Utopia escrita por Renata Salles


Capítulo 18
Inesperado


Notas iniciais do capítulo

"Eu sinto sua obscenidade em meus ossos, lavarei minhas mãos até isso sair. As paredes estão se fechando com cortinas de veludo..."



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Verão...

Me afundei em uma poltrona perto da lareira. O fogo não crepitava ao meu lado como um dia havia feito, não era necessário. A luz que invadia o cômodo anunciava mais um dia belo e quente.

Me sentia confortável.

Conhecia todos os guardas que residiam no castelo e aos poucos me inclui em suas atividades. Para a minha surpresa era agradável me reunir com Chelsea, Corin e Demetri na sala de tevê e discutir assuntos diversos; divertido assistir Eric e Felix disputando qualquer coisa na sala de jogos, e o quão enriquecedor era mergulhar nas profundas reflexões de Afton. Jane e Alec dificilmente se misturavam, de forma que todos se comportavam descontraída e casualmente.

Ouvi dizer que ninguém é ruim o tempo todo. Nos últimos meses tive uma série de motivos para acreditar que é a mais pura verdade.

Descobri com alguma relutância que eu fazia parte daquele grupo singular, ou que ao menos queria fazer.

Levantei para fechar as cortinas e voltei ao meu lugar. A forte luz do Sol me fazia sentir cansada, vítima de intensas dores de cabeça. Afton me examinou e disse que é um mal chamado de enxaqueca, o mais novo presente da minha metade humana que tem se manifestado mais que o usual.

Eu poderia ter ficado sem essa, apenas.

Suspirei.

É engraçada essa coisa — tempo. Jake sempre reclamava que passava rápido demais quando estávamos juntos, e se arrastava quando não nos víamos. Eu costumava concordar com ele, mas agora me parece estranho o tempo, como se a contagem fosse diferente ou como se eu estivesse em outra dimensão. Os dias começam e terminam em um ciclo infinito, o tempo corre em direção ao ocaso como a água que desliza pelas pedras de uma cachoeira. Sereno e contínuo.

Passei a maior parte do último verão com Jacob na praia fazendo das ondas um divertido campo de batalha, e, no entanto, agora parece que isso foi há séculos — aquela garota sorridente e despreocupada não era eu.

Uma visão transparente colocou Jacob sentado na poltrona a minha frente. Não era uma lembrança, mas uma imagem manipulada em três dimensões — o que eu vinha trabalhando com Aro. Com intenso e constante treinamento minhas visões se tornavam cada vez mais convincentes, e eu começava a entender como manter o controle sobre elas, sobre sua capacidade de convencer até mesmo a mim de sua veracidade irrefutável.

Inclinei-me para encará-lo. Algo estava diferente.

Jacob se acomodou na poltrona.

— Eterna rata de biblioteca, hã.

— Algumas coisas não mudam.

Ele riu irônico, então me encarou fixamente.

— Sério que você gosta desse lugar, Nessie?

— Renesmee — corrigi.

Jacob franziu os lábios.

— Olhe para isso! — Levantou gesticulando. Observei-o olhar pela janela. — Parece um mausoléu.

Eu sabia que era errado, mas invocava sua imagem com alguma frequência. Precisava vê-lo, principalmente depois de descobrir que podia conversar com ele.

— Só não faz seu tipo — disse com um sorriso.

Jacob me encarou seriamente.

— Desde quando faz o seu?

Desviei o olhar para o tapete.

— Não pense que sabe tudo sobre mim — resmunguei.

— Como poderia? Só te conheço desde que nasceu...

Encarei-o séria. Uma série de respostas mal educadas passou por minha cabeça: de insultá-lo a lembrá-lo do caso que teve com minha mãe, pensei até em insultar sua moral, uma vez que teve um imprinting com um bebê, mas o silêncio foi certamente a melhor resposta.

Ele se ajoelhou a minha frente, segurando minhas mãos.

— O tempo está acabando, amor.

Quase pude sentir seu calor. Puxei a mão, me desvencilhando de seu toque.

— Tempo de quê Jacob? Você estragou tudo.

— E você me abandonou. Está me esquecendo... — disse com um tom de voz rouco e pesaroso.

— Por que você não consegue ficar quieto ao menos uma vez?

— O que? Você adora minha voz!

— Isso é você que está dizendo, querido.

