Utopia escrita por Renata Salles


Capítulo 13
Desvio


Notas iniciais do capítulo

Hey pessoas, tudo bem?

Esse capitulo é bem longo e cheio informação. Acontece que o tempo está passando e os personagens estão se adaptando, ou não, à realidade. Eu não quis datar as narrações para mostrar que as coisas foram acontecendo gradualmente. Então tenham isso em mente, tá?

Boa leitura!



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Pode até não parecer mas o tempo passa, roendo e devorando tudo o que vê pela frente.

Ninguém jamais perguntou qual seria minha decisão, não houve audiência, apenas uma despensa ficando cada vez mais cheia de alimentos, roupas surgindo em meu closet, e o mais insano: vampiros tentando parecer amigáveis. Eu não me importava. Havia despencado de minha vida e a queda abrira ferimentos incuráveis. Podiam fazer o que quisessem comigo, eu estava em meio a uma fatal hemorragia.

Os primeiros dias depois de ter sido atacada foram os mais constrangedores — eu não podia nem mesmo me culpar por ser tão medrosa, afinal, começava a pisar em um campo minado desconhecido. — É claro que todos sabiam do ocorrido com Alec, e por mais que a principio evitassem se aproximar ou mesmo me encontrar nos corredores, sabia que observavam e até comentavam sobre os passos da mestiça louca que tentou se matar de fome. Espero que tenham ficado decepcionados por não conseguirem me oprimir, pois eu não deixaria de ir buscar meu alimento depois que Eric me orientou sobre onde encontra-lo, depois que descobri que o caminho entre o quarto e a cozinha era seguro.

Durante dois meses esse foi meu único percurso, até que o hibrido decidiu me obrigar a conhecer o restante da fortaleza que era sua responsabilidade — e Eric era extremamente orgulhoso de seu trabalho. Gosto de pensar que foi uma tarefa difícil para ele, que resisti bravamente, mas, na verdade, bastou uma pequena frase:

— Não esperes alguém para salvar-te, princesa.

.

Ele estava próximo. Abaixei-me em posição de ataque.

— Não estou gostando disso, Nessie. Vamos voltar. — choramingou, atrapalhando minha concentração.

— Relaxe Jake, será divertido!

Eu estava passando por uma fase destemida, em que testava a possibilidade das cenas de ação do cinema. A aventura do dia seria andar sobre um trem em movimento. Eu mal podia esperar, mas meu melhor amigo continuava se comportando como se fosse meu pai.

— Parece perigoso.

— Está com medo?

Ele me encarou por um longo minuto, como se eu estivesse enlouquecendo.

Agora o trem cargueiro estava a apenas alguns metros, e se aproximando, de onde estávamos precisávamos apenas pular na hora certa e agarrar uma escada. Seria fácil. Preparei-me para saltar, aguardando o momento propício.

— E se você cair, espertinha?

Fitei-o. O trem passava por nós.

— Você me pega.

Então saltei.

.

A beleza imponente da “casa de campo” dos Volturi é deslumbrante em cada detalhe, da luxuosa decoração do interior aos elaborados desenhos dos jardins, à forma com que o lago apresenta uma águia em pleno voo — aqui, nem mesmo a natureza é capaz de se opor ao clã. Por ser perfeitamente isolado pela vegetação o castelo dá uma sensação de liberdade e calmaria. Era um refúgio, a casa dos guardas.

Eu nunca tinha ouvido falar sobre essa propriedade, acho que é segredo. Anotei essa observação em uma nota mental, pois estar aqui e não em Volterra ao lado dos líderes do clã, só pode significar que estou mais encrencada do que parece.

Passar o dia na varanda do meu quarto, somado às vezes em que Eric me arrasta de uma lado para outro do castelo, me fez começar a entender como o lugar funciona. A primeira coisa que notei é que Aro sempre dava um jeito de deixar todo mundo ocupado. A maior parte dos guardas iam até Volterra ou cumpriam seus compromissos em geral no fim de tarde, e então voltavam para casa.

Dificilmente os líderes Aro, Caius e Marcus deixam o subterrâneo do Palazzo dei Priori, cede de seu governo que possui uma equipe de segurança local. Apesar disso os líderes possuem guardas pessoais: Renata e Corin, responsável principalmente por Sulpicia, esposa de Aro que tive o desprazer de conhecer em meu primeiro dia em Volterra, e Athenodora, esposa de Caius; e os “comandantes” Jane e Alec que geralmente ficavam por lá.

