Utopia escrita por Renata Salles


Capítulo 20
O som do silêncio


Notas iniciais do capítulo

O Destino não pode ser desfeito.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/47823/chapter/20

Inverno

O vento frio invadiu o cômodo e apagou a lareira. De novo. Era a quarta vez que acontecia e estava sinceramente me tirando do sério — nas últimas semanas qualquer coisa me fazia explodir em contagem regressiva, mas eu não era a única incomodada dessa vez, de modo que me considerei certa de que ele estava realmente insuportável.

Uma lufada de ar invadiu o cômodo e um calafrio percorreu minha espinha, fazendo meu corpo chacoalhar. Bufei.

3, 2...

Alec afastou as pesadas cortinas azuis para encarar a paisagem, suspirou após alguns minutos balançando a cabeça de um lado para outro. Ergui os olhos e encarei-o da forma mais raivosa que poderia, dizendo através do olhar todos os palavrões que dedicava a ele em minha mente.

Veja, vampiros não sentem os efeitos do clima, carecem de sensibilidade na pele, mas eu sinto. Minha temperatura é naturalmente quente, quase 40 graus em um dia tranquilo, e para meu conforto, é preciso mantê-la estável. Um pouco de compreensão por parte dos meus colegas de casa seria bem legal, afinal, qual é o problema de manter as portas e janelas fechadas? Não estou pedindo muito.

Alec me ignorou completamente como de costume, é como se eu nem estivesse aqui. Eu nunca havia visto alguém tão bom em ignorar pessoas quanto ele. Revirei os olhos.

Olhei para Chelsea sentada no sofá a minha frente ao lado do marido, com a linha e as agulhas repousando sobre suas pernas longas, apertando os olhos, encarando o teto trabalhado por vários minutos. Nunca pensei nela como o tipo de mulher que faz tricô, mas enfim... A essa altura aprendi a não esperar nada de ninguém, pois nunca se sabe o que pessoas são capazes de fazer.

Alec caminhava de um lado para outro entre a primeira sala de estar e a biblioteca, atravessando literalmente toda a ala leste do castelo. Estava impaciente e particularmente mal-humorado: a neve que acumulara no jardim não somente destruiu seu precioso trabalho de paisagismo, como o deixou irritantemente desocupado por grande parte do dia. Como resultado, ele pentelhava e destruía todos os momentos de sossego dos outros. Como os meus. Cada. Um. Deles.

Demetri me encarou do outro lado da sala, fazendo como se estivesse atirando com uma arma de dedos em sua própria cabeça. Sorri. “É sua vez”, ele gesticulou com um olhar de desafio — quando a presença de Alec se tornava irritante para muitas pessoas nós nos revezávamos para distrair a fera. — Tentei argumentar balançando a cabeça de um lado para outro, “você o conhece há mais tempo”, tentei, mas com o apoio de Chelsea e Afton não teve jeito.

Respirei profundamente e fechei o livro.

— Alec — chamei. Ele finalmente me encarou. — Você pode me ajudar com a lenha?

Uma pequena ruga surgiu em sua testa enquanto ele ponderava, mas logo seu rosto suavizou.

— Claro.

Fomos para a sala principal onde portas de vidro levavam a uma intrínseca escada de pedra em formato caracol, voltada para o jardim frontal do castelo. Alec se afastou por um instante. Eu estava na metade da escadaria quando ele parou a minha frente segurando uma capa vermelha de veludo, que colocou delicadamente ao meu redor.

A roupa sob suas mãos impediram-no de sentir meus pelos eriçados. Ele chegou tão perto que pude sentir seu hálito frio em meu rosto, e seu cheiro que era particularmente bom. Seus lábios se esticaram em um meio sorriso ao perceber que eu usava o colar que ele me presenteara em meu aniversário, antes de fechar o manto com o tradicional broche de ouro com o brasão dos Volturi. Desviei o olhar ao sentir minhas bochechas corando e segui descendo os degraus.

Caminhamos lado a lado em silêncio por alguns quilômetros, e tudo bem, havia me habituado a isso. Era até prazeroso na verdade. A vida havia arrancado de mim as palavras como fizera com as dele, nós nos entendíamos no silêncio talvez até melhor do que se estivéssemos de fato falando. O silêncio também tem som. E no silêncio aprendia a desvendá-lo pouco a pouco. Alec já não me parecia tão arrogante, e seu ar de superioridade era agora mais atribuído a sua postura que a sua personalidade. É fácil confundir seu olhar distante e desinteressado com prepotência, e se sentir ofendido, julgado, porque entendê-lo exige esforço, paciência, e pessoas não gostam de nenhuma dessas coisas.

Alec é apenas um homem solitário, é injusto criticá-lo por isso.

Encarei a neve na copa das árvores. O jardim parecia um túmulo intocável, pacífico e doloroso. Ou talvez fosse eu. Meu poder novamente me traía e se tornava cada vez mais difícil materializar e controlar uma lembrança de Jacob. Ele não quer me ver, está me abandonando e eu não sei o que fazer sem ele. Não sei quem sou sem ele.

Então tudo se resume ao frio que cobre a terra e a vida, e um céu cinzento. Perguntei-me se isso também era o que afetava o humor de Alec, e lamentei por ter sido injusta com ele mais uma vez.

Analisei-o.

Alec encarava o horizonte com uma intensidade incomum — forte. Triste. Como uma alma traída que vaga fora do corpo.

Então compreendi seu peso. Bem, a falta de vida.

Edward fechou os olhos e respirou profundamente. Achava que a situação não poderia piorar, mas é claro que estava errado.

Bella adentrou a cômodo como um furacão.

— Querida, eu posso explicar.

— Sem essa! O que você fez? — gritou.

Bella estava com os ombros tencionados e os dedos em forma de garra. Ele engoliu seco.

— É complicado.

— Complicado? Eu te pedi apenas uma coisa Edward! Uma coisa! — “Ai caramba”, pensou ao ouvi-la chamá-lo pelo nome. — Você prometeu que ia abandonar qualquer coisa que tivesse relação com revolta e Volturi e o que você fez? Mentiu para mim! Claro! Por que ouvir a Bella? Ela não está tentando matar todos nós!

Bella estava histérica, o que em sua opinião era um completo exagero. Ele se distraiu ao ver como seus olhos brilhavam de fúria, como seu cabelo estava revolto e a boca franzida. Ela ficava absolutamente graciosa quando estava brava, e era tudo que ele conseguia pensar.