Ele fez uma careta voltando para a poltrona a minha frente, mas não respondeu.

Analisei-o.

A calça de um jeans escuro havia sido um presente meu, as botas marrons combinavam com a camisa xadrez de uma forma que ele realmente usaria. A barba estava por fazer e o cabelo desgrenhado como da última vez em que o vi. Seu gestual parecia correto. Mas ainda assim...

Seus lábios se esticaram em um meio sorriso triste.

— Não consegue se lembrar, não é? — A decepção transparecia na escuridão de seus olhos. — Vou te dar uma dica: é no rosto.

Meus olhos o percorreram.

— Nessie! — chamou minha atenção. — Quando era pequena você me perguntou sobre isso. Alice me enchia o saco para eu deixar ela esconder com maquiagem, mas você me defendia, dizia que gostava assim, que isso mostrava o que é ser humano...

Então me lembrei.

Era uma pequena cicatriz na testa, uma lembrança deixada pela catapora em sua infância. Algo que seu poder de cura de transmorfo não se importou em concertar.

Pensei em todas as lembranças que vinha preenchido com detalhes falsos. Meu coração batia forte no peito reafirmando o eco de sua voz em minha mente.

Eu estava esquecendo.

— O que está lendo? — disse uma voz bem ao meu lado. Encarei Alec em um sobressalto. — Foi o que eu pensei — ironizou.

A visão desvaneceu com o susto. Alec sentou-se na poltrona em que eu colocara Jacob.

— Pensei que estivesse seguindo as regras.

— Eu... estou.

Alec não esboçou qualquer reação. Apenas abriu seu livro e começou a ler.

— Não conte isso a ele — minha voz soou mais desesperada do que eu pretendia.

Aro havia pedido para que eu evitasse manipular minhas lembranças sem sua presença, com medo de que eu me descontrolasse novamente.

— Não vou dizer. Mas não posso garantir que ele não venha a saber, você sabe, se me tocar.

Aquilo me surpreendeu.

— Obrigada.

Seus olhos não se desgrudaram do livro, mas os cantos de sua boca se esticaram levemente em um quase sorriso.

Voltei ao meu livro.

Não era o tipo de história que eu procurava ou costumava ler — um romance baseado e estabelecido nos palcos do nazismo, cheio de metáforas e dotado de críticas ácidas e de significado. Não sei porque nunca me ocorreu ler algo assim. Talvez por ter estado sempre tão afastada de humanos, talvez por nunca ter realmente acreditado que alguém poderia ser tão perverso ao ponto de torturar um semelhante, ao ponto de isolá-lo em um lugar tão macabro, com intenções tão brutais.

Afton acendeu uma chama em mim e agora eu estava obcecada com o nazismo.

Meu pai havia me instruído a respeito das guerras em minhas aulas de história, é claro, mas eu era jovem e leviana, queria apenas acabar logo para poder ver Jacob. Então cresci sentindo compaixão por humanos que acabavam se tornando alimento de vampiros, afinal, o que alguém poderia fazer para merecer um destino desses?

Afton fez questão de elucidar a dúvida, e o que começou com uma conversa inocente sobre preferências alimentares terminou com um vídeo terrível sobre o Holocausto, filmado por soldados dentro de um campo de concentração.

— Alec?

— Sim.

— Por que se alimenta de humanos?

— Para sobreviver — respondeu automaticamente.

— Sim, mas... Existe outra opção.

— Humanos também são animais senhorita, ainda que eles e alguns vampiros adorem ignorar.

Ponderei a respeito.

— Mas eles são seus semelhantes mais próximos.

— E por que isso deveria alterar meu julgamento?

— Por que... você nunca pensou que um humano tem compromissos, emprego e... e família, e...? — O absurdo da questão me fez gaguejar com uma argumentação tosca.

Alec finalmente fechou o livro e me encarou.

— Veja, a mim parece imoral atacar um animal que apenas segue seus instintos e não pode se defender, mas humanos... Humanos são conscientes de suas ações e decisões, são naturalmente maliciosos e estão em maior número. É ótimo não ter que se preocupar com extinção ou preservação do meio ambiente. — Havia uma intensidade em sua expressão que eu nunca havia visto antes, seus olhos rubros brilhavam de convicção. — Além disso, alguns precisam morrer para que outros nasçam. Simples. Justo.

— Mas, as famílias que vampiros arruínam sem necessidade...

