Utopia escrita por Renata Salles


Capítulo 19
Respiro


Notas iniciais do capítulo

"Esse sentimento está subindo, erguendo-se sobre mim, e essa canção é cantada, cante-a para mim! Ela é sobre tudo, sobre como eu costumava ser; lenta e doce, ela cuida de mim até o mar e me encaminha para o fundo. E me conforta."



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Outono...

 

O verão abriu suas asas, voando para a sombria terra do passado, e antes que eu pudesse perceber estava me despedindo da Grécia e de minha melhor amiga.

Deixar Sophia para trás era como abandonar parte de mim — nunca estivemos mais próximas e unidas —, e pela primeira vez pude entender Eric completamente. Durante três meses nos deixaram acreditar que éramos livres e desimpedidos, e agora que o tempo acabou nos arrastavam de volta pelas correntes da dura realidade.

Não era justo.

Contudo, devo admitir que me sentia feliz por estar em casa.

Aro fez questão de nos recepcionar pessoalmente, discursando brevemente sobre como fizemos falta e o quão prazeroso era nosso retorno. Em seguida ofereceu seu braço para mim, enquanto Eric deveria visitá-lo mais tarde no Palazzo dei Priori.

Passeamos pelos jardins frontais do castelo, o líder e eu, avaliando sua beleza e impecável.

— A senhorita deve estar exausta da viagem — disse Aro gentilmente.

— De forma alguma. É bom estar de volta — admiti.

Aro me encarou com um sorriso.

— Ainda assim serei breve, não quero tomar muito de seu tempo.

— O senhor pode tomar o tempo que lhe convir...

— Agradeço a consideração, cara mia. Vejo que este passeio lhe fez muito bem.

— Sim, foi maravilhoso. Obrigada.

Ele acenou com a cabeça, mas estava distante.

— Algum problema?

Aro me encarou por um minuto com uma seriedade sombria, sua pele pareceu adquirir um tom acinzentado.

— Posso lhe fazer uma pergunta, senhorita?

— Claro.

— O que mais gosta em Volterra?

Respirei profundamente, eu não precisava pensar.

— Dos jardins.

Aro sorriu.

— Alec realmente faz um trabalho magnífico com eles.

— Sim... são maravilhosos. Mas por que a pergunta?

Aro encarou a paisagem em um silêncio pesaroso. Uma brisa nos atingiu gentilmente.

Ele me encarou.

— Não é por acaso que estamos aqui, você deve saber. Nós lutamos muito para garantir o estilo de vida e a liberdade de nossa espécie; alguns de nós perdemos mais do que poderíamos suportar, mas nos apoiamos em um ideal, em uma causa mais forte que o poder por si só, ao contrário do que muitos pensam. Tivemos uma série de motivos durante os séculos para acreditamos que não pode haver nada além do mais completo caos, se não houver regras a serem seguidas, e que não há regras se não houver punições. — Suspirou. — Nem sempre isso é fácil. Como líder, honestamente não me orgulho de uma série de escolhas e decisões difíceis que tive que tomar, mas cada uma delas foi necessária para garantir nossa sobrevivência. — Ele encarou um ponto inexistente e apertou meu ombro com gentileza. — Talvez seja difícil para você entender. Você não é como nós.

— Não, não sou, mas entendo perfeitamente. Nem sempre a decisão mais conveniente é de fato a melhor, muitas vezes a benevolência pode ser confundida com fraqueza.

Ele sorriu e algo faiscou em seus olhos.

— Ainda não tive a oportunidade de dizer o quanto a admiro, senhorita. Você travou batalhas difíceis, nenhuma dor ou perda deve ser subestimada, e, no entanto, você está aqui: forte. Viva. É um exemplo que muito me orgulho.

Minhas bochechas coraram, tentei disfarçar com um sorriso.

— É muito lisonjeiro.

— Não seja tão modesta. Você é mais poderosa do que imagina.

Sorri.

— Obrigada.

— Como se sente em Volterra? Desde que chegou me preocupo seriamente com seu bem estar.

— Me sinto... em casa. — Estranhei rastrear um sentimento tão complexo e encaixá-lo em quatro palavras. Quatro simples palavras que de diversas formas criavam um paradoxo enorme entre quem sou e quem costumava ser. — Agradeço sinceramente tudo que tem feito por mim, mas temo abusar de sua hospitalidade, pois não tenho nada a oferecer ao senhor.