Edward tentou se aproximar, fez menção de tocá-la, mas ela se afastou.

— Mas amor — disse com a voz mansa — os Volturi virão atrás de nós de qualquer jeito, você sabe disso, quando acontecer temos que estar prontos. Quanto mais unidos estivermos com os outros clãs, melhor.

— Claro, então vamos nos jogar em uma guerra logo! Quem quer viver mais?

Edward havia visto Bella naquele estado em apenas uma ocasião: quando ela soube do imprinting de Jacob por sua filha recém-nascida. Não parecia uma reação proporcional naquele momento.

— Amor...

— Vamos irritar os Volturi! — cortou. — É! Vamos irritá-los e decorar nossa sala de estar com as cabeças dos nossos amigos mortos!

— Espere... Como? — disse com a voz engasgada tentando conter o riso. O histerismo da esposa estava passando dos limites aceitáveis.

— Não me olhe com essa cara Edward, porque a cabeça de Amun está em uma caixa na minha sala! — gritou.

Edward a encarou em silêncio. Não queria acreditar, mas Bella jamais brincaria com algo assim. Respirou sentindo como se tivesse levado um soco no estômago, a gravidade da situação incendiando sua mente em apenas um segundo.

Estava sem ar, apesar de isso ser impossível.

— O que?

Após meses de intensas brigas e discussões entre Jane e Eric pela tão repentinamente querida sala de estudos da torre sul, a qual Aro entregou a mim para supostamente resolver o problema, Eric acabou ganhando. Ele reformou o espaço com a ajuda de Alec e o transformou em uma área comum altamente restrita, e apesar de estarem trabalhando há meses e de ela estar supostamente quase pronta, eu não havia recebido qualquer convite para visita-la, de modo que, em nome da curiosidade, a invadi.

Minha primeira impressão foi que o que era mais um calabouço ou espaço para torturas tornou-se uma singular sala rústica. Acolhedora, romântica até. Cada detalhe parecia ser carregado de sentimento e dedicação, e eu soube que era um novo lugar especial do castelo, o novo segredo.

Não era nada muito elaborado. As paredes do cômodo pequeno foram forradas com taboas de madeira, um tapete de pele repousava sob uma poltrona preta de couro com cara de muito confortável, uma lareira de pedra e luminárias em estilo retro davam ao cômodo uma cor alaranjada, uma escada de ferro em caracol começava a direita, e só. Um quadro grande e manchado ocupava a parede em frente a poltrona.

Aproximei-me para encará-lo.

Era uma paisagem bonita, bem trabalhada, a vista do pôr do sol em uma colina; ao fundo havia uma pequena vila solitária e no centro, uma grande mancha de tinta azul, obviamente intencional.

Suspirei com pesar.

A princípio estranhei a parceria, apesar de Eric e Alec serem o mais próximo de amigos que a condição vampiresca lhes permite, e eu sabia que Jane gostava de pintar e de fazer esculturas quando não estava torturando alguém com seu dom ou tornando nossas vidas um inferno. Agora tudo ficou claro: aquela era a vila dela, o dia em que Jane e Alec morreram.

E senti uma tristeza profunda. Dor. Eu conhecia Eric o suficiente: ele moveu céus e terras, brigou, esperneou e subornou, tudo por ela. Cada coisa no espaço descrevia de alguma forma o que ele sentia por Jane — era uma declaração de amor, e ao mesmo tempo um adeus.

Uma vez Tarcísio, o lobo mais jovem da matilha de Jacob, me disse que homens não superam as coisas tão facilmente quanto às mulheres. “Quando homens realmente amam é para valer, sem gracinhas, sem ‘encontre conforto nos braços de outras’. Homens amam muito mais”, afirmou. Na época discordei terminantemente, mas começo a acreditar que ele estava certo.

Subi as escadas para chegar à torre mais alta do castelo.

Devia ser a parte em que Alec entrava com mais do que opiniões: havia um balanço preso ao teto e o chão circular seria um pequeno jardim. A grade de proteção de pedra estava parcialmente destruída, faltando pedaços, de modo que mantive uma distância segura da beirada, mas me aproximei para apreciar a vista.

Com toda certeza era a coisa mais bonita que havia visto em toda a minha vida. O inverno desfrutava seu auge em um dos dias mais frios, a neve acumulara em uma camada grossa, cobrindo toda a terra e se espalhando livremente. Àquela altura dava para ver todo o Jardim das Flores coberto de neve, e o lago congelado que só então notei que tinha o formato de uma águia, tocava a parede do castelo.

Fechei os olhos e respirei o vento.

Ele estava perto dos estábulos, completamente absorvido em seu belo cavalo negro. Não era nada comum um vampiro ter animais de estimação, ainda mais cavalos que parecem sentir o mau nas pessoas, mas este não repudiava Alec.

Como que para concordar o animal abaixou a cabeça para que o dono acariciasse sua crina.

Me peguei imaginando o homem que Alec devia ter sido antes de ser transformado. Talvez fosse mais alegre e sociável, vivendo cheio de pretendentes desesperadas por sua atenção, ou talvez tivesse uma namorada. Tentei imaginá-lo em uma fazenda cercado por filhos e cachorros, e mais uma vez lamentei por sua vida roubada.

Logo que aceitei sua ajuda, sempre que nos encontrávamos para minhas sessões de treinamento Aro falava para começarmos depressa com muito entusiasmo, mas naquela manhã o antigo apenas sentou-se a minha frente com uma expressão pensativa, me analisando por longos minutos.

Começava a me sentir incomodada.

— Aro?

Ele se recostou na cadeira com a mão alisando o queixo.

— Estive pensando... Se seu dom te permite reviver lembranças... — estreitou os olhos em uma pausa. — Por que não as manipulamos?

Meus olhos arregalaram.

— Isso é possível?

Ele ergueu os ombros.

— Não custa tentar.

Aro pediu que me concentrasse em uma lembrança muito marcante e viva, e por algum motivo a primeira coisa que veio a minha mente foi a última noite que passei na casa de Jacob.

Acordei pela manhã com muito calor depois de fazermos amor pela primeira vez, e pela primeira vez, encarando um mural de fotos antigas, percebi que a bagagem de Jacob era demais para eu segurar. Então tomei um banho rápido e me troquei com todo cuidado para não fazer barulho; estava com a mão na maçaneta quando ele me chamou de volta para o quarto.

— O que estava fazendo?

— Nada.

Ele me encarou.

— Já se vestiu? — constatou franzindo o cenho.

