguém vai te machucar Emma, você vai ficar bem. Está segura. Eu estou aqui, vou cuidar de você. Respire. Você está segura.

Jacob não se moveu, repetindo essas palavras vez após outra. Fez sinal para que ninguém se aproximasse, recusando ajuda quando o gerente se ofereceu gesticulando para ligar para a emergência.

Ele a encarou diretamente nos olhos até prender sua atenção, e aos poucos Emma começou controlar sua respiração.

Quando se sentiu melhor ela apontou para sua bolsa e Jacob encontrou um frasco com vários remédios diferentes. Emma apontou qual deveria tomar, e ele lhe entregou uma garrafa de água que havia caído de sua cesta. Após alguns minutos seu corpo relaxou completamente e os tremores pararam.

Jacob colocou os produtos dela de volta na cesta e a entregou a Emma quando ela conseguiu se levantar. Não havia nada a ser dito. Ela agradeceu com um sorriso cansado e caminhou para o caixa.

— Você está bem, senhorita? — perguntou o gerente. — Quer que eu chame a emergência?

— Estou bem, obrigada — disse sem fôlego, pegando sua carteira.

O gerente encarou Jacob em dúvida e ele fez um sinal com a cabeça. Tratá-la de forma especial não a ajudaria.

Jacob a acompanhou até o estacionamento.

— Posso levá-la para casa? — disse finalmente. — Talvez não seja uma boa ideia dirigir agora.

Ela o encarou, pensando em uma forma educada de dizer não.

— Está tudo bem, eu vou ligar para um amigo.

— Se importa se eu esperá-lo aqui com você?

— Não é necessário, sério. Eu estou bem.

— Eu sei. Mas quando disse que te manteria a salvo eu estava falando sério, Emma.

Ela o encarou por um minuto e então sorriu sem emoção.

Meio sem jeito, pegou um cartão em sua bolsa e ligou. Jacob fingiu estar prestando atenção em outra coisa e se afastou um pouco, para que ela não se sentisse constrangida.

Ao terminar a ligação Emma sentou-se encolhida no canto do banco que Jacob ocupava em frente ao mercado.

 — Ele estará aqui em alguns minutos.

Jacob balançou a cabeça de cima para baixo.

— Você gosta de brownie? — Soltou. Emma o encarou com a testa franzida. — Minha irmã faz brownies deliciosos... Ela vai fazer uma pequena reunião sexta que vem em La Push. É aqui perto e só vai ter amigos e familiares. Você sabe, tem o Natal... — Jacob revirou os olhos. — Você pode ir, se quiser — hesitou —, me salvar de toda a baboseira de autoajuda. Eu ficaria muito agradecido.

Emma hesitou, mas antes que pudesse dizer que planejara secar três garrafas de Vodka sozinha em sua casa, um carro da polícia parou a sua frente. Jacob se levantou.

— Bom te ver em um mercado, garoto! — Começou Charlie saindo da viatura. — Comprou comida de verdade para variar?

Jacob encarou Emma.

— Viu? É disso que estou falando! — O olhar do policial passou de Jacob para Emma com uma interrogação. — Eu sei me cuidar Charlie.

— É claro que sabe. Só estou checando... — disse piscando para Emma, que sorriu. — Vamos, eu vou te levar para casa — disse abrindo a porta para ela. — Precisa de carona, Jake?

— Não, obrigado.

— Sue está fazendo lasanha, vem jantar lá em casa!

— Sim sim.

— Até mais tarde então — disse Charlie entrando na viatura.

Jacob enfiou as mãos nos bolsos e caminhou para longe.

Emma encarou a vegetação verde com um suspiro. Sentia falta de caminhar pelo Central Park aos domingos.

— Você está bem? — perguntou o policial.

— Agora estou.

— Me dê a chave do seu carro, eu levo para a sua casa mais tarde.

— Obrigada. Me desculpe por isso chefe Swan, não queria causar nenhum transtorno.

— Não se preocupe, me ligue sempre que precisar. Nós somos uma família por aqui, acostume-se.