Aro parou a minha frente.

— Serei direto: eu gosto de você, Renesmee. Gosto de sua perspicácia, do seu dom e de sua companhia. Devo dizer, e lamento se estiver sendo invasivo, mas ainda que lealdade a um clã não seja como as raízes criadas em uma família, curiosamente esses caminhos se cruzam muitas vezes. Você pode se tornar uma de nós, se desejar.

Minha garganta secou, o ar era uma faca fria me rasgando por dentro.

— Seria um prazer servi-lo, senhor, mas não consigo imaginar de que forma poderia ser útil.

— Também não sei bem, apenas não quero perde-la, ainda mais agora. Perdoe este velho sentimental.

Encarei-o em dúvida.

— Há algo que eu deveria saber?

Ele riu.

— Novamente sua perspicácia me orgulha, minha jovem.

Incentivei-o a continuar com um aceno de cabeça, ele se aproximou e quando voltou a falar, as palavras eram apenas um sussurro.

— E se eu dissesse que existem vampiros querendo ameaçar tudo pelo que lutamos? Tudo que construímos ao longo de séculos zelando pela paz entre vampiros, nos protegendo e garantindo a ignorância dos humanos?

— Uma ameaça aos Volturi? — ri. — Isso é ridículo!

Mas a seriedade na expressão do líder não vacilou. Meu sorriso desapareceu.

— O que?

 

Jacob se encolheu na cama, não conseguia se livrar da lembrança da garota. Ela era tão jovem! Havia tanto sangue...

Jasper Cullen, seu advogado, trabalhou toda a defesa no argumento de que Angie Jones correu para a estrada de repente, e que divido à escuridão Jacob não conseguira vê-la; argumento que serviu para trazer à tona as agressões que a garota vinha sofrido de seu namorado. No fim, com Jasper manipulando a compaixão do júri apesar dos protestos de Jacob, Richard Young foi acusado por agressão, tendo que prestar serviço comunitário por um ano, além de passar por acompanhamento psicológico, e o Alfa acabou sendo absolvido da acusação de homicídio doloso. Para o júri o acidente foi apenas um infortúnio e Jacob era inocente.

Mais uma onda de espasmos, a queimação no estômago...

Jacob correu para o banheiro e começou a esfregar as mãos compulsivamente, queria tirar dali o sangue que já não existia, queria se livrar daquele vermelho espeço, queria poder arrancar aquela noite de sua mente. Ele esfregou e se arranhou, arrancou um pedaço da pele, mas tudo que conseguia ver era a garota de cabelos castanhos jogada na estrada com os olhos abertos e sem vida, ainda podia ouvir os gritos de sua mãe durante o enterro. “Meu bebê, mataram meu bebê”, ela dizia.

Jacob encarou seu reflexo no espelho. Não se conhecia mais.

 

Caminhava para o Jardim do Ocaso convicta a apreciar a beleza do meu jardim, do segredo que de alguma forma também me pertencia. Estava incomodada por Alec não ter vindo me dar boas vindas, depois de tanto tempo o mínimo que se espera da boa educação é um sorriso, um aceno de cabeça, um “como foi a viagem?”, mas ele sequer apareceu.

Eu estava pedindo demais? Qual era o problema em esperar o mínimo de gentileza?

E no caminho dei as costas ao que estava bem a minha frente: eu queria vê-lo. A expectativa fazia meu estômago embrulhar de excitação e de raiva. Senti falta de sua indiferença superior, e isso me assustava.

Traída pela desatenção, parei assim que o vi.

Era um homem alto, com um casaco longo e chapéu de detetive sentado em um banco perto da entrada do jardim. Ninguém vem para esse lado do castelo, acreditam que não há nada aqui.

Quando me aproximei o suficiente ele ergueu o rosto. Tinha sobrancelhas grossas e cabelo grisalho, olhos pequenos e um físico forte; a aparência de sua pele e o filme leitoso sobre os olhos indicavam que era um vampiro muito, muito antigo.

Ele olhou para o relógio em seu pulso e sorriu, aprovando.

— Bem na hora, senhorita Cullen. Adoro pessoas pontuais. — Encarei-o em dúvida. — Oh, venha, não seja tímida! Não temos muito tempo. Sente-se ao meu lado, vamos conversar.

Franzi o cenho, eu nunca o havia visto.

— É novo aqui?

Ele riu melodiosamente.