— Não queria te acordar. — Sentei na beirada da cama.

— Não me acordou. — Ele me puxou e me beijou.

Na ocasião deixei que me amasse mais uma vez — a última vez.

— Concentre-se — Aro disse em meu ouvido.

Retrocedi a lembrança para o momento em que entrei no quarto.

— Já se vestiu? — ele constatou mais uma vez franzindo o cenho.

Dessa vez me contive e respirei profundamente, encarando-o.

— Vou te deixar — minha voz saiu engasgada.

Ele sentou aturdido.

— O que? Por quê?

— Você sabe por que — joguei em seu colo uma antiga foto dele com minha mãe em uma noite na fogueira, que carregava durante os preparativos para não perder a coragem.

Ele abriu e fechou a boca algumas vezes, mas o silêncio era o melhor argumento e a melhor resposta. Travamos então uma batalha silenciosa por meio de olhares por alguns minutos, até que ele finalmente entendeu que a guerra já estava perdida.

— Para sempre? — perguntou resignado.

Ergui os ombros.

— Pode ser.

Jacob levantou urgente e se ajoelhou a minha frente.

— Não! Amor, por favor, isso não foi nada, acabou antes mesmo de começar, não significou nada! Eu amo você agora. Te amo para sempre — encarou a fotografia. — Isso foi há muito tempo...

— Não significou nada? Você tem certeza?

Ele empalideceu, sabia que não poderia negar: Jacob viveu momentos grandes e terríveis com minha mãe, momentos que alteraram de alguma forma seu modo de pensar e de agir, que mudaram seu jeito de ser. Aquela relação estava intrinsecamente ligada a sua personalidade e nada poderia ser feito quanto a isso.

Meu Jacob. Ele sabia que o destino me levaria até ele, podia sentir, sabia que seríamos almas gêmeas. Ele devia ter sido só meu, devia ter esperado por mim.

— Isso não tem nada a ver — argumentou. — Acabou. Por que se preocupar com isso agora?

— Você tem fotos dela por toda parte — respondi cética.

— E-eu sou desligado, você sabe — gaguejou. — Não mexo nesse mural há tanto tempo!

— Então por que guardou tudo isso? Mesmo depois que ficamos juntos você sequer pensou em se livrar disso?! — Estava com tanta raiva que mal conseguia encará-lo. — Você nunca pensou que é uma baita falta de respeito comigo?

Odiava fazer aquele papel de namorada neurótica, brigando com o homem que amo por uma ex — ainda que ela não seja apenas uma ex —, me odiava com todas as forças naquele momento, mas simplesmente não conseguia tolerar que seu passado estivesse assim tão presente, tão vivo. Não conseguia deixar de me sentir uma substituta, sempre ocupando um lugar que não me pertence. Pensei nas coisas que ele costumava fazer com ela e que agora certamente fazia comigo, e me senti enjoada.

— Amor — tocou meu rosto —, você é a mulher da minha vida, a mulher que vou passar o resto dos meus dias. Me desculpe por isso se acha desrespeitoso. Você está certa. Pode mexer em todas as minhas coisas, tudo que é meu é seu também. Eu jogo fora as fotos e tudo que você quiser, faço qualquer coisa.

Ele jamais entenderia.

Tirei sua mão da minha pele.

— Tarde demais.

.

O cavalo ficou sobre duas patas, jogando neve sobre Alec. Ri enquanto ele protestava e limpava suas roupas.

— Não faça isso — suplicou uma voz atrás de mim.

Pulei com o susto. Selas me encarava com uma expressão devastada, a pele cinzenta.

Demorei um minuto para voltar a mim.

— Como chegou aqui?

Ele marchou até mim sem quebrar o contato visual. Parecia desesperado.

— Você não entende! — disse urgente agarrando meu braço.

— Me deixe em paz!

Tentei empurrá-lo e em um instante seus olhos se tornaram vítreos e uma imagem transparente, mas muito viva, surgiu em frente aos meus.

Começou como uma gota de água se formando, brilhando sob a luz do sol e escorregando gentilmente para o chão, acariciando a folha verde-escura de uma árvore centenária no alto de uma montanha, que desembocava em um campo aberto, cheio de raízes robustas ou pequenas, flores e grama, tudo na beira de um penhasco. Fui invadida por uma tranquilidade doce e serena, como a maior das certezas, do tipo que se sente uma vez na vida. Lembrei-me de já ter visto a versão mais sombria de uma árvore como esta em meus pesadelos, então percebi que aquela era a árvore, o Destino, a Vida.

Mas assim que a gota se desmanchou no chão uma série enlouquecedora de imagens começou. Eram tantos rostos e cores que me senti entorpecida, hipnotizada, até que uma imagem se destacou: com uma esponja, Alec jogava água quente sobre meu corpo; em outra, ele segurava minha mão enquanto assistíamos ao pôr do sol no Jardim do Ocaso, no entanto, após um segundo, eu estava na praia de La Push e era a mão de Jacob que eu segurava; eu o beijei, mas no final era Alec quem me encarava.

Não tive tempo de digerir as imagens, e menos ainda de desvendar o que aquilo significava. De repente o lobo Jacob me encarava com ódio nos olhos e rosnava ameaçadoramente, deixando meus pelos eriçados. Ele deu um salto em minha direção.

Uma nova série de imagens aleatórias que pouco consegui desvendar começou. Pude ver rapidamente Jacob tocando meu rosto na sala da casa dos meus avós em Hoquiam, decorada lindamente para uma grande festa. Ele me beijou com os olhos brilhando, nossos braços entrelaçados enquanto segurávamos taças de champanhe.

Vi uma criança correndo por uma sala cheia de brinquedos, ela caiu de bunda no chão e me encarou com um bico, apesar da queda ter sido amortecida pela frauda. Era uma menina linda com cerca de dois anos, com a pele branquinha, cabelos castanhos levemente avermelhados com cachinhos nas pontas e olhos azuis como o oceano. E eu a amava mais que qualquer coisa no mundo. Me vi segurando-a, beijando seus pezinhos de recém-nascida, cantando para ela dormir, e então voltei àquele momento com o coração apertado. Um homem se abaixou e a segurou em seus braços antes que eu pudesse fazê-lo, ele a levou para longe de mim enquanto alguém me segurava com força e eu gritava histericamente, lutando, ameaçando e implorando, chorando sem parar.

Então eu estava em um quarto escuro. Havia apenas uma pequena fresta de luz atravessando o cômodo e repousando na parede; sobre uma cama de casal Sophia se revirava e gritava. Havia sangue por todo lado.