Emma sorriu, mas algo em seus olhos estava quebrado.

Charlie se arrependeu pelo comentário. Queria fazê-la sentir-se segura, mas apenas lhe recordou o que havia perdido. Era difícil saber o que dizer a ela, Charlie tinha a impressão de que a única coisa a se fazer era envolvê-la em um abraço. Emma era um recipiente de dor que respirava.

Mas era durona. Ela não desistiria.

— Vocês se conhecem há muito tempo? — perguntou Emma.

— Quem? Jacob? — Ela confirmou com um aceno de cabeça. O oficial encarou a estrada com mais atenção, e uma pequena ruga se formou em sua testa. — Eu o conheço desde que nasceu, é um ótimo rapaz. — Um músculo tencionou perto de sua boca, ele engoliu a seco. — Que bom que estão passando um tempo juntos.

Ela fez uma careta.

— Eu não... — tomou fôlego. — Não estamos. Ele apenas me ajudou hoje.

— Está tudo bem. Seja lá o que estiver acontecendo entre vocês, ou não acontecendo... — Ele balançou a cabeça de um lado para o outro. — O que quero dizer é que vocês podem fazer bem um ao outro. Podem se entender...

Charlie tentou engolir o nó em sua garganta, repetindo mentalmente vez após outra que estava fazendo a coisa certa, que Jacob merecia uma nova chance.

.

 .

Coloquei a manga da blusa dentro da luva. Estava desconfortável: nunca havia usado tantas camadas de roupa em toda a minha vida.

Suspirei, encarando as árvores secas do Jardim das Flores que lutavam contra o vento. Caminhei até a fonte, parando em frente ao anjo de pedra que parecia se encaixar melhor ao inverno, soturno e belo com uma intensidade que estremecia tudo ao seu redor. Alec deixou escapar que foi Jane quem fez a escultura, e desde então não consigo deixar de encontrar semelhanças entre a obra e Eric.

Me estiquei para tirar a neve das mãos da estátua.

Todo ano nessa época meus tios decoravam o jardim para o Natal. Eu ficava em meu balanço de madeira com uma coberta no colo e uma xícara de chá, enquanto eles andavam de um lado para o outro com luzes e enfeites. Minha mãe ocupava o lugar ao meu lado, e todos se sentavam ao redor para assistir a tradicional luta entre Jasper e Emmett no telhado, de onde um sempre acabava despencando até o chão.

Suspirei.

Aro me enviou um presente esta manhã, uma capa de veludo azul marinho, forrada por dentro com pelo branco sintético, acompanhada de um cartão:

Querida Renesmee,

Receba este presente de boas vindas à nossa guarda com os mais sinceros votos de saúde e de prosperidade. Fazer cumprir a lei é sustentar o equilíbrio do mundo e respeitar a vida. Estamos extremamente felizes e orgulhosos que tenha decidido se unir a nós nesta missão.

Nós somos fortes, somos guerreiros, somos um.

Nós somos Volturi.

Obs: Soube que gosta de azul. Não é o padrão, mas a senhorita nos lembrou de que devemos sempre estar abertos ao novo. Seremos eternamente gratos por isso.

Atenciosamente,

Aro, Caius e Marcus

Me embrenhei na floresta abraçada ao livro, minha primeira tarefa como membro da guarda era ler a edição especial de A Arte Da Guerra com as anotações de Aro, eu me encontraria com ele no final da semana para discutir nossos pontos de vista.

Caminhei pela trilha. Não aguentava mais ficar trancada no castelo — não queria falar sobre o acidente, mas não conseguia dar três passos sem que alguém me perguntasse o que houve. Ainda que não devesse sair, precisava respirar um pouco de ar puro.

Passava pelos arcos de galhos da entrada quando comecei a ouvir a música. Hesitei, decidindo se queria encontrá-lo, mas Alec já deveria estar ciente de minha presença.

Adentrei o Jardim do Ocaso caminhando lentamente.