— Já se comporta como um deles. — Ignorei-o. Ele me encarou por um minuto e então continuou. — Estou de passagem, não se preocupe. Vim apenas fazer-lhe uma visita.

Os pelos de minha nuca eriçaram.

— Eu o conheço?

— Não... Mas eu sei tudo sobre você.

Encarei-o friamente, analisando as possibilidades de uma fuga. Havia uma malícia ácida em seus olhos.

O vampiro inclinou o corpo em minha direção. 

— Você acredita em destino, senhorita?

Um alarme disparou em minha mente. Não podia ser verdade. Ele se recostou novamente.

— Pois deve... O destino nunca se esquece de você.

— Selas.

— Bravo!

— Você devia estar morto.

Em um instante o sorriso e a malícia em seu rosto deram lugar a uma escuridão insana. Ele se levantou em um instante e me agarrou pelo braço, me pressionando contra uma árvore.

Estava atordoada, ele segurava meu braço com força.

— Você sabe quem eu sou e qual é meu dom. Agora faça a pergunta certa: o que estou fazendo aqui. — Silêncio. Ele apertou com mais força. — Pergunte!

— O que está fazendo aqui? — perguntei entredentes.

— Vim lhe dar um aviso, como um velho amigo. — Ele sorriu, mas a loucura em seus olhos não vacilou.

— O que você sabe sobre qualquer sentimento? Abandonou a própria filha! Deixou-a sentir culpa por sua morte durante séculos!

Ele me prensou contra a árvore com violência, minha cabeça bateu no tronco em um baque surdo.

— Você não sabe nada sobre mim, menina tola — rosnou. — Se soubesse o que está aqui... — apontou para a própria cabeça. — Você vai estragar tudo, sabe.

— O que?

Ele afrouxou meu braço, mas os olhos mantinham a intensidade, sua respiração estava entrecortada.

— Tenha cuidado ao tomar decisões, suas escolhas não afetam apenas você. Muita gente vai se ferir.

— O que quer dizer?

Seus olhos rubros em um instante se tornaram vítreos, os dedos tocavam meu rosto compulsivamente.

— Escolha ou Destino são suas opções. Quem sobrevive, quem cai, depende de você. Não há muito tempo. Decida!

— Está louco! — tentei me desvencilhar.

Sua expressão passou de violenta para confusa em um instante, e então foi tomada por uma tristeza sem fim.

— Desculpe. — Sussurrou sem fôlego. Ele se encolheu e caminhou de volta para o banco. — Às vezes é difícil controlar. Não queria assustá-la.

— O que há com você? — Perguntei incapaz de me mover.

Ele encarava um ponto fixo.

— O Destino é como uma corda: — fez menção de tocá-la no ar — se você puxá-la ela cria ondulações e ruídos incontroláveis. Consequências... — Pousou a mão sobre o colo. — Uma vez tomei a decisão errada. Eu sabia o que aconteceria e mesmo assim tentei mudar o Destino. Bem, ele não pode ser vencido ou enganado, e o castigo agora não se aplica apenas a mim.

Mantive uma distância segura.

— Que castigo?

— Há muitos anos havia uma humana que escolhi não matar, apesar de saber que ser morta era seu destino, então nasceu uma criança amaldiçoada, a primeira, minha Sophia. Era meu destino observar sua destruição, mas havia raiva demais em mim e minha inércia a lançou nas garras de um mau muito maior e mais impiedoso, com muito mais dor e sofrimento. Agora o fim está próximo e não há nada que eu possa fazer. — Ele suspirou. — Se há algo em comum entre nós Renesmee, é que ambos fomos destinados a sermos a destruição de quem mais amamos, e quando começar seremos obrigados a assistir. Eu e você.

Estava assustada, meu coração era um pássaro enjaulado.

— Você é completamente louco.

Ele se levantou e colocou o chapéu.

— Em breve entenderá. Apenas olhe para além de si mesma.

 

Leah inspirou profundamente o odor característico, ainda estava envergonhada, mas precisava dos dotes culinários de sua prima como que para sobreviver. Havia sonhado com os muffins de baunilha há semanas, chegando ao ponto de não conseguir comer qualquer outra coisa; nenhum prato atraía sua atenção e quando insistia em comer, seu corpo rejeitava tudo. Então Lúcio finalmente a convenceu a engolir seu orgulho e medo, e entrar em contato com a prima, quebrando qualquer argumento da esposa ao convocar a presença de Charlie, Billy e Seth para assistir a um jogo de basquete. — A relação entre Leah e Emily estava melhorando depois do imprinting de Leah, ao menos depois disso elas voltaram a trocar cumprimentos e meia dúzia de palavras.