As imagens aceleraram mais uma vez e a velocidade com que apareciam e sumiam era enlouquecedora. Havia novas amizades, alianças e desavenças, amor, família. Guerra. Sorrisos, choros, esperança e desespero, e mortes. Muitas mortes. Mas também havia vida, nova e pura.

Em uma visão fui para cima de Jacob com uma expressão possuída, bati em seu rosto e esmurrei seu peito com toda a minha força.

— O que você fez? — gritei a plenos pulmões, mais como uma acusação do que uma pergunta.

O sentimento era terrível, a maior dor que poderia ser sentida. Eu queria que ele me abraçasse, que dissesse que era tudo mentira, que estava tudo bem, mas ao mesmo tempo queria abrir sua pele com as unhas e arrancar seu coração, queria arrancar e triturar tudo que estivesse dentro dele de forma lenta e meticulosa.

Então o ritmo foi diminuindo, e tudo era calma.  

Eu estava no Jardim do Ocaso, aconchegada no peito de alguém que logo reconheci pelo cheiro, mas não conseguia acreditar. Meu coração estava apertado e ao mesmo tempo livre depois de uma década enjaulado, e eu estava como medo, mas imersa naquela certeza estarrecedora, tranquila.

— Por que faz isso comigo? — ele perguntou com pesar.

— Porque te amei — sussurrei com os olhos fechados.

Alec segurou meus braços e me afastou, seu rosto era uma máscara de determinação.

— Você precisa ir. Aqui não é mais seguro.

Eu o olhava fixamente. Não queria ir, não poderia deixá-lo.

— Por que faz isso comigo? — choraminguei.

Ele limpou minhas lágrimas com as pontas dos dedos.

— Porque eu te amo.

Selas soltou meu braço, levando-me de volta para o presente.

Eu estava horrorizada por ter visto o que ele via e completamente aterrorizada pelo que vi.

— Isso é o futuro? — perguntei apenas para ter certeza.

— Você viu isso? — perguntou também surpreso.

— Responda!

Ele me encarou com um olhar louco.

— Não é o futuro, não mais. É o Destino.

— Não! Você disse que eu tinha escolha!

— Sim, todos temos escolhas, e você já escolheu.

— Então eu posso desfazer o que ainda não foi feito... — divaguei. — Eu posso escolher certo.

Selas riu sarcasticamente.

— Não existe certo. O Destino é uma linha contínua, suas escolhas podem apenas alterar a perspectiva.

Soltei o ar como se tivesse levado um soco no estômago.

Algo em mim quebrou. E naquele momento entendi o que ele quis dizer em nosso primeiro encontro, sobre o Destino ser como uma corda, e compreendi sua sanidade contestável. Ninguém jamais poderia suportar aquilo.

Meus olhos embaçaram com as lágrimas que rolavam como bem queriam.

— O que devo fazer? — insisti desesperada.

— Você não entendeu? Não há nada que você possa fazer. O Destino não pode ser desfeito.

— Não! — lamentei e afirmei.

Em minha negação o empurrei, dando um passo em falso para trás. Então meu corpo despencou da torre.

.

Quando eu era pequena minha mãe me colocava na cama todas as noites com um beijo testa, e eu esperava pacientemente que meu pai viesse me contar uma história. Eram momentos especiais para mim: a textura das cobertas, a luminosidade fraca, o cheiro do meu pai e do livro, seus dedos penteando meu cabelo... E todas as noites eu rezava para que aqueles momentos nunca acabassem.

Eu era feliz, despreocupada, e tudo parecia muito mais simples.

Uma noite meu pai me contou uma história sobre uma ilha misteriosa onde uma garota se transformava em vidro. Era uma transformação lenta e dolorosa que nela começou pelos pés, mas que em outro caso começou no coração.

“Você nunca se perguntou para onde vai o sentimento?” [1], disse o homem ao sentir os efeitos do seu coração em mutação.

Eu sempre considerei a história uma grande metáfora sobre os erros das pessoas, uma espécie de punição literária para a falta de sensibilidade que se espalha pelo mundo como a maior das doenças. Mas pela primeira vez me ocorreu que talvez o vidro fosse uma consequência da fragilidade.

Naquela noite sonhei que eu era a garota dos pés de vidro, me transformando completamente em uma bela e trágica peça decorativa, que em um piscar de olhos se quebrou em um milhão de pedaços e deixou de existir.

.

Há uma parte do cérebro que parece registrar em câmera lenta aqueles momentos em que percebe antes do resto do corpo que você vai se machucar muito.

A queda embrulhou meu estômago e o grito sufocou no frio. O medo virou dor quando bati na camada de gelo que cobria o lago em um baque surdo; pareceu demorar um longo milésimo de segundo até ele se partir, me depositando como um presente na água fria.

Eu afundei e bati forte no chão.

Estava sozinha com a dor e o silêncio em uma imensidão sem fim, e sem fôlego. Não havia nada que eu pudesse fazer. Era como se milhares de lâminas estivessem me espetando sem parar e cada vez mais fundo, meus pulmões estavam em chamas, os músculos rígidos. Eu não conseguia me mover, nem pensar. Em um espasmo soube que seria o fim.

E no fim vi Meu Jacob.

A profundeza do lago que seria meu túmulo se transformou em grama, a luz difusa virou sol e Jacob me tocava gentilmente. Fechei os olhos.

Nunca pensei em morrer. Na verdade nunca pensei em morte e ponto final. Sempre me pareceu uma tragédia a qual não se ousa falar sobre, e de qualquer forma, acreditar em um estado ou lugar pós-vida seria o mesmo que assumir que acredito que as pessoas têm almas, e não que eu não acredite ou ao menos não queira acreditar, mas reconhecer isso é o mesmo que afirmar que minha família é constituída por demônios condenados a vagar pela terra, rejeitados por Deus e por Lúcifer.

Sempre pensei assim e sempre repudiei qualquer religião. Vovô era católico e foi assim que acabou sendo transformado — lembro de me perguntar quando era pequena se seguir alguma religião dos homens que seria o verdadeiro pecado.