— Outros animais também possuem linhagem e, se me permite, são infinitamente mais importantes para o ecossistema. No entanto, a senhorita não se preocupa com isso quando se alimenta deles, não é mesmo? Sua espécie é a última que pode tomar partido. Você pode sobreviver com legumes, frutas e verduras, mas prefere matar. Você é a verdadeira assassina.

Eu estava perplexa, ofendida e completamente sem argumentos.

Jane e sua adentrou o cômodo com sua antipatia usual ao lado de Eric para meu completo espanto. Eles pararam ao lado da poltrona de Alec. A mão de Jane tocou seu ombro.

Os três tinham os olhos fixos em mim. Aquilo não parecia ser nada bom.

— Como deve saber — começou Jane —, receberemos convidados durante todo o verão.

Balancei a cabeça de cima para baixo.

— De acordo com as decisões que tomou e pelo bem de sua saúde os Volturi não acharam prudente que esteja sujeita a ser vista por alguém de fora desses muros. Ao menos não nesse momento — Jane disparou como quem repete um discurso decorado.

Soltei uma lufada de ar. Havia um nó em minha garganta.

— Então...? — perguntei.

— Faça as malas Renesmee — disse Eric.

 

 

Bella acelerou, precisava chegar logo em casa. Estava inquieta, com uma sensação estranha. Sabia que estavam escondendo algo.

Edward estava diferente, distante. Desaparecia com alguma frequência, visitava os Denali uma vez por semana... E não era o único com um comportamento suspeito. Jasper e Emmett estavam treinando combate todas as tardes, eles e Edward conversavam apenas sobre táticas e lutas. Rosalie estava aperfeiçoando sua lógica com programas de computadores; quando Alice não passava o dia distraindo Bella ou obrigando a amiga a acompanhá-la nas compras, mergulhava em visões do futuro.

Bella não conseguia entender o que estava acontecendo e todas as tentativas de sondar os primos Denali foram muito bem contornadas. Era como se sua família estivesse participando de uma seita secreta, algo que ninguém ousava falar sobre.

Ela deixou o carro na estrada e se aproximou da casa a pé, tomando cuidado com a direção do vento. Como suspeitava, o carro dos Denali estava estacionado em frente a casa. Era a oportunidade que ela vinha esperando.

Edward caminhava na sala de um lado para o outro, ouvindo com atenção. Todos, com exceção de Esme e Carlisle estavam lá.

— Não há como voltar atrás agora! Estamos prontos. — dizia Garrett. — O informante foi infiltrado com sucesso. Começou.

— O que começou? — perguntou Bella adentrando a casa.

Todos pareceram estacar com a chegada da intrusa. Leonard sorriu com um brilho homicida no olhar.

— A resistência.

Bella demorou alguns segundos para processar a informação, encarando Edward com um olhar assustado. Respirou profundamente antes de fazer com a voz trêmula a pergunta que confirmaria aquela loucura.

— Resistência... contra o quê?

— Contra quem — Leonard respondeu triunfante.

 

 

Desembarcamos no Aeroporto Internacional de Atenas e Eric pediu um taxi para o Hermes Hotel. Estávamos felizes como duas crianças que ganharam algo que queriam muito.

Aro havia sido muito generoso em nos deixar viajar em um período tão movimentado no castelo, e ainda cobrir todos os gastos. Ele nos deu tanto dinheiro que eu mal consegui contar, solicitando apenas que voltássemos na segunda semana de Setembro. Embora não admita, estou muito grata por tudo que os Volturi tem feito por mim.

Eric pegava o cartão de acesso aos quartos na recepção quando a vi.

— Sophia? — soltei em meio ao choque. Ela abriu um largo sorriso. — Sophi! — repeti correndo para abraçá-la.

Ela estava particularmente estonteante em um vestido branco longo, sandálias e o cabelo meio preso.

— Que saudade de você menina!

— Não acredito que está aqui!

Nos abraçamos por longos minutos.

— Posso ter um pouco disso também? — perguntou Eric ao nosso lado. Soltei-a.

— Querido — disse Sophia o abraçando.

Havia tanta urgência, tanto carinho naquele abraço que me senti aturdida. Lágrimas escorriam pelo rosto dele.

— Eu sinto muito — dizia Eric. — Sinto tanto!

