Utopia escrita por Renata Salles


Capítulo 17
Veneno e vinho


Notas iniciais do capítulo

"Querida, há algo lamentável nisso. Algo tão precioso nisso... Por onde começar?"
(From Eden - Hozier)

Boa leitura!



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Primavera

Em algumas semanas Alec se instalou quase completamente no castelo, e sua amizade com Eric me fazia desfrutar de sua companhia muito mais do que eu gostaria — apesar de nossos diálogos serem basicamente monossilábicos, estou sempre sob seu olhar reprovador.

Minhas ocupações de rotina seguiram imperturbáveis e vê-lo com tanta frequência é quase prazeroso, embora eu não admita. Gosto de provocar seu temperamento taciturno, e suas reações me divertem mais do que consigo entender.

Alec se tornou meu novo jogo.

— Se não gosta de estar errada tanto quanto eu presumo, não deveria julgá-lo tão precipitadamente, Renesmee — começou Eric com o fôlego abalado pelo exercício. — Pode se surpreender.

— Pois eu duvido! As pessoas são o que fazem.

— Quer dizer que uma pessoa não pode errar? — perguntou com um sorriso em desafio me entregando uma garrafa de água.

Paramos sob as árvores próximas ao rio.

— Um erro isolado pode ser considerado um engano, mas quando esses enganos se tornam um padrão fazem parte de quem você é.

— E essa é tua maravilhosa definição de pessoas idiotas?

Encarei-o com um sorriso presunçoso.

— É — disse voltando a correr.

Eric deu de ombros.

— Tome cuidado para não morder a língua.

Bella pegou o imenso corpo flácido e o colocou sentado no chão sob o fluxo contínuo de água fria.

— Vamos Jake, acorde — disse dando tapinhas em seu rosto.

Ele demorou um minuto para se incomodar com a temperatura da água, então finalmente abriu os olhos, olhando ao redor como se não estivesse vendo nada.

— Está tentando se matar, idiota?! — acusou Bella. Jacob havia tomado uma série de analgésicos com algumas garrafas de Whisky.

Bella desligou o chuveiro e se sentou na borda da banheira.

— Vasos ruins não quebram Bells — disse com um sorriso frágil.

Ela suspirou.

— Você não é ruim Jake... — Sua mão deslizou pelo rosto dele, seus dedos ajeitando os cabelos desgrenhados. — Só está perdido.

O garoto esfregou o rosto, seu olhar encontrou o dela.

Eles se encararam em silêncio por longos minutos, e naquele momento parecia não haver nada além do espaço entre eles. Eram apenas Bella Swan e Seu Jacob.

Ele estendeu a mão e tocou o rosto dela, apenas queria se lembrar de como é amar uma pessoa, queria sentir um pouco do prazer enganoso da esperança. Bella se inclinou para dentro, se acomodando em seu peito e ele a envolveu em um abraço. Havia tanta dor naqueles corpos... Mas nada poderia atingi-los naquele momento. Estavam seguros, invisíveis.

— Não tenha medo — disse Aro com uma voz doce.

Respirei profundamente antes de tocar a mão estendida.

Aro fazia questão de me ajudar a aprender a controlar meus poderes em duas sessões semanais de duas horas, e ainda que eu não confiasse nele, essas horas estavam longe de serem desperdiçadas. Como um bom líder Aro era um tutor excelente, que me deixava de castigo quando eu fracassava e me presenteava com doces e mimos quando eu me comportava ou alcançava os objetivos, me desafiando cada vez mais.

Ganhei até uma Lambreta amarela para ir às aulas no Plazzo Dei Priori, acompanhada de um convite para jantar com Eric em um restaurante charmoso de Volterra.

Às vezes, quando Aro tinha acessos de misericórdia e me deixava descansar entre um exercício e outro, nós conversávamos. Ele falava com orgulho sobre a história de seu reinado, contava sobre as mudanças da humanidade ao longo do tempo, e sanava minhas dúvidas curiosas em relação aos integrantes da Guarda.

O fascínio de Aro pela vida era contagiante e inspirador.

— Estabilize — disse gentilmente.

Eu tentava formar a imagem de uma das batalhas que ele descreveu, em que os Volturi enfrentaram um grupo descontrolado de vampiros recém-criados no Texas usados para disputar território. Faltavam alguns detalhes, mas meu foco era a pilha de corpos incendiados. Na visão eu me aproximei da pira; podia sentir o calor do fogo, o cheiro do combustível, a sensação de orgulho e cansaço depois da batalha. A imagem transparente quase parecia ser uma lembrança minha.