Os guardas prioritários que incluem Felix, Demetri e Chelsea, vêm e vão. Quando não estão viajando seu trabalho parece estranhamente convencional. Pode-se dizer que são as partes vitais de uma construção, pois de forma geral, são eles que mantêm tudo funcionando.

Eu divido o teto com mais três membros da guarda principal, sendo Eric um deles, dez ou doze membros transitórios que podem ser considerados espiões.

A rotina só é alterada quando os Volturi recebem visitantes no Palazzo, vampiros de todo o mundo gentilmente invitados a conhecer e a se submeter ao treinamento dos guardas Volturi, mas sem nenhum compromisso: assim que o doutrinamento termina, eles são dispensados. Quando isso acontece há uma concentração maior de guardas em Volterra. Fora isso, eles estão sempre por aqui.

Segundo Eric eu pertenço à categoria muito seleta de hóspedes, o que significa que os Volturi realmente possuem algum interesse específico em mim. Isso é tão imprevisível que nem sei se devo incluir em minha lista das “piores coisas que poderiam acontecer”.

Mas tenho observado.

De alguma forma os guardas locais parecem estar cada vez mais atarefados, e estranhamente viajam cada vez mais. Consequentemente, a menos que os gêmeos psicopatas estejam, Eric é a autoridade por aqui. Isso deveria me deixar mais tranquila, mas sinto-me constantemente perturbada, com mania de perseguição.

Para contribuir com minha possível insanidade, os pesadelos não recuaram, pelo contrário, estão cada vez mais consistentes: assim como minhas imagens que se projetam diante dos olhos, eles vão além do plano dos sonhos, assolando-me também quando acordada.

Minha mente deixou de ser um lugar seguro.

As lembranças que antes apenas me entorpeciam, agora criam vida, guiando-me por caminhos desconhecidos que em geral resultam em um estado emocional descontrolado e, entre outras coisas, em uma dor aguda no peito. Meus sonhos as distorcem, convertendo-as em uma série de rachaduras em minha memória. Às vezes não sei distinguir o que realmente aconteceu do que foi criado pelos labirintos da minha mente.

A cada batida de coração chego mais perto de perder o controle, e sinceramente, já não me importo. Desta vez eu quero começar o incêndio.

Os Volturi se movem nas sombras ao meu redor, agitando-se cada vez mais a cada surto, logo irão parar de apenas assistir e agirão. Estou verdadeiramente ansiosa para saber o que farão comigo quando perceberem que não tenho utilidade alguma.

E vivo esperando. Dia após dia.

Não há muitas datas comemorativas por aqui, apenas algumas reuniões festivas de vez em quando, nada que envolva todo o clã, nada que inclua os líderes.

Uma característica muito bem vinda.

Sempre preferi coisas mais casuais, embora gostasse de reuniões e festas formais. Ultimamente, e não somente por estar entre os Volturi, tenho preferido companhias reduzidas, ou a solidão.

No Natal não havia enfeites ou presentes, não havia família reunida. Éramos apenas Eric, eu e algumas guloseimas em meu quarto; assuntos alheios em meio a filmes, vinho e boa música, e uma noite que poderia ser meu fim acabou se tornando uma boa lembrança.

No réveillon houve uma espécie de reunião para celebrar as “conquistas do ano”. Toda a guarda estava presente, e até mesmo os líderes se uniram por uma ou duas horas, reservando alguns minutos para me visitar — o que, raios, faz Aro pensar que é uma pessoa legal ou confiável? Depois de invadir minha mente murmurou que meu poder está tomando uma “forma interessante”, afirmou que eu poderia procura-lo a qualquer hora, caso precisasse de ajuda para lidar com ele. Sugeriu algumas sessões de treinamento, que recusei educadamente.

A noite foi selada com um banquete.

Às vezes ainda me encolho sob as cobertas, tentando livrar-me dos gritos. Nunca entendi porque alguns precisam ser tão cruéis com suas vítimas.

A garota corria pelo jardim sob a chuva densa, a água escorrendo pelo rosto ainda infantil, os cachos negros como a noite agora eram apenas ondulações; seu vestido ficava cada vez mais encardido e sujo de lama a cada tentativa de adentrar a casa. Estava cansada daqueles jogos.

Todos os dias seu pai concedia tarefas que testariam seus limites, e embora a mestiça gostasse de provar que é forte e astuta, naquele momento o frio era o único motivo que a fazia continuar. Ou talvez fosse o medo.

A princípio eram jogos divertidos, mas aos poucos se transformaram em deveres que a levavam ao limite, física e psicologicamente. Parecia estar sendo treinada para uma guerra.