No entanto, após longas conversas com Afton percebi que não há mau nenhum em acreditar em algo. Eu particularmente não consigo engolir esse céu e inferno pregado pela maior parte das religiões contemporâneas, meu pós-morte é mais parecido com o Mundo Inferior da mitologia grega, um reino neutro subdividido onde os mortos são julgados por quem foram em vida, e então designados a seus respectivos círculos que, para mim, também são temporários até que a alma esteja totalmente limpa de sua última estadia na Terra, para poder começar uma vida nova. Todavia não acredito em castigos e torturas pós-morte porque não há o menor sentido nisso. A dor mais física é causada pela consciência e esta é individual e imaterial, a divisão inicial das almas seria por pura questão de aprendizado.

Mas eu não sei de nada. Afton diz que em assunto de crença não existe certo ou errado: tudo fala quase a mesma coisa e pretende chegar ao mesmo lugar, o que não se discute são os pormenores, que devem ser apenas respeitados.

Naquele momento eu não me incomodaria de forma alguma em descobrir o que há do outro lado, me sentiria grata até, mas meu corpo boiou para a superfície.

Decepcionada, abri os olhos e encarei a torre vazia. Por que eu não poderia simplesmente morrer naquela oportunidade e provar de uma vez por todas que Selas estava errado?

Tentei respirar olhando ao redor.

Apoiei as mãos na parte do gelo que sobreviveu a minha queda e me arrastei para fora da água com um grito, tentei rastejar para longe do buraco para evitar que o restante do gelo quebrasse, e meu corpo cedeu em agonia. Eu não conseguia me mover nem gritar ou chorar, era tudo dor e espasmos que faziam meu corpo chacoalhar, e o barulho incessante dos meus dentes batendo.

Não sei quanto tempo passou até que eu perder a consciência.

.

Acordei com o frio e com Alec jogando sua capa sobre mim. Ele desgrudou o cabelo do meu rosto e olhou para cima, para torre, parecendo preocupado.

— O que houve? — sussurrou segurando minha cabeça.

Tentei responder, mas desisti ao perceber que não conseguia controlar os movimentos da minha boca, ou de qualquer outro lugar.

Ele me segurou firme em seus braços e me levou para meu quarto, ignorando as perguntas e olhares curiosos dos nossos colegas pelo caminho.

Alec me colocou sentada sobre a tampa do vaso sanitário e fechou todas as janelas, enchendo a banheira com água quente. O vapor já enchia o banheiro quando ele se ajoelhou a minha frente me encarando fixamente.

Ele tirou a capa dos meus ombros e respirou fundo com uma pequena ruga na testa.

Estava concentrado, executando movimentos meticulosamente calculados. Eu apenas tremia e o encarava enquanto ele abaixava gentilmente o zíper do meu vestido. Não é como se eu estivesse confortável com a situação, mas não poderia protestar por que A) ainda não conseguia falar, e B) não conseguiria fazer isso sozinha de qualquer forma.

Ele tirou um lado e depois o outro gentilmente com as pontas dos dedos e os olhos grudados nos meus, deixando o tecido sobre meu colo. Seus braços contornaram minha cintura e me colocaram de pé, deixando que o vestido caísse no chão. Ainda me encarando com os olhos rubros, ele abaixou minha meia calça, me sentando no sanitário novamente enquanto ficava de joelhos, colocando um pé por vez sobre sua perna para tirar a meia grossa.

Eu estava extremamente constrangida, embora tivesse notado o esforço que ele fazia para não tocar minha pele, talvez para não dar a impressão de que estava se aproveitando da situação, ou talvez porque simplesmente não me quisesse.

Alec me pegou no colo e me colocou na banheira. Meu corpo sacudiu violentamente com a mudança de temperatura e ele me encarou novamente com aquela ruga na testa. Tentei mover a perna para mostrar que já era o bastante, que eu poderia ficar sozinha, mas uma dor lacerante me imobilizou. Mordi o lábio para conter o grito.

Notando meu desconforto, Alec pegou a esponja e passou a jogar água quente sobre meus ombros.

Encarei-o em choque e permiti que lágrimas escorressem por meu rosto, desejando com todas as forças poder voltar a ser aquela garotinha que ansiava pelas histórias do pai. Se Selas está certo e o que me mostrou por acidente é de fato meu destino, eu não quero fazer parte dele.

Alec congelou por um minuto, observando, então seus dedos frios acariciaram meu rosto. Encarei-o, e o tumulto de pensamentos e sentimentos em minha mente diminuiu.

Naquele momento percebi que minha escolha havia sido feita no momento em que o vi na entrada da sala dos Volturi em meu primeiro dia em Volterra, entendi que esse tempo todo eu queria que ele me tocasse e queria saber qual era seu gosto.

Pensei em Jacob, no que sentia por ele. Não é como se nossa ligação tivesse morrido, ela sempre seria a mesma, mas entre Escolha e Destino eu preferia escolher, e Alec era essa escolha que na verdade não era minha.

Minha mão tocou a sua e foi para sua nuca, meus dedos se perderam em seus cabelos castanhos. Apenas nos encaramos por longos minutos.

Ele fechou os olhos quando me aproximei lentamente.

Senti seu hálito com o coração batendo forte, e como se já soubessem o caminho, meus lábios encontraram os dele.  

Hesitante, Emma Huston entrou na oficina com as chaves e o celular na mão. Havia um par de pernas saindo debaixo de um Volvo prata.

— Er... Com licença — disse sem jeito.

Um homem muito alto todo sujo de graxa se empurrou para fora do carro e a encarou. Era um rapaz jovem com a expressão cansada como a dela, e exatamente como Emma ele não parecia querer companhia.

— Meu carro morreu há algumas quadras bem no meio do cruzamento e eu não tenho a menor ideia do que fazer. Você pode me ajudar?

Ele suspirou.

— Você tentou ligar para o seguro?

— Tentei. Eles disseram que o guincho pode levar até duas horas para chegar e em vinte minutos eu quase causei um acidente.

A causa lhe pareceu justa.

— Por sorte — começou se levantando — eu tenho um guincho. Qual é o carro?

— É um Freelander.

Ele ponderou.

— Vai dar.

Jacob e Emma resgataram o veículo e o levaram para a oficina. Ela se sentou em uma cadeira com uma xícara de café enquanto ele verificava o problema.

— Você é nova na cidade?

— Não — afirmou como orientado pelos oficiais. — Bem, sim.

Ele a encarou percebendo que ela não diria nada além disso. Emma estava claramente nervosa, verificando o relógio a cada dois minutos, suspirando ao olhar para fora. Não gostava de estar na rua a noite e já começava a escurecer.

— Esse lugar é seu? — perguntou para tentar se destrair.

— É.

— E onde estão os outros?

— De folga.

— Ah...

Silêncio.