— Não chore meu menino. Vai ficar tudo bem.

Sophia afrouxou os braços dele ao seu redor para limpar suas lágrimas e um alarme disparou em minha cabeça. Eu nunca havia me atentado ao fato de que eles eram tão parecidos.

 Uma imagem transparente se formou frente aos meus olhos com a lembrança de um verão de muitos anos atrás. A casa de Seth e Sophia acabara de ficar pronta e seu casamento fora finalmente marcado. Eu visitava minha amiga com Jacob pela primeira vez e quando chegamos, Sophia parecia muito ansiosa. No jardim, próximo a floresta, Seth se despedia amistosamente de um homem. Eu apenas o vi se afastar, mas tive um vislumbre de seu rosto.

Então compreendi a estranha sensação de que estava deixando algo escapar quando conheci Eric.

Eu já o havia visto antes.

 

 

Edward encarava as mãos trêmulas de Bella. Ela sabia que todos na sala podiam ouvi-la, mas nada a impediria de brigar com ele.

— Desde quando? — Perguntou com os dentes trincados.

— É difícil dizer. Depois da ameaça que sofremos dos Voluri... quando a notícia da nossa vitória se espalhou recebi uma série de mensagens de vampiros espalhados por todo o mundo. Todos estão cansados dos abusos dos Volturi, Bella. Nós queremos lutar.

— Isso é loucura! — esbravejou. — Eles vão nos matar, Edward! Vão matar todos nós!

— Você realmente acha que eles nos perdoaram Bella? Aro está apenas esperando por uma oportunidade. Se nos unirmos a tempo teremos uma chance. Eles são talentosos, mas nós somos em maior número.

— Você acredita mesmo nisso?

— O que temos a perder?

— Eu cometi erros Edward, muitos erros, mas meus sentimentos por você jamais mudariam. Você prometeu me amar por toda a eternidade e agora vai abrir mão de tudo por vingança? Vai destruir tudo que restou?

Ela ergueu o rosto dele para que ele a encarasse.

— Você é tudo que eu tenho — continuou. — Se incentivar essa loucura, se mergulhar tão fundo no ódio estará escolhendo me deixar. Eu não posso mais viver sem você.

— Sem você o ódio era tudo que eu tinha.

— Mas eu estou aqui agora. Nunca mais te deixarei, eu juro.

Edward a abraçou com força, esperando que o buraco entre os dois fechasse, orando para que eles pudessem voltar a ser apenas um.

 

 

Caminhamos pelo corredor do hotel em espirais e ziguezagues, cantando e rindo sem motivo algum. Pela primeira vez nos permitimos fazer o que todos os jovens fazem: sair para um lugar barulhento e movimentado para beber muito mais do que a expressão “socialmente” permite, tentando desesperadamente afogar o peso do vazio de uma vida sem esperança.

— Vamos para a piscina? — disse Eric com um brilho infantil no olhar.

— Está maluco? — respondi.

— Deixe de ser chata, boneca.

Sophia tentou passar pela porta fechada do quarto, batendo a cabeça e caindo sentada no chão. Ri tanto que meu rosto doía. A ajudei a se levantar em um abraço enquanto Eric rolava no chão com as mãos na barriga.

— Essa merece um Champanhe na piscina! — disse Eric com o fôlego afetado pelo riso.

— Banho e cama Eric. Agora — disse Sophia.

Eric baixou os olhos, chateado.

— Sim senhora — deu um beijo na testa de Sophia e bagunçou meu cabelo, então foi para seu quarto. — Boa noite garotas.

— Boa noite.

.

Abri os olhos.

Me virava de um lado para outro na cama há horas sem conseguir dormir. Suspirei encarando o teto.

Invadi a cama de Sophia, me aconchegando debaixo das cobertas.

— Está acordada?

— Não Nessie.

— Então como está respondendo?

Com um suspiro ela se virou para mim.

— O que você quer?

— Posso te perguntar uma coisa?

— Pode Nessie — disse com os olhos ainda fechados.

— Qual é seu grau de parentesco com o Eric?

Senti-a congelar a meu lado. Seu rosto empalideceu, as mãos tremiam. Sophia me encarou.

— O que?

— Vocês são bem parecidos sabia?

— Nessie...

— Me conte a verdade Sophia.

— A verdade é muito complicada.

— Tenho certeza que conseguirei entender.

Ela respirou profundamente.