Ele estava no centro das ruínas de mármore, acariciando o violino hora com gentileza, hora com uma ansiedade enlouquecida. Eu nunca o havia visto tão exposto, seu corpo parecia ser uma extensão do instrumento que ecoava a música, e tudo ao redor obedecia seu comando.

Me ajoelhei lentamente e sentei no chão sobre a neve, tive medo de me aproximar e quebrar o encanto; eu não conseguia tirar os olhos dele. Aquele lugar... Aquela música. Desde a primeira vez que entrei neste jardim tive a certeza de que ele é uma confissão, finalmente Alec me permitia ouvi-la.

Ele se movia com a melodia, seu rosto se tornava sereno ou grave de acordo com as notas. Queria poder entrar em sua cabeça, queria fazer seu coração voltar a bater.

Alec estava em êxtase enquanto eu me intoxicava, e, de repente, com uma nota aguda, silêncio.

Ele apenas respirou profundamente, relaxando a postura, então abriu os olhos e me encarou. Desviei o olhar, encarando o livro em meu colo.

Em um instante ele estava a minha frente com a mão estendida.

— Não deveria estar aqui fora.

Recusei sua ajuda apoiando as mãos no chão para me levantar.

— Obrigada, doutor — respondi mau humorada.

Alec me encarou com sua arrogância usual e se afastou para guardar o violino no case que repousava sobre o mármore.

— Está se sentindo melhor, eu suponho.

— Estou sim. — Caminhei pelo jardim, subindo os degraus da estrutura circular para me sentar sobre o banco próximo ao lago. Hesitei. — Obrigada. Você sabe... por ter me levado para dentro.

Ele se virou para me encarar, piscou rápido como se estivesse procurando as palavras, mas apenas balançou a cabeça em afirmativa e se virou novamente.

— Você toca muito bem...

— É uma bela capa...

Sorri. Quebramos o silêncio ao mesmo tempo.

— Obrigado — disse educadamente. Foi a minha vez de acenar com a cabeça. — Tarefa? — perguntou apontando para o livro.

— Sim... Parece que hoje é oficialmente meu primeiro dia.

Ele concordou.

— Seja bem vinda.

Sorri.

Alec pegou a maleta com o instrumento e desceu os degraus, mas parou antes de chegar aos arcos da entrada do jardim.

— Posso lhe fazer uma pergunta? — perguntou hesitante.

— Claro.

— Por que decidiu ficar em Volterra? — perguntou se aproximando.

Uma lufada de ar chicoteou meu rosto.

— Porque acredito que estão fazendo o que é certo.

— A senhorita sabe o que estamos fazendo? — perguntou irônico.

Uma ruga se formou em minha testa. Ele me encarava envolvido em sua superioridade e arrogância, aguardando prepotente por uma explicação.

— O que quer dizer?

— Por que permitiu que sua família acreditasse que a senhorita faleceu?

Engoli a seco, meu estômago queimava.

— Está me julgando? — perguntei me levantando. Alec hesitou. — Quer saber se tive medo? Se quis que eles sofressem?

— Me desculpe — disse atônito —, não foi minha intenção ofendê-la, apenas não vejo uma explicação coerente. Por que alguém se viraria contra sua própria família?

— Mas o que você pode saber sobre isso, não é mesmo? Você queimou porque sua família falhou em protegê-lo. Talvez achassem que era um monstro, uma aberração, e adivinha? — Me aproximei o bastante para sentir seu hálito em meu rosto. — Você é bom em julgar os outros, mas olhe para si mesmo... É patético. Você se esconde atrás dessa máscara de superioridade e afasta as pessoas porque tem medo, só não sei se o que teme é os outros ou a si mesmo, afinal, o que pode oferecer? Você é oco.

Assim que terminei de falar parte de mim se arrependeu.

Alec estava rígido a minha frente, me encarando fixamente com uma expressão indecifrável, algo em seus olhos parecia ter dissolvido. Ele apenas soltou o ar em meu rosto e se afastou, me deixando sozinha com minhas mentiras e com minha honestidade.

.