Algumas cicatrizes são difíceis de serem ignoradas.

Emily suspirou, estava ansiosa e feliz com a promessa silenciosa de uma reconciliação, mas também sem jeito.

— Como está Lúcio? — perguntou Emily.

— Melhor, os remédios o estabilizaram... Vamos ficar bem.

Emily sorriu, a cicatriz se enrugando no canto do olho.

— Vão sim.

Silêncio.

— E o Daniel?

— Está ótimo. Todo animado com a escolinha!

Leah sorriu.

— Crianças...

— É...

Emily desviou o olhar para os muffins restantes. Havia um espaço entre elas que ambas queriam preencher, mas não sabiam como.

— Você sabe algo sobre Jacob? — tentou Leah. — Soube que está com problemas.

— Depois da morte de Renesmee ele inteiro é um problema, parece que morreu também — Emily suspirou. — Estamos sendo pacientes, mas a matilha precisa de um líder, e no momento não sabemos se ele pode fazer isso.

— Ele é o Alfa por linhagem — respondeu cética. O concelho não podia estar considerando tirar a matilha de Jacob; é tudo que havia restado a ele.

— Mas ele não é o único com o sangue dos Black.

— Rachel é a sucessora de Billy no concelho, mas não tem autoridade para tirar de Jacob a posição de Alfa. E... pelo amor de Deus, ela é irmã dele!

— A menos que essa seja a decisão de todo o concelho.

— Ainda assim precisariam do apoio da matilha.

Emily hesitou.

— Ninguém quer destituí-lo Leah, apenas precisamos analisar todas as opções.

— Então é uma opção.

— A última opção.

Encararam-se.

Leah pegou mais um bolinho.

A tensão da conversa a havia deixado enjoada. Por fim Leah correu para o banheiro. Emily ficou calada ao seu lado até acabar, alisando suas costas, segurando seu cabelo.

Leah limpou a boca.

— Obrigada.

Ela se levantou e foi a pia lavar o rosto, tentando ignorar a expressão curiosa e pensativa da prima refletida pelo espelho.

— Você tem se alimentado direito?

— Sim. Na medida do possível.

— Por quê?

— Meu estômago anda... estranho.

Os olhos de Emily arregalaram.

— Leah — respirou profundamente, tomando coragem para continuar —, você já pensou em fazer um teste de gravidez?

.

Bella hesitou antes de abrir a porta do carro. Edward riu.

— Não vai dizer que está com medo deles!

Ela o encarou. O ano letivo havia começado há meses, em uma transferência mágica de ultima hora ela seria mais uma vez a garota nova, uma aberração invadindo um reino onde seus habitantes engatinharam juntos. Nunca se acostumaria.

— Não... — tentou disfarçar mordendo o lábio.

— Bella — Edward beijou sua mão —, estou com você amor.

Ela suspirou.

— Você tem razão, isso é ridículo — encarou os novos colegas atravessando o estacionamento. A não ser pelo fato de a escola parecer um cubo de gelo, era suficientemente similar a sua antiga escola em Forks, só que menor. — São só... humanos.

Edward sorriu compreensivo.

— Em algumas semanas eles mal vão notá-la.

— Que reconfortante! — Bella respondeu com uma careta e respirou profundamente antes de deixar o veículo.

Dessa vez seu casaco simples foi menos eficaz e os olhares se voltaram para ela quase imediatamente — porque era a novata, ou por estar com os dedos entrelaçados aos de Edward Cullen.

Rosalie e Emmett decidiram não estudar esse ano, e moravam sozinhos em um chalé perfeitamente isolado e próximo a casa dos Cullen, o que de modo geral facilitou a mentira: eles eram felizes recém-casados e, para todos os efeitos, haviam se formado no ano anterior. Agora Jasper e Rosalie eram irmãos de Carlisle, e Bella e Alice eram irmãs adotadas pelo bondoso Dr. Carlisle e pela esposa quando seus pais, amigos muito próximos do médico, morreram tragicamente nos atentados de 11 de Setembro. Ninguém se orgulha dessa parte, mas ter uma família tão grande de vampiros exige ser um tanto oportunista.