— Moça, você teve sorte, foi só a bateria. Vou carregá-la e você poderá ir para casa.

Emma respirou aliviada.

— Obrigada.

Jacob fechava o capô quando se apoiou no veículo ao sentir uma dor aguda no peito. Era como se alguém estivesse espremendo seu coração e seu braço, o ar parecia não chegar aos pulmões.

Seus joelhos cederam e o quileute perdeu a consciência.

.

Inquieta, Emma encarava o ponto onde a parede deixava de ser branca e assumia um tom de cinza quando o médico disse que ela poderia vê-lo. Sentia-se uma intrusa por ainda estar ali, seu dever cívico terminava ao tomar duas ou três multas de trânsito por excesso de velocidade para levá-lo ao hospital, mas apesar de não saber nada sobre ele, não queria deixá-lo sozinho.

Então Emma o viu dormir por horas, afofou seu travesseiro, molhou seus lábios com as pontas dos dedos quando pareceram secos, perguntou as enfermeiras quando acordaria e pediu que lhe dessem remédio para dor quando sua expressão serena se tornou uma careta; ela apenas sorria quando os médicos perguntavam se era a namorada dele, mudando de assunto rapidamente.

Jacob acordou depois de seis horas, pálido e abatido após uma cirurgia de emergência. Ele a encarou com a testa franzida.

— O que houve? — perguntou com a voz rouca. Fez barulhos com a garganta e Emma lhe entregou um copo de água.

— Sua ficha diz  —  pegou a prancheta  —  “enfarte agudo do miocárdio” — leu com uma careta.

Jacob a encarou confuso, a última coisa de que se lembrava era sentir falta de ar.

Emma corou.

Parecia ter cerca de vinte e sete anos, cabelos castanhos ondulados até pouco abaixo dos ombros, pele branca e olhos verdes. Tinha uma beleza forte, mas a expressão séria, triste até. Então Jacob se lembrou de sua expressão assustada quanto ela atravessou a oficina correndo, perguntando se ele estava bem.

Jacob respirou surpreso, finalmente entendendo, mas como era possível? Sua condição de transmorfo curava qualquer ferimento e não o permitia ter sequer um resfriado, como poderia de repente sofrer um ataque cardíaco? A resposta veio a sua mente imediatamente, mas ele não queria pensar nisso.

Emma sorriu.

— Sua recuperação foi surpreendente. Parece que estão todos falando disso...

Seu queixo caiu. Ele precisava sair do hospital antes que percebessem algo diferente em seu corpo.

— Preciso ligar...

— Claro  —  Emma remexeu a bolsa e lhe entregou seu celular. — Er... Jacob. Posso te fazer uma pergunta? — Ele ergueu os ombros discando o número que sabia de cor. — Quem é Nessie?

Cada parte da mente de Jacob pareceu se concentrar em Emma naquele momento. Ficou desconcertado, ansioso.

— Desculpe — disse constrangida. — Não é da minha conta.

— Não — respondeu. Respirou profundamente. — Minha noiva. Nessie... Renesmee era minha noiva.

— Ah! — seus olhos fitaram o chão. — Desculpe, você não tinha ficha no hospital, eu não sabia para quem ligar...

— Ela morreu há um ano.

Emma o encarou com um olhar compreensivo.

— Sinto muito.

Ele balançou a cabeça de cima para baixo.

— Mas... porque a pergunta? — disse após um minuto. — Como sabe o nome dela?

— Você chamou por ela antes de desmaiar.

Sem palavras, Jacob encarou o telefone em suas mãos por longos minutos. Parou para encará-la.

— Obrigado — começou — por salvar minha vida.

Emma sorriu.

.

De uma cadeira de balanço na varanda Sophia observava o mar azul com uma xícara de chá. Perdera as contas de quantos dias havia passado assim. Esperando.

Tinha se cansado de tentar se rebelar fingindo que não se importa, cansado de procurar conforto em outras pessoas, cansado de ser inconsequente, cansado de chorar e cansado fugir. Não queria ver ninguém e não ouvia sua própria voz há quase um mês. Sophia decidiu que não faria mais nada, então passava dia e noite em sua cadeira de balanço em Aitutaki, um lido pedaço de terra praticamente esquecido no meio do Oceano Pacífico. 

Ela suspirou tentando se convencer de que o vento e o tempo encontrariam razões para explicar suas escolhas e seus erros. Sua sina era viver cheia de nada.

Fechou os olhos quando o sentiu se aproximar, sabia que esse reencontro aconteceria, só esperava que fosse em um momento mais propício.

— Não é para receber visitas que vim morar em uma ilha — disparou.

— É assim que recebe seu velho pai?

Ela riu com raiva.

— Você deveria estar morto.

— É, eu sei. Já me disseram isso.

Sophia bufou, cansada demais para jogos.

— Diga o que quer e vá embora.

Ela sabia que Selas não seria o mesmo homem que a educou séculos atrás, mas não esperava vê-lo com a aparência tão deteriorada, e isso a paralisou. Seus olhos estavam fundos com olheiras arroxeadas, o cabelo desgrenhado e as roupas amassadas. Seu pai, ao menos na aparência um verdadeiro cavalheiro, jamais andaria por aí assim.

Ele se aproximou para abraça-la, sua expressão um misto de angústia, admiração e saudade, mas assim que chegou perto o suficiente sua mão atingiu seu rosto com força.

— Eu não te criei para abandonar sua casa e seu marido, e você me dá essa vergonha duas vezes!

Sophia lembrou-se de seu primeiro marido.

— Eu fugi para salvar você!

— Eu não precisava ser salvo! — gritou e agarrou seus braços. — É exatamente isso que Leonard queria!

— Não procure alguém para atribuir seus erros.

— Meus erros? Você não sabe nada sobre meus erros! Como acha que os humanos souberam a localização exata de onde eu caçaria aquela noite, menina burra? E como seu marido soube tão rápido que você tinha fugido?

Sophia ponderou, havia se questionado a respeito durante muito tempo, mas na época Leonard abafava qualquer pensamento, dizendo que ela precisava se concentrar no que fariam a seguir.

Ela encarou o pai como a criança desorientada que nunca deixara de ser.

— Ele era seu amigo, se preocupava com você — mas as palavras que ouvira Leonard pronunciar tantas vezes não convenciam nem a si mesma. Ela estava confusa, esteve assim através dos séculos, desde que abandonou sua casa e seu amado marido humano que também se tornaria seu fardo.