Emmett é muito bom em identificar padrões. “Espírito de caçador”, Carlisle diz. Por isso é bom em encontrar coisas, por isso Tanya Denali pediu sua ajuda quando começou a se preocupar com o paradeiro de seu parceiro.

Leonard saiu de casa há duas semanas afirmando que se reuniria com clãs da resistência da Europa. Havia uma movimentação estranha em Volterra e ele queria saber tudo que pudesse a respeito. Em seu último contato com Tanya há quatro dias, Leonard disse que estava voltando com informações importantes.

Algo havia acontecido a ele, Tanya sabia. Leonard sempre dava notícias, ou ao menos deixava pistas. Esse era seu jogo.

Não demorou até que Emmett refizesse seus passos e encontrasse os restos do vampiro em uma cabana. — Mas ele também havia encontrado outra coisa, um rastro conhecido que ele logo tratou de esconder.

— Você tem certeza? — Esme perguntou aflita.

— Tenho. — Emmett respondeu grave. — Sophia matou Leonard.

— Por que ela faria isso? — perguntou Rosalie.

Um a um, todos encararam Edward, que estava calado encarando seus pés.

— Seja como for — começou ele — Leonard era um membro muito importante para a revolução, a notícia logo se espalhará e o culpado não ficará sem punição. Se alguém descobrir o envolvimento de Sophia, ela estará em perigo.

— E os quileutes podem ser retalhados — afirmou Alice.

— Eu vou avisá-los — respondeu Bella.

— Melhor não falar sobre Sophia — orientou Carlisle —, Seth pode começar a procurá-la.

— Sim — concordou a vampira.

— Vamos para Forks, — sugeriu Edward para a esposa — podemos avisá-los e passar o Natal com Charlie.

Bella sorriu, abraçando o marido.

— Como está Tanya? — perguntou Carlisle.

— Perturbadoramente calma — afirmou Emmett com uma careta. — Ela diz que ninguém capturaria Leonard de surpresa, e se alguém o estava ameaçando ele teria deixado alguma pista. Tanya quer vingança, e não vai descansar até conseguir.

— Melhor irmos para Denali — começou Jasper. — Se Leonard deixou qualquer pista que incrimine Sophia precisamos encontrá-la antes de Tanya.

Esme suspirou.

— Por que...? Sophi não é assim.

Carlisle passou os braços ao redor da esposa, sabia que ela considerava a mestiça como uma filha.

— Não se preocupe, Sophia sabe se cuidar — afirmou o patriarca.

.

Quando Seth entrou na cozinha Sophia se ajeitou na cadeira, escondendo com o hobby de seda as manchas arroxeadas em seu ombro e pescoço.

Ele fingiu não notar, prendendo a respiração para não se intoxicar com seu cheiro. Preparava um mingau enquanto Sophia cutucava seu cereal sem nunca comer, estava tão magra que a pele parecia estar colada nos ossos.

Seth hesitou.

— Rachel vai fazer uma ceia de Natal em sua casa essa noite. — disse sem se virar para encará-la. — Todos vão estar lá.

Sophia prendeu o ar.

— Bom jantar.

Ele se virou para encará-la.

— Você pode ir, se quiser.

Sophia balançou a cabeça de um lado para o outro.

— Obrigada. — Sorriu sem graça e mordeu o lábio. — Não comente com ninguém que estou aqui, por gentileza.

Seth sentiu como se tivesse levado um tapa.

— Por que?

Uma mistura de ansiedade e medo atravessou os olhos dela.

Por favor — implorou.

Ele engoliu a seco com a mandíbula tencionada.

— Será que você consegue ser honesta?

Seth jogou a panela com mingau na pia e saiu.

.

 .

Corri pelo longo corredor e desci as escadas o mais rápido que pude. Estava em cima da hora. Parei ao ver Alec e Eric conversando ao pé da escada e recuperei a postura, descendo os degraus lentamente. Contornei Eric e beijei sua bochecha.

— Bom dia — disse a Alec com um sorriso.

Ele apenas me encarou superior e indiferente, fez uma reverência a Eric com um aceno de cabeça e se retirou.

O mestiço me encarou com a testa franzida.