Bella adentrou a sala de aula e deixou o casaco pesado na longa fileira de ganchos no fundo da sala, entregou a caderneta ao professor e se sentou na ultima fileira. Teria quase todas as aulas com Edward, mas exatamente a primeira era uma das que ele não se sentaria ao seu lado.

Suspirou, tentando ignorar os olhares curiosos e cochichos que podia ouvir perfeitamente. Alguns humanos insistiram em se apresentar, embora ela mantivesse uma expressão antipática como orientado, mas logo desistiam, como haviam desistido de se aproximar de todos os outros Cullen.

Fora o incomodo e a vontade de ser invisível, tudo transcorreu muito bem. No almoço Bella encontrou seus irmãos na mesa mais isolada do refeitório e não pode conter um sorriso satisfeito, lembrando-se da primeira vez que viu os misteriosos Cullen no refeitório do colégio de Forks, do espanto e da curiosidade diante de seres que pareciam tão perfeitos e intocáveis, lembrou-se Jessica descrevendo-os.

E pela primeira vez ela se permitiu gostar dos olhares admirados, da atenção que se desviava com tanto esforço.

Bella agora era uma deles.

.

Eric se deteve ao passar pelo ateliê.

Jane estava com um avental preto protegendo o vestido caramelo, o cabelo preso em uma trança e as mãos sujas de tinta. Estava calma, serena, concentrada em sua obra ao som de Il Divo.

O tempo pareceu congelar naquele momento.

Longos minutos passaram e ele não pôde se mover, tampouco foi notado. Ela misturava a tinta com cuidado, acariciando a tela gentilmente com o pincel. Eric não conseguia tirar os olhos dela. Queria poder se aproximar, desejava tocar sua pele com a ponta dos dedos, senti-la, precisava dela mais que qualquer coisa. Poderia morrer para tocá-la mais uma vez.

Eric percebeu tarde demais que o desejo moveu seus pés. Ela parou por um instante, e se virou.

— O que está fazendo aqui?

Parecia surpresa, desprevenida, até envergonhada, mas não suficientemente zangada. Ele hesitou, desviando o olhar para a pintura: era o retrato de um casal jovem, amantes desesperados em um campo aberto durante o pôr-do-sol. Ele a segurava em seus braços enquanto os joelhos dela cediam. Ao fundo, uma vila amaldiçoada sedenta por sangue.

Mas o que fez seus olhos lacrimejarem não foi a luz, ou a beleza trágica da obra, e sim a lembrança fria e amarga.

Aquele foi o momento em que Eric a abandonou, depois de Leonard convencer sua mãe a partir, horas antes de Jane e Alec serem capturados pelos camponeses. O último pôr-do-sol que ela viu em sua vida.

— Jane — começou.

— Você não estava lá. — Interrompeu. Havia muita dor, muito ressentimento em sua voz.

— Eu voltei por você. — Lágrimas acariciavam o rosto dele.

— Tarde demais.

Eric tentou dar um passo, mas ela se afastou.

— Eu sinto muito.

Jane o encarou com frieza.

— Não importa mais.

Havia um pote aberto sobre a mesa. Jane jogou a tinta sobre a pintura.

— Não volte mais aqui — rosnou antes de sair.

.

Carlisle guardou os exames em sua pasta.

— Precisamos controlar essa infecção Billy, você pode me fazer o favor de maneirar na gordura?

— Não basta a diabetes, agora quer me tirar a batata frita doutor?

— Você não me deixa escolha.

Billy fez uma careta.

Carlisle hesitou, então se sentou no sofá a sua frente. Estava sério.

— Como Jacob está?

Billy suspirou.

— Péssimo. Não come, não dorme e não aceita visitas. Parecia estar melhorando, tentando pelo menos, então o acidente... Era só uma menina doutor, meu filho nunca irá se perdoar.

— Entendo...

Carlisle preparou uma receita.

— São antidepressivos. Não tenho certeza se essa dose será suficiente, mas é um começo. Tente convencê-lo tomar ou pelo menos me deixar avaliá-lo.

— Sim doutor — Billy e Carlisle apertaram as mãos. — Obrigada.

— Eu sinto muito — disse o médico. — Ele é um bom garoto.

— Todos sentimos.

 

Adentrei o salão principal do Palazzo Dei Priori escoltada por Chelsea, que se manteve em silêncio absoluto durante todo o percurso entre os castelos. Os guardas locais pareciam agitados, o que era perfeitamente aceitável depois de tudo que Aro me contou.