Sophia tentou escalar a parede da casa de campo, caindo mais uma vez sobre grama e barro. A raiva abria cortes por toda a extensão de seu corpo. Algum dia aquilo acabaria?

Ela fitou o céu cinzento, orando aos deuses que a tirassem daquele lugar, desejava com todas as forças que seu pai fosse arrancado de sua vida. E ali perdeu a noção do tempo, imaginando uma vida sem jogos e testes, sem fugas no meio da noite. Sonhava em se estabilizar, ter um marido amoroso... uma família.

Um raio atingiu uma árvore distante no momento em que a porta finalmente se abriu.

Sem proferir uma palavra Selas a pegou pelos cabelos, obrigando-a a se levantar, e a levou para os estábulos. Empurrou-a sobre um monte de feno.

O homem alto e corpulento andava de um lado para outro, imaginando o que faria com aquela garota insolente. Precisava ensiná-la a ser dura e forte, a manter-se sozinha e a saber se defender em um tempo em que mulheres não somente dependiam inteiramente, como eram propriedade primeiro do pai, e então do marido. Ensiná-la era tudo que Selas poderia fazer por ela, mas seus sonhos inalcançáveis e sua rebeldia o estavam irritando.

— Perdoe-me, mas não quero mais papai. Nada disso — disse gesticulando. — Ele a encarou repreensivo. Sophia sentiu seus ombros encolherem, mas respirou profundamente. — O senhor não vê? Estou pronta. Por que apenas não diz o que devo fazer?

A raiva incendiou os olhos dele.

— Pronta? Você não conseguiu entrar na casa! É assim que agradece ao sacrifício de Adália, sua bastarda? — disse agarrando-lhe o braço. — Você não sobreviveria por um dia sozinha, sua inútil!

Ela gritou quando o osso partiu ao meio, e ele apertou o local, impedindo que seu corpo trabalhasse para curar o ferimento.

— Me perdoe. Eu sinto muito — disse em meio aos soluços sufocados enquanto ele a arrastava e começava a amarrá-la —, me perdoe papai, farei tudo o que o senhor quiser, eu juro. Por favor, não faça isso!

— Não quer mais? Pois bem, não se atreva a se soltar.

— Papai! Por favor, perdoe-me! Perdoe-me!

Irredutível, Selas a amarrou pelos pulsos no teto do estábulo, deixando o corpo molhado de sua prole pendurado sobre os cavalos por vinte e quatro horas. Então a obrigou a tecer uma tapeçaria de três metros depois de permitir que ela comesse apenas restos de pão e um copo de água, ignorando a fraqueza de seu corpo e o inchaço em seu braço quebrado.

Mas o choro silencioso jamais deixaria de atormentá-lo.

Uma mestiça jamais seria considerada uma ameaça para eles, e, no entanto, como que para confirmar minha constante paranoia, os Volturi e seus guardas me vigiam em cada movimento, a cada respiração.

— Não te aflijas por tão pouco — disse-me Eric. — Não há o que temer se souberes como te mover, e logo entenderás como as coisas funcionam por aqui.

Apenas fitei-o.

Não posso deixar de estranhar que em tão pouco tempo eu já confie nele. Parece que o conheço a vida inteira, embora não saiba efetivamente muito sobre ele. Talvez seja por me parecer tão familiar.

Por algum motivo ele tomou para si a responsabilidade de ser uma espécie de mentor, guiando-me pelas esquinas tortuosas.

— Não fostes ensinada desta maneira, então aprendas logo a desconfiar das pessoas. Desconfie sempre, inclusive de mim — disse em uma tarde tranquila em que os maiores perigos que nos rondavam se resumiam a pássaros cantando e a uma xícara quente de chá. — Todos desejam algo. Jamais te esqueças disto.

— E o que você quer? — perguntei após alguns minutos de consideração.

Ele me encarou com um olhar soturno.

— Que você não estrague tudo.

Não entendi o motivo do discurso repentino, ele também não mencionou, mas acatei automaticamente, percebendo mais tarde que era exatamente esse tipo de coisa que ele dizia para que eu não fizesse. Justifiquei a mim mesma afirmando que é difícil não confiar em alguém que te faz se sentir segura.

Notei então que todo o terror que me proporcionava apenas o pensamento de um Volturi se aproximar de mim ou de minha família já não existia mais. Não sei se poderia atribuir o motivo de tal atrevimento a meu estado que pende entre o vazio e o pânico, mas de fato os Volturi não me assustam mais.

Sinto-me uma boneca de pano.