Então algo me chamou a atenção.

Na pilha de corpos desfalecidos vi meu pai. Edward não se mexia enquanto seu corpo queimava, mas seus olhos me encaravam diretamente.

Não pude sufocar o grito.

.

Tranquei-me na sala de música.

Sabia que Aro mandaria Chelsea se certificar de que eu estava sob controle, mas tudo que eu queria era me sentir sozinha.

Sentei-me frente ao piano. O som reverberava pelo espaço e lágrimas escorriam por meu rosto. Eu chorava pela saudade que não teria fim, e por todos os anos, por todas as brigas; chorava por tudo que fiz, pelas palavras que não disse, e pelo amor que perdi.

Não sei há quanto tempo ele me observava.

Alec caminhou em silencio pela sala e se sentou ao meu lado quando minhas mãos passaram a tremer demais para dedilhar as teclas, meu corpo chacoalhava em um choro desolado enquanto ele tocava uma música doce e intensa.

Quando finalmente me acalmei, Alec olhou no fundo dos meus olhos, secou as últimas lágrimas que molhavam meu rosto e, com tímido sorriso, se retirou.

.

— Me deixe em paz criatura chata! — esbravejou Eric.

Descobri que irritá-lo era incrivelmente divertido.

— Pare de ser frouxo, homem! Ela gosta de você!

— Como pode saber?

— Por que acha que ela implica tanto com você? — rebati irônica.

— Jane implica com qualquer ser vivo, minha cara.

— Sim... — tive que concordar — Mas com você é diferente! E mesmo não aprovando sua escolha devo dizer como amiga que você está sendo muito lento!

Ele me encarou por um segundo, bufou, e voltou a andar pelo castelo anotando o que precisava consertar ou repor. Eu o perseguia com convicção.

— Tá, você a deixou. Isso foi horrível, mas vocês se gostam, pelo amor de Deus! — Eric me encarou feio. — Ah, qual é?! Você é um homem bonito, charmoso até demais... Vai ficar com medo de uma garotinha mal-amada?

Eric me puxou pelo braço.

— Cuidado com o que fala.

Passei os braços ao redor de seu pescoço.

— Não fique bravo, doçura — toquei seus lábios com os meus. Apesar de sermos apenas bons amigos era difícil controlar a vontade de abusar de seu corpo de vez em quando.

Quando Eric desistiu e suas mãos começaram a afagar minhas costas, corri para o jardim.

— Tu achas que pode me pegar assim do nada e correr?

Fiz uma careta.

Eric me alcançou e me jogou em seu ombro, comemorando como se tivesse ganhado um troféu. Me debati até derrubá-lo e gargalhei quando ele subiu sobre mim e me faz cócegas.

Uma figura surgiu atrás dele e minha alegria acabou como se eu tivesse levado um tapa.

Eric enrijeceu.

— Não é real — disse ainda sobre mim, mas eu não conseguia desviar os olhos de Jacob, logo Eric desapareceu.

Jacob parecia decepcionado.

— O que está fazendo? — perguntou com uma voz grave, cheia de tristeza e de raiva.

Lágrimas escorreram por meu rosto sem o menor esforço.

— Não quero te quero aqui.

— Você é minha, Renesme, nada vai mudar isso. — Ele se aproximou. — Você precisa de mim.

Esfreguei as mãos com força no rosto para controlar a visão, arranhei meu braço para voltar à realidade.

— Você não é meu dono — sufoquei — não é meu.

— Você prometeu...

— Você mentiu para mim! — exaltei.

Ele se ajoelhou a minha frente.

— Não me abandone, amor — sua voz rouca era quase um sussurro.

— Vá embora, Jake. Não gosto mais de você.

Jacob me encarou com um olhar duro.

— Não conseguirá me perdoar se não perdoar a si mesma. — Um arrepio percorreu minha espinha quando ele tocou meu rosto. Quase pude sentir o calor de seu corpo. — Não é de mim que você não gosta agora.

Desviei de seu toque.

— Pare, por favor, pare! — gritei.

A visão desapareceu. Minha cabeça pulsava.

Eric estava ajoelhado ao meu lado. Ele me abraçou com força e me pegou em seus braços, me levou para o quarto onde me encolhi o máximo possível, e chorei até dormir.

Bella andava de um lado para outro na pequena casa de madeira.