Um levante contra os Volturi era idiotice. O mais oculto pensamento de enfrentar a guarda era como ativar uma granada e segurá-la firmemente em suas próprias mãos.

E ainda assim fazia todo sentido.

Vampiros são egocêntricos e odeiam seguir ordens, e a postura superior dos Volturi os faz parecer uma ameaça a sua liberdade e superioridade. Além disso, os tempos mudaram e os líderes seguem mantendo tradições que não funcionam mais, o que os fazem parecer simplesmente ditadores em busca do poder absoluto, quando eles apenas tem completa consciência de que vampiros precisam de limites para que seja mantida a paz mundial. Simples assim.

Há um ano eu pensava como eles, os rebeldes, e só pude ver o lado dos Volturi quando passei a conviver com eles. Aro está tentando reparar a imagem do clã reabrindo os portões do castelo durante verão, recebendo visitas com mais frequência, mas temo que não seja suficiente.

Não nego que haja certo abuso de poder para o recrutamento de vampiros talentosos, mas não vejo problema em os Volturi serem o clã mais poderoso, contanto que sejam justos e éticos.

Acima de tudo, lamento minha participação na deterioração de sua imagem.

Aro assumiu seu erro: se tivesse apenas convocado minha família e montado um tribunal, esta não precisaria reunir desesperadamente testemunhas que garantissem meu desenvolvimento como mestiça, ao invés de ser uma criança imortal como Irina Denali havia me acusado. Desse modo, além de o encontro ser mais justo, envolveria uma quantidade menor de vampiros, e a imagem dos Volturi estaria intacta.

Era tudo minha culpa, eu sabia. Aquele encontro foi a oportunidade que todos esperavam para se revoltarem contra o poder dos Volturi. Minha obrigação agora é tentar reparar os enganos e separar o grupo que pretende enfrenta-los, eliminar os revoltosos se necessário e impedir a guerra. É sobre isso que Selas estava falando e eu provarei que ele está errado. Eu sou dona do meu destino.

Caius, Aro e Marcus, respectivamente, ocupavam seus tronos. Eric estava de pé ao lado de Marcus enquanto Jane e Alec paravam da mesma forma ao lado de Caius, na outra extremidade.

Alec me encarou sem expressão, desviei o olhar.

Em frente aos tronos havia um vampiro ajoelhado, vigiado por Felix e Demetri, posicionados um de cada lado do detento.

— Oh, aí está você! — disse Aro com uma calma perturbadora, se levantando.

— Vim o mais rápido que pude, senhor.

Aro sorriu.

— Estive pensando no que conversamos esta manhã, senhorita, mas receio que nossas escolhas possam ser afetadas pelas circunstâncias. — Um alarme disparou em minha cabeça com a consciência de onde as “circunstâncias” me levariam. — Portanto, peço um parecer sincero.

É isso, chegou o momento que eu aguardava. Meu teste afinal seria demonstrar minha lealdade aos Volturi julgando aquele vampiro. Eu não podia falhar.

Engoli seco, meus olhos procuraram amparo nos de Eric. Ele acenou com a cabeça.

— Qual é a acusação?

— Traição — rosnou Caius.

— Abuso de nossa hospitalidade — concluiu Aro de forma mais gentil. — É um membro do grupo de visitantes do verão, capturado em contato com membros da resistência. Ele os informava a respeito do sistema de segurança do Palazzo. Receio que pretendiam ataca-lo.

Meu coração perdeu uma batida. Não imaginava que a situação estivesse tão séria.

— Era essa a intenção? — perguntei.

Aro esticou a mão para que me posicionasse ao seu lado, frente ao criminoso.

— Responda! — ordenou Caius.

O homem de pele azeitonada ergueu a cabeça para me encarar e o ar foi tirado de meus pulmões como se eu tivesse levado um soco.

— Amun — sussurrei com um fio de voz.

Ele riu histericamente.

— Veja só... — balançou a cabeça de um lado para outro. — A preciosa garotinha dos Cullen.

— Vejo que não precisarei apresentá-los — disse Aro.

— O que você fez? — perguntei.

— O que você fez! Pensei que estivesse morta.

— Isso não é sobre mim!

Um rosnado ressoou por entre os dentes do egípcio.

— Quantos de nós arriscamos a vida por você e agora se junta a eles! — Amun tentou se levantar e Jane usou seus poderes para mantê-lo no chão.