— Não seja ingênua, garota estúpida! Leonard fez de tudo para que eu a entregasse a ele, e quando você apareceu apaixonada por um humano e eu concedi sua mão ele decidiu que precisava se livrar de mim.

— Não! — Aquilo estava errado. Fazia sentido, mas não podia ser verdade.

— Curioso vocês irem viver precisamente na vila esquecida por todos os deuses, que os Volturi tinham negócios! E por falar nisso, como acha que Volturi ficaram sabendo da namoradinha do meu neto? Leonard conhecia Eric, sabia que ele jamais a abandonaria.

— Por que ele faria isso?

— Porque a seus olhos Eric sempre foi e sempre será um fardo.

Sophia se afastou em negação. Ele a encarou.

— Engraçado que o diário de Bella tenha aparecido ao alcance de Renesmee justo depois de Leonard tê-la conhecido...

— Como ele poderia saber? — argumentou com um fio de voz.

Selas abriu um sorriso cínico.

— Ele se juntou a família.

Sophia lembrou-se da estranha união de Leonard com Tanya Denali, da visita que eles fizeram à choupana de Bella e Edward no dia da festa de aniversário de Renesmee, e encarou Selas com os músculos rígidos, aceitando o que antes não queria ver.

Foi sempre ele.

Leonard traiu seu pai, envenenou a mente de seu marido humano, entregou Jane e mais tarde o próprio Eric aos Volturi, provou uma grante briga entre os Cullen, que acabou com Renesmee presa em Volterra, tendo a mente envenenada a cada dia por Chelsea e Corin, e a separou de Seth.

Sua respiração saiu trêmula.

— Por que?

— Porque ele a escolheu, e você o rejeitou.

— E Renesmee?

— Você ainda não entendeu? Ele quer destruir tudo que você ama, ou que já amou algum dia...

Sophia perdeu o fôlego. Leonard havia avisado que a destruiria.

— Os Volturi?

Ele a encarou com olhos cheios de seriedade.

— Filha, ele vai começar uma guerra.

— Como?

— Leonard é ardiloso e está se preparando há oito anos; intoxicando a mente de quem estivesse por perto, fazendo acordos, formando grupos...

Sophia soluçou. Lágrimas escorriam por seu rosto.

— O que devo fazer?

— Volte para casa.

— Mas...

— Está feito, já começou.

Selas se aproximou para acariciar seu rosto vermelho pelo choro e ainda com as marcas dos seus dedos na bochecha. Segurou seu rosto.

— Volte para casa filha — suplicou —, você não tem muito tempo.

Sophia arregalou os olhos, o coração perdeu uma batida.

— Seth? — perguntou em pânico. Não suportaria se algo acontecesse a ele.

Selas balançou a cabeça de um lado para outro.

— Ele vai ficar bem.

Ela suspirou em alívio, depois entendeu o que aquilo significava e levou a mão à boca, deixando seu peso cair sobre a cadeira. Fitou o mar por alguns minutos com a respiração entrecortada.

— Quanto tempo? — perguntou sem vida.

— Pouco.

Selas se ajoelhou a sua frente e segurou suas mãos.

— Fiz o que pude para evitar tudo isso querida, eu juro, mas apenas consegui adiar... ou piorar as coisas. Perdoe-me. Não deveria tê-la deixado nunca criança. Eu sinto muito.

Sophia balançou a cabeça de cima para baixo sem conseguir encontrar sua voz, apenas pensava no tempo que desperdiçou, e no futuro que não teria.

Oito anos antes

Leonard havia ouvido muitas coisas sobre os Cullen.

Pareciam um clã pacífico, mas enfrentaram uma ameaça direta dos Volturi com um convite para uma batalha, o que era sem sombra de dúvida algo notável. E havia ainda a união do clã a uma matilha de lobos... Era preciso muita cautela ao se aproximar.

Tudo que ele queria era que Sophia se afastasse o suficiente para que pudesse levá-la para longe daquele lugar, mas a mestiça o conhecia bem e cuidava para nunca ficar sozinha. Ela aceitou o gentil convite de Esme para se hospedar na casa por “quanto tempo fosse necessário”. Em algum momento Leonard teria que desistir.

Após meses de cuidados redobrados e nenhum sinal de que ele estivesse à espreita, Sophia finalmente relaxou e foi emboscada na estrada, onde Leonard a fez sair do carro e a agarrou pelo braço.

— Acha que pode fugir de mim minha querida?

— Fugir? Você não me possui, do que exatamente eu teria que fugir?

Leonard colocou o cabelo dela para trás da orelha.

— Não me leve a mal Sophi, você sabe que sempre tive as melhores intenções com você. Apenas prometi a seu pai que a protegeria, e eu sempre cumpro minhas promessas.

Sophia se afastou.

— Não preciso de proteção, ainda mais a sua. Você mentiu para mim sobre a mestiça, traiu minha confiança!

— Está muito emotiva, meu amor, por isso senti necessidade de mentir... Você não está pensando direito. Já pensou o que poderia ter acontecido caso ele a visse?

Sophia sentiu seus pelos eriçarem.

— É minha escolha, não sua! Estava disposta a arcar com as consequências.

— Seria suicídio! — gritou, perdendo a paciência. — Vamos — disse puxando-a pelo braço —, conversaremos mais tarde.

Sophia resistiu.

— Não irei com você a lugar algum, nunca mais. Siga seu caminho Leonard, estou escolhendo o meu.

— Você quer me deixar por... isso? Pare com essa ilusão infantil, eles não são sua família. Você é órfã e sempre será. Nem mesmo seu pai quis você.

Ela o empurrou.

— Vá embora.

Os dedos dele agarraram sua nuca, puxando seu cabelo.

— Você vai aonde eu for, entendeu?

— Está me machucando!

— Então me obedeça!

Leonard a puxou pela estrada.

Há alguns quilômetros Seth e Quil faziam sua costumeira ronda entre Forks e La Push. Seth por algum motivo mudou seu caminho usual pela trilha e preferiu voltar ao território quileute pela estrada. Ele sentiu seu cheiro antes de ouvir a voz dela.

— Me larga, você não pode me obrigar.

— Claro que posso.

— Eu não te quero! Você me dá nojo!

Leonard soltou seu cabelo e desferiu um golpe em seu rosto, cortando seu lábio inferior. Ele quebrou seu joelho com um chute e a fez ficar em pé novamente, apertando seu braço.

— Você é minha.