— Certo. Mas precisa prometer guardar esse segredo com a sua vida.

— Eu prometo.

— Eric... — ela se aproximou mais, podia sentir seu hálito em meu rosto. — Ele é meu filho — sussurrou.

— O que? — disse mais alto do que pretendia.

— Shiiiii!

— Desculpe — sussurrei. — O que?!

— Você se lembra de quando eu te contei que quando Leonard convidou a mim e ao meu pai para visitar sua propriedade na Itália eu estava envolvida com outra coisa?

— Sim.

— Então... essa coisa era um general. Eu me apaixonei por aquele homem forte e idealista, e ele me amou — minha expressão chocada a incentivou a continuar. — Nós fomos casados por sete anos, até eu perceber e ele mesmo notar que eu não envelhecia, então tive que fugir. Tentava resgatar meu pai com Leonard quando descobri que estava grávida.

Eu estava sem palavras.

— Por favor, não me julgue.

— Seth? — estava tão confusa que sequer consegui montar uma frase.

— Ele sabe de tudo.

Suspirei.

— Isso melhora as coisas, com certeza. 

— E o que houve com ele? Seu primeiro marido?

Ela respirou profundamente por alguns minutos, fartas lágrimas brotavam de seus olhos.

— Ele se tornou uma pessoa horrível, o ser mais vingativo e cruel... Eu o fiz passar a humilhação de ser abandonado, o fiz perder tudo, sua dignidade, o emprego e suas posses, mas o amava. Eu juro que não tive escolha. Não tive. E então... — sua voz falhou. Ela tentava, mas não conseguia mais falar.

A envolvi em um abraço e deixei suas lágrimas molharem minha pele até que seu corpo parasse de chacoalhar. Então ela dormiu.

 

 

Angie Jones tentava correr pela estrada. Ainda podia ouvir os gritos daquele que um dia chegou a amar, uma série interminável de palavras cruéis jogadas ao vento. Não conseguia entender como algo assim pôde acontecer, como ela deixou isso acontecer.

Respirava com dificuldade, mancando muito na perna direita. Seu corpo todo estava dolorido, cheirando a sangue, suor e álcool, mas ela não podia parar, descansaria apenas quando estivesse segura em casa. Precisava encontrar um telefone público.

Angie era a filha mais nova de um comerciante de Forks — tinha dois irmãos, Paul e George. Havia sido uma criança brincalhona e comunicativa, mas muito solitária, traços que manteve em sua adolescência. Tinha bons relacionamentos com parentes, vivia sempre cercada de amigos... Uma vida aparentemente feliz.

Tudo começou quando Angie passou a namorar Richard Young, um jovem apaixonado, mas extremamente ciumento. No começo era apenas uma brincadeira: um pequeno beliscão quando um dizia algo que o outro não gostava, então um tapa ou palavras obscenas, até que aquele dia ele realmente se irritou.

O casal foi a La Push com um pequeno grupo de amigos de Richard. Tudo estava correndo bem, assavam marshmallows em uma pequena fogueira, riam e cantavam até que um dos amigos de Richard — seu melhor amigo, para dizer a verdade — pegou uma bebida no cooler e ofereceu a Angie. Richard passou a ofender verbalmente a namorada e o amigo, e uma briga entre os rapazes começou.

Apartada a briga, Angie finalmente convenceu Richard a ir embora, mas ele entendeu a preocupação da namorada com Jhon como uma afronta, e mais uma vez começou com um pequeno e doloroso tapa no braço, que logo se tornou socos e pontapés. Os amigos de Richard ouviram os gritos da garota e se esforçavam para leva-lo de volta para a praia. Na confusão, Angie fugiu para a estrada.

Há algo perverso no tempo — uma contagem de segundos que podem mudar tudo.

Quem ousaria adivinhar que na ânsia de fugir Angie correria para o meio de uma estrada iluminada apenas com a luz da lua? Quem diria que naquele exato momento um homem também machucado pelo amor e calibrado com meia garrafa de uísque, desviaria sua atenção para trocar de música? Quem poderia imaginar que Angie atravessaria o vidro do carro e seria jogada por cima do veículo para longe na estrada?

Jacob desceu assustado, sentia medo pela segunda vez em sua vida. Algo surgira do nada e ele havia atropelado.