— Você não estava lá! Foi embora como um covarde! — gritei. — Não sabe o que está dizendo.

— Eu não sei? Pois parece estar do lado deles agora.

Estava trêmula, a paciência escorrendo para longe de mim.

Marcus suspirou.

— Acabem logo com isso.

— Você não está em posição de manifestar opiniões, Amun — comecei. — Por sua amizade com Carlisle perguntarei mais uma vez: era sua intenção nos espionar?

— Então é realmente uma deles! Traidora! — rosnou. — A pergunta é: os Cullen dizem que está morta por que é o que acreditam, ou por que é o que desejam?

Um rosnado soou por entre meus dentes.

— Basta! — gritou Caius.

Aro me encarou com expectativa.

— Querida, acho que isso foi um sim.

Encarei Amun por um longo minuto e em um impulso rápido, pousei as mãos em sua cabeça, girando seu rosto para traz, usando os dentes para romper a pele do pescoço. Ele passou os braços ao redor de minha cintura, apertando-a.

Demetri fez menção de me ajudar, mas parou talvez por uma ordem. Amun não tinha chance. Antes que pudesse quebrar algum osso eu havia arrancado sua cabeça, jogando-a no chão como se fosse uma bola.

Caminhei em silêncio em direção à porta. Parei.

— Esta manhã o senhor afirmou suspeitar sobre quem são os líderes da resistência...

— Uma suspeita apenas. — Aro me encarava com uma expressão orgulhosa. — De qualquer forma, se não são os líderes ao menos possuem certo grau de envolvimento.

— Você tem certeza?

— Sim — respondeu com expectativa.

Fitei o corpo no chão.

— Envie a cabeça.

Caius sorriu para mim com os olhos faiscando.

Encarei o reflexo do meu rosto inchado, ainda sentia o peso da cabeça inerte em minha mão, mas ao mesmo tempo não me sentia culpada. Amun procurou seu fim, eu não tive escolha.

Dois toques na porta.

— Pode entrar — disse voltando ao quarto.

Alec entrou pela porta que levava diretamente ao seu aposento com a frieza usual, mas havia algo diferente em seu olhar. Respirei profundamente e meu coração pareceu bater mais devagar. Estava sem qualquer defesa.

— A senhorita foi muito bem hoje. — Era incrível como mesmo quando tentava fazer um elogio ele conseguia ser arrogante.

Sorri.

Ficamos em silêncio por um minuto.

— Posso lhe fazer uma pergunta?

Respirei profundamente antes de responder.

— Claro.

— Sente falta de casa?

— Eu estou em casa.

Seu rosto se esticou em um leve sorriso. Alec indicou o caminho até a varanda.

O céu estava limpo e cheio de estrelas, o vento suave tinha gosto de perdão. Parecia não poder haver nada de mal no mundo.

Fechei os olhos.

— Por que demorou tanto? — perguntei com um sussurro.

Ele seguiu me encarando em silêncio e, por um instante, senti que Alec também tinha abaixado as armas. Havia um pequeno embrulho em sua mão, uma caixinha azul de veludo com fitas douradas.

— Feliz aniversário.

Levei um minuto para entender o que aquilo significava. Nem mesmo eu havia lembrado, datas comemorativas tradicionais não tinham significado agora. Peguei o presente um pouco desnorteada.

— Obrigada — disse sem jeito.

Ele acenou com a cabeça.

Desfiz o embrulho delicado e o ar foi sugado para fora de mim.

Era um par de asas de ouro que se fechava ao redor do pescoço. O cordão era como um fino caule de flor entrelaçado, repleto de espinhos.

— Isso é... — Não conseguia encontrar uma palavra.

Ergui os olhos para encontrar os dele. Sem pensar, meus braços rodearam seu pescoço.

Ele hesitou antes de pousar as mãos delicadamente em minha cintura, e ali em seu abraço frio, fui arrebatada por uma onda de sentimentos bons e ruins que não conseguia entender, apenas sentia uma necessidade estranha de me afogar em seus braços, de fugir.

Após longos minutos nos soltamos.

Encarei-o. Não sabia o que dizer.

— Tenha uma boa noite, senhorita — disse com um aceno.

Hesitei.

Antes que eu pudesse responder ou pedir para que ficasse, Alec se retirou.


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Notas finais do capítulo

Então né...

Me conte o que achou!



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