— O que você fez?

Hesitei.

— Nada — disse caminhando rapidamente para a cozinha.

Eric me seguiu.

— Renesmee...

Abri a geladeira e fingi estar procurando algo.

— Eu posso, talvez, possivelmente, ter tido uma crise de sinceridade que pode, quem sabe, tê-lo ofendido. — Encarei-o. — Mas foi ele que começou.

Eric revirou os olhos e suspirou, encarando o teto.

— É. Quem sabe...

Peguei uma garrafa de suco de maçã e alguns pedaços de queijo.

— Eu preciso ir. Não posso deixar o chefe esperando...

— Boa sorte — disse com um sorriso.

Ao abrir a porta da cozinha fui atingida por uma rajada de vento que fez meu corpo chacoalhar. O inverno não é um momento legal para um passeio de moto, nem mesmo na Itália.

Dei um passo para trás e fechei a porta, encarando Eric com o sorriso mais persuasivo que consegui.

— Ah, nem vem — começou. — Preciso ir a Siena comprar suprimentos. Não existe fonte de ferro e madeira suficiente para consertar o que estes animais quebram — resmungou ranzinza.

— Só uma carona... por favor!

— Alec está indo para Volterra, vá lá pedir a ele.

Fiz um careta.

— Engraçadinho.

— Falo muito sério. Prometa a ele que ficará de boca fechada e quem sabe ele te ajude.

Respirei profundamente e saí, encarando o frio e a neve.

Eric foi até a porta.

— Renesmee, é perigoso, e você acabou de se recuperar! — Segui caminhando até a garagem. — Menina teimosa! — resmungou entrando.

Não demorou até que eu tivesse que admitir mentalmente que Eric estava certo. Quando os pneus não escorregavam, e meu corpo não me traía tremendo de frio, o vento tratava de tentar me derrubar. Se tivesse ido caminhando talvez chegasse mais rápido.

Para completar, foi Alec quem abriu os portões para os corredores subterrâneos do Palazzo Dei Priori.

Passei por ele, entrando no corredor escuro e estreito e agradeci, mas ele me ignorou mais uma vez. Hesitei. Alec podia ser arrogante e até prepotente, mas ninguém nunca poderia falar de seus modos.

Parei a sua frente, bloqueando a passagem.

— Alec...

Ele me encarou indiferente, mas tudo que eu vi foi o garoto solitário tocando violino com uma intensidade absurda em seu jardim secreto. Me aproximei. Ele enrijeceu quando toquei seu rosto com as pontas dos dedos, mas sua postura relaxou e ele fechou os olhos quando as imagens começaram.

Mostrei a ele a lembrança turva de seu rosto me encarando no local do acidente, então a primeira vez que nos falamos em meu primeiro dia em Volterra. Mostrei a lembrança da primeira vez em que perdi o controle e ele me atingiu com seu poder, como senti uma estranha sensação de estar, ao mesmo tempo, livre e morta; mostrei quando ele me acalmou e secou minhas lágrimas na sala de música, e como ele estava bonito e misterioso em seu terno no último baile. Mostrei como ele se encaixava desconcertantemente ao Jardim do Ocaso, como me senti protegida quando ele me tirou de perto do lago e fez o possível para me aquecer, e como seu cheiro me intoxicou quando meus lábios tocaram os dele.

Lembrança a lembrança em um fluxo quase musical — a melodia dele —, mostrei todos os momentos em que foi gentil comigo mesmo em silêncio, e os momentos em que pude ver quem ele é por baixo das máscaras e aparências. Permitir que ele se veja como eu o vejo era a única forma que eu sabia de pedir desculpas.

Quando acabei Alec apenas respirou profundamente, sem vacilar em sua postura.

— Aro a está esperando no jardim de inverno, senhorita Cullen.

Não sei o que esperava que ele fizesse, mas lutei para disfarçar a decepção. Balancei a cabeça de cima para baixo e caminhei em silêncio ao seu lado até o fim do corredor que desembocava em um grande salão.