Antes que Sophia pudesse feri-lo com seu dom Seth saiu do meio das árvores em um pulo e rosnou ameaçadoramente para o vampiro.

— Não! — disse ela parada entre eles. — Leonard, vá embora!

O vampiro se preparava para lutar, mas sua postura enrijeceu quando outro lobo parou atrás dele.

Rosnando gruturalmente, Seth fez menção de atacá-lo.

— Por favor, não faça isso — implorou Sophia. — Ele estava de saída — terminou firme encarando-o.

Leonard analisou as possibilidades: poderia enfrentar um lobo, mas dois não. Eles haviam ganhado dessa vez.

— Não me procure mais Leonard — sua ameaça era ao mesmo tempo uma súplica.

O ódio incendiou suas veias, Leonard soltou seu baço e ela caiu no chão.

— Você vai se arrepender Sophia, eu vou acabar com você.

.

Ela gemeu quando Seth colocou seu joelho no lugar.

— Me desculpe, eu sinto muito — disse sem saber o que fazer.

— Obrigada — Sophia agradeceu ofegante mexendo a perna.

Ele lhe deu alguns minutos ansiando poder tomar a dor para si, a encarava com a expressão preocupada, o corpo ainda tencionado e as mãos tremendo de raiva. Ela sorriu para tranquilizá-lo.

— Está tentando me seduzir com esse abdômen?

Ele enrubesceu e colocou a camisa.

— Desculpe.

— Ah... — lamentou. — Estava funcionando.

Ele sorriu iludido.

— Quer uma carona para casa? — perguntou com os braços estendidos, mas antes que ela pudesse recusar ele a segurou e a levou de volta para o carro. — E então... com essa incrível demonstração você vai finalmente deixar de resistir ao meu charme?

Sophia riu.

— Como poderia resistir? Você é meu herói.

— Acho bom — afirmou com uma careta.

Mas seu sorriso brilhante logo se desfez e ele a encarou com toda a seriedade do mundo.

— Eu nunca vou permitir que nada de mal te aconteça. Ninguém vai te machucar de novo, eu juro pela minha vida. Se você permitir, eu te seguirei para qualquer lugar.

Sophia fechou os olhos e se inclinou para encostar a cabeça em seu ombro, respirando perto de seu pescoço. O cheiro dele a fazia se sentir inquieta e calma ao mesmo tempo; ela sabia que estava em casa.

— Você não sabe no que está se metendo.

Ele beijou sua cabeça acariciando seus cabelos.

— Não me importo. Já sou seu.

Oito anos depois

Uma série interminável de sacos e lixo, horas a fio e Seth ainda não conseguia ver o chão de seu quarto.

Quando percebeu que seguia os passos de Jacob em direção a uma overdose memorável, Seth decidiu colocar sua vida de volta nos trilhos.

Estava ajudando o cunhado na quimioterapia de todas as formas que conseguia pensar, abraçava Leah muito forte quando ela se afastava do marido e parava de agir como quem realmente acredita que está tudo bem. Naqueles momentos via de perto todo o desespero de ter que assistir seu amor sofrendo, sendo arrastado para longe de você e não poder fazer absolutamente nada a respeito.

Sophia ao menos havia escolhido ir embora.

Seth jogou os restos do que costumava ser a escrivaninha no saco. A situação de seu quarto estava muito pior do que ele se lembrava.

Uma bola de papel amassada e suja chamou sua atenção. Ele não queria reviver nenhuma lembrança, apenas pegava o lixo e jogava no saco, mas o impulso foi tão forte que ele sequer pensou a respeito.

Era a letra de Sophia.

Querido Seth,

Você se lembra do dia em me pediu em casamento? Depois de não, você se lembra do que eu disse? Eu sempre soube que jamais poderia ser sua.

Tenho que ir embora agora. Desculpe. Aro nunca me deixará em paz e não posso te fazer viver assim, com essa insegurança. Ter que ir agora é como ser obrigada a despertar de um lindo sonho bom, mas não poderia permitir que alguém corresse perigo por mim. Não posso tolerar a ideia de que você se machuque.

Você me deu tudo o que mesmo sem saber sempre quis e procurei, me mostrou o que realmente é amar e se tornou tudo para mim, o que eu mais quero e mais preciso.

Eu te amo! Jamais se esqueça disso.

E por favor, me perdoe. Tente entender, eu não tenho escolha, por isso te imploro: não faça nenhuma besteira! Não ouse vir atrás de mim e não se desespere. Se um dia isso acabar, espero poder vol

Logo que puder voltarei.

Da eternamente sua,

Sophia

Seth tremia tanto que mal conseguiu ficar em pé quando a campainha tocou.

Ele desceu as escadas com o papel na mão, confuso demais para entender o que aquilo significava. Haviam dois homens engravatados em sua porta.

— O senhor é Seth Clearwater? — O mais alto falou.

— Sim.

— Boa tarde, eu sou Hank Fuller, CEO da Adália’s e este é Taylor Cavil, advogado da companhia. Estamos aqui porque não conseguimos contatá-lo de nenhuma outra forma. Lamentamos imensamente sua perda, senhor, é uma pena que um acidente tão terrível tenha levado uma pessoa tão jovem. A senhora Clearwater foi uma mulher extraordinária.

Seth tentava desesperadamente processar aquela informação, mas estava lento. Taylor, um homem de quarenta anos no máximo tomou fôlego para continuar.

— Mas na verdade estamos aqui para falar do futuro da Adália’s Corporation.

Seth respirou profundamente.

— Futuro?

Taylor sorriu complacente.

— Sou responsável pelo testamento de sua esposa, e venho dizer que você é o único herdeiro e sócio majoritário da Adália’s.

Seth repetia as palavras testamento e herdeiro em sua mente. Aquilo não fazia o menor sentido.

— Ela anexou este envelope ao testamento pouco antes de falecer — continuou Hank entregando-o a Seth. — Parece ter sido de alguma forma violado?

— Não — respondeu aturdido.

— Ótimo. Solicitamos sua presença na cede da empresa em Seattle na próxima segunda-feira para que o senhor assine a papelada necessária.

Seth balançou a cabeça de cima para baixo. Não conseguia mais ouvir nada do que eles diziam.

— Foi um prazer conhecê-lo senhor Clearwater — disse Taylor se afastando.

— Nos vemos na segunda — lembrou Hank.

.

***

[1] Citação de A garota dos pés de vidro de Ali Shaw.

Acesse o site e saiba mais!

Cuta a página do Face! 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Er... Comentários?!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Utopia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.