Quando se aproximou do corpo ensanguentado o poder de transmorfo já havia fechado seus ferimentos, mas os da garota não poderiam ser curados.

Angie Jones havia acabado de completar 17 anos. Gostava de comida japonesa, filmes do Wood Allen e de ouvir música indie. Queria estudar pedagogia quando fosse para a faculdade.

 

 

Eric encarava o mar azul como se procurasse algo. Estava muito quieto e arredio.

— O que há com ele? — perguntei.

Sophia se moveu desconfortável no sofá, de repente impaciente.

— Um erro antigo.

Sentei ao seu lado pedindo mais informações. Ela suspirou.

— Eu, Eric e Leonard vivemos por um tempo em uma pequena vila na Inglaterra há muito, muito tempo. Era um período perigoso: os humanos suspeitavam sobre a existência de seres que chamaram de "sobrenaturais", e caçavam vampiros e lobisomens... Era preciso ser muito discreto — Sophia respirou profundamente. — Em meio a isso Eric se apaixonou por uma garota; seu primeiro e único amor. Mas ela era obviamente diferente. Seus poderes eram muito fortes e se manifestavam descontroladamente, ainda que não tivessem uma forma específica. Meu menino se envolveu com ela, era o único que a entendia. Eles faziam bem um ao outro, mas os moradores da vila se agitavam cada vez mais em sua hostilidade com ela e com e com seu irmão gêmeo, e a relação deles acabou atraindo a atenção para nós. Precisávamos ir embora.

Sophia se perdeu em pensamentos por longos minutos, balançando a cabeça de um lado para o outro. Suspirou.

— Foi difícil convencê-lo, ele não queria deixa-la, mas nosso grupo já era grande demais e eu não pensei que... Logo depois da nossa partida Jane foi cercada por alguns meninos que sempre implicavam com ela, mas dessa vez ela revidou. Ela matou um deles e a vila se rebelou. Não houve julgamento. Jane e Alec foram capturados no meio da noite e queimados na praça ao nascer do sol. E Eric, bem, ele me enganou. Voltou para ficar com ela, mas quando chegou...

Sophia respirou profundamente esfregando as mãos no rosto.

— Quando os Volturi chegaram era tarde demais para ela, seu coração já havia parado. Eric não sabia muito bem quais eram as consequências de seus poderes, ele apenas queria salvá-la. Seu coração voltou a bater e ela pôde ser transformada por Aro.

Minha cabeça girava: eu sabia que Eric gostava de Jane, mas jamais me ocorreu que eles pudessem ter uma história.

— Ele a curou?

— Sim. Mas essa não é a questão.

— Não intendi. Ela é imortal, ele é imortal, eles finalmente podem ficar juntos!

— Híbridos não são imortais Nessie, nós apenas envelhecemos muito mais lentamente que humanos.

Meu queixo caiu. Como podem ter esquecido de me contar isso?

— Quanto a Eric... — continuou. — Ele fez o coração dela voltar a bater, mas nunca poderia trazer sua essência de volta. Quando acordou vampira três dias depois ela era outra pessoa, sua personalidade havia mudado completamente; tudo que ele amava nela havia desaparecido. Jane se tornou uma pessoa vingativa, sádica, incapaz de sentir qualquer sentimento bom, incapaz de entender o que é o amor. E mesmo assim ele nunca conseguiu se afastar, ainda que ela o odiasse.

Lágrimas escorreram pelos olhos dela. Segurei sua mão.

— Eric abriu mão de tudo por ela. Se uniu aos Volturi, pediu para que Aro o transformasse... Mas seu dom de cura não permite que o veneno o transforme, tampouco o mata como deveria. É como um câncer correndo em suas veias: lento, cruel. Ele está morrendo aos poucos por ela, e Jane o odeia.

Soltei uma lufada de ar. Meu coração batia tão forte que chegava a doer.

— Deve ter um jeito, não é possível que Jane seja simplesmente incapaz de sentir.

Sophia balançou a cabeça.

— Jane Ellen Bertrade morreu aquela noite. O castigo do meu filho é vê-la todos os dias, é saber que ela é infeliz e que culpa é dele, porque ele foi egoísta demais para deixa-la morrer.

Encarei Eric sozinho na varanda, o vento batia em seu rosto triste. Suas mãos apertaram o parapeito.


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Notas finais do capítulo

O que acharam?

Me comentem tuuudo!



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