Com um cumprimento Alec caminhou em direção à garagem. Atravessei a sala e segui pelo corredor que me levaria ao Jardim de Inverno. Era um lugar simples e rústico, rodeado por corredores de pedra onde as placas irregulares de madeira perdem espaço para pedrinhas brancas. Existe apenas um único banco estofado em meio à vegetação que teimava em resistir ao inverno, e ele estava ocupado.

Sorri.

Sulpicia lia um livro com a cabeça no colo de Aro, que por sua vez fazia caretas para um smartphone, ouvindo música clássica no último volume.

Ele ergueu o olhar para me encarar. Hesitei.

— Desculpe, eu volto depois...

Mas em um instante Sulpicia estava a minha frente.

— Não seja tola. Venha, — disse pegando meu braço com um sorriso — caminhe comigo.

Levei um minuto para controlar meus movimentos ao invés de simplesmente acompanha-la. Aquela mulher era perturbadoramente encantadora.

Caminhamos lentamente, dando voltas pelo jardim.

— Querida Renesmee, diga a meu amado marido que é deselegante ignorar duas damas que caminham...

— Eu não seria capaz de ignorá-las nem se esse fosse meu desejo, amore mio — respondeu Aro.

Ela me encarou com satisfeita.

— Sabe querida, alguns homens são muito proativos: tudo que você precisa fazer é dedicar-lhes um pouco de atenção e eles já sabem o que fazer. Mas alguns... — Ela respirou profundamente, revirando os olhos. — Nem mesmo com coordenadas específicas.

Aro nos encarou com um olhar inocente.

— Devo me retirar?

— Não é necessário, meu querido, apenas falamos sobre as qualidades emocionais do seu gênero.

Ele arregalou os olhos e voltou sua atenção rapidamente para o celular.

Sulpicia se voltou cúmplice para mim novamente.

— As mulheres reivindicaram certos direitos nas últimas décadas que facilitam essas situações. Sabe — ela se aproximou, sua voz era quase um sussurro —, alguns deles tem tanto medo de se machucar que se escondem atrás de seu orgulho. — Um sorriso complacente se espalhou por seu rosto, fazendo-a parecer menos assustadora. — Aro era assim quando nos conhecemos.

— E o que você fez? — perguntei sem jeito pois era o que ela queria que eu fizesse.

— Ela provou que eu estava errado — disse Aro sem nos encarar. — Mostrou que era alguém que eu poderia confiar.

— Mas você lê mentes... — disse com um sorriso na voz.

Paramos em frente ao banco. Aro se levantou e segurou a mão da esposa que parou ao seu lado, e pela primeira vez me senti honrada por estar em sua presença. O rei e a rainha usavam seu tempo para me educar. Meus pulmões se encheram de orgulho.

— Sua mente revela seus sentimentos e intenções cara mia, mas o amor sem competência é apenas boa intenção. São as pequenas atitudes que cultivam a confiança. — Ele sorriu generoso.

— Devo deixa-los agora. Chelsea já está impaciente — anunciou Sulpicia.

Apenas então percebi que a vampira estava a poucos metros atrás de nós, aguardando sua rainha. Sulpicia se despediu com um sorriso, e as duas seguiram pelo corredor direito com os guardas em seu encalço. Encarei o espaço vazio por um longo minuto.

— Como funciona seu dom? — perguntei impulsiva. Encarei-o sem graça. — De Chelsea, quero dizer.

— Não é uma ilusão, se é o que está imaginando — disse me encarando atentamente. — É confiança. Algo tão frágil, tão trabalhoso para se construir e tão fácil de desmoronar... Podemos dizer que Chelsea tem o dom de influir sobre isso, mas funciona apenas se a pessoa possuir certa predisposição em direção ao que ela está sugerindo.

— Então pode não funcionar?

— Em alguns casos não.

Encarei-o.

— Está funcionando comigo?

Um sorriso se espalhou por seu rosto e os olhos faiscaram.

.

***

Acesse o site e saiba mais!

Cuta a página do Face! 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E aí, o que achou? Me conte honey! ♥

Até a próxima!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Utopia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.