— Apenas estou preocupada — afirmou. — Ele está usando drogas Leah, misturando com muita bebida. Jacob está tentando se matar.

— Agradeço sua preocupação, mas com todo respeito, isso não é problema seu.

— Ele é meu amigo.

— Seu amigo ou sua muleta? Você tem certeza que está fazendo isso por ele?

— O que quer dizer? — rosnou.

— Você está usando Jacob para fugir de seus problemas Bella! Jacob pelo menos assume os dele.

— Como pode...?

— Há algum tempo você mal conseguia olhar para ele — interrompeu Leah — o culpava por todos os males da terra e agora vem dizer que só quer o bem dele? Você já pensou que sua presença pode deixá-lo pior? Já pensou que Edward pode estar precisando de você?

— Você não sabe de nada.

— Sei mais do que você, pelo jeito.

— Cuide da sua vida Leah — rosnou Bella.

Leah colocou seu corpo na frente do dela, bloqueando a saída.

— Você precisa aprender a olhar para os lados, Bella. Não só para o que você quer ver.

Abri os olhos.

Encarei o teto por longos minutos, a quietude solitária do cômodo preenchido por uma decoração impecável, em uma beleza sem sentimento. Sentia-me bem naquele espaço, como se fizesse parte da mobilia — ao mesmo tempo cheia e vazia.

Espreguicei-me.

Havia dormido, acordado e dormido de novo por dezesseis horas, e ainda assim meu corpo estava cansado e dolorido, me sentia pesada e lenta. Não aguentava mais ficar deitada, mas não queria levantar. Eu só queria que tudo parasse um pouco: toda a dor e a felicidade vazia, estáticas. Queria estar em órbita.

Estava cansada de acordar por mim mesma.

Como prometido, assim que finalizou seu trabalho de paisagismo Alec me apresentou oficialmente ao Jardim do Ocaso, mostrando cada detalhe, respondendo minhas dúvidas e explicando pacientemente sobre as técnicas que usou, e o que o inspirou a fazer cada coisa.

Enquanto eu me maravilhava Alec me observava com uma distância superior, que se transformava em uma atenção curiosa toda vez que meu foco mudava. Pela primeira vez o vi sair de seu estado natural de indiferença: naquele momento ele parecia interessado, atencioso até.

Ao contrário dos belos e imponentes jardins do restante do castelo, com seus desenhos elaborados e luzes noturnas coloridas, esse era perfeitamente isolado e tudo parecia ser extremamente pessoal. Suas esculturas simples tinham emoção e um milhão de significados. Era um lugar acolhedor e mágico.

Aquele era nosso segredo. Meu e dele.

Então todas as tardes eu ia ao Jardim do Ocaso e em um silêncio cúmplice, Alec e eu víamos o pôr do sol. Muitas vezes não trocávamos uma palavra, mas naqueles momentos se estabelecia uma conexão muito forte entre nós: éramos apenas duas pessoas muito feridas imersas em beleza e em um delicioso silêncio. Em nosso refúgio nós nos entendíamos e apoiávamos um ao outro.

Era o que eu gostava nele: sua compreensão fria, superior. Alec não tentava me amparar. Ele não se importava.

Bella hesitou antes de sair do carro.

Respirou profundamente enquanto caminhava pelo jardim, concentrando a tensão nos dedos das mãos. Não queria parecer nervosa. Os Cullens eram sua família, ela estava apenas reivindicando o que lhe pertencia.

Rosalie e Emmett haviam feito um bom trabalho construindo a casa que Esme desenhara. Era uma estrutura rústica de três andares que se erguia da grama nunca bonita depois de suportar tanta neve. Bella sempre soube que precisaria deixar Forks, mas era estranho se ver em outro lugar, e ter que começar de novo.

Assim que chegou à porta ela se abriu. Edward a encarava com uma expressão indecifrável, mas Bella sabia o que ele estava sentindo. Amor, ressentimento, surpresa; estava tudo em seu olhar. Mas havia algo mais. Ele parecia exatamente o mesmo, mas seus olhos dourados tinham um brilho selvagem que ela nunca havia visto.

— O... — Edward pausou em dúvida com a testa franzida.

Bella jogou os braços sobre seus ombros com uma necessidade ansiosa. Edward hesitou por um minuto antes de apertá-la em seus braços.

— Estou em casa — respondeu ela.


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Notas finais do capítulo

E aí, o que acharam?

Me contem!



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