Devido a seus “afazeres domésticos”, como gostamos de chamar, Eric está sempre ocupado, mas não deixa de reservar todos os dias um precioso tempo para mim, o qual valorizamos muito. Preciso admitir que somos de fato uma boa dupla, quando estamos juntos não tenho medo de ser eu mesma e não preciso me controlar. Estar com ele é simples e completamente natural.

No começo Eric tentava estar por perto sem realmente se aproximar, me deixava confortável sem fazer parecer que esta é minha casa, próximo e inalcançável, mas foi inútil. Logo estávamos tento longas conversas pelos jardins, ou transformando a cozinha em um verdadeiro laboratório, enquanto tentávamos fabricar temperos ou criar novos pratos. Ele era particularmente bom na confecção de doces.

— Preciso te apresentar a minha melhor amiga... — disse sentindo a doce lembrança tornar-se um aperto de saudade. — Sophia é completamente apaixonada por qualquer coisa feita com limões!

O sorriso de resposta foi ao mesmo tempo terno e amargo.

— Um dia, quem sabe.

Eric é muito peculiar: às vezes afunda em um mar profundo e desconhecido, para logo submergir sorrindo e brincando como uma criança crescida — mas seus olhos são solitários e tristes: algo lhe faz muita falta, ou alguém. É ao mesmo tempo jovem e muito velho, tomando um ar contraditório, não aceita falar de sua vida pessoal, principalmente sobre antes de se tornar um guarda Volturi, e perde o controle quando pressionado. Nesses momentos me dá medo. Também tem comportamentos estranhos, como desaparecer misteriosamente durante a tarde por uma ou duas horas, uma vez na semana, e depois fica instável, melancólico ou até arredio, mas respeita meu silêncio, então é uma boa companhia.

Ele colocou minha cabeça no lugar, fazendo-me enxergar que nada é dado de graça. Eric me encheu de algo parecido com confiança, e aos poucos fui-me atrevendo cada vez mais, vagando sozinha pelo castelo — se quisessem me matar já o teriam feito, e caridade está fora de questão, então que motivos teriam para me manter aqui? Fato é que algo grande está sendo orquestrado, algo que por algum motivo desprovido de bom senso me envolve. Minha missão tornou-se descobrir o que está acontecendo, onde querem chegar. Fiquei genuinamente feliz ao perceber que Eric está ao meu lado, que ele seria um bom aliado.

E os dias começam e terminam.

Ver os poderosos guardas Volturi diariamente ocupados por suas tarefas usuais os faz parecer perturbadoramente comuns, como se fossem apenas um grupo muito grande e organizado. Alguns se ocupam com os jardins, outros ficam à disposição do bem estar dos convidados, outros limpam a fortaleza. Alguns fazem compras. Existem também conflitos internos clássicos: aqueles que arrumam brigando com os bagunceiros, os ocupadíssimos reclamando de seus afazeres... Não é como estar em meio a assassinos sanguinários. Talvez alguns até sejam legais.

Mas saber disso não me deixava exatamente disposta a fazer amigos, mas Chelsea era muito insistente. Algo que não era meus instintos me impulsionava a confiar nela, e depois que Eric contou sobre seu talento de manipulação afetiva, passei a estar sempre ocupada quando ela vem me visitar.

Recentemente iniciei uma séria argumentação com Aro, exigindo ele que ordenasse a Chelsea que parasse de lançar seu poder sobre mim, quebrando os laços que possuo com minha família e unindo-me aos Volturi. No princípio Aro se fez de desentendido, lamentando e afirmando que certamente a vampira apenas estava tentando me ajudar, disse inclusive que ninguém havia ordenado que ela o fizesse. Mantive-me inflexível, embora durante a noite, quando minhas armas falham contra o subconsciente e os sonhos tornam-se tão reais que ao despertar sinto meu corpo todo doer, penso sinceramente em gritar por ela e implorar que me entorpeça até que me torne completamente indiferente àquelas pessoas que tanto amei.

Mas me esquivo.

Ouvi dizer que o tempo cura qualquer ferida. Veremos.

Dizem que a agonia se encontra naqueles primeiros dias, meses até, quando é inevitável manter o olhar fixo na janela, imaginando que ela apenas foi caçar, que talvez esteja na praia, mas que logo voltará para casa exibindo um sorriso que poderia abrigar o mundo, mostrando a todos suas aventuras e descobertas do dia. Doce e graciosa. Você pensa ter ouvido sua voz, tê-la visto andando pela casa... A ilusão dura apenas um segundo, mas é o bastante para te inflamar com a pungente esperança; e flutuando com seu nome engasgado como um grito de socorro, você a procura como se estivessem brincando de pique-esconde.

Mas você nunca a encontra.

Na verdade, não existe um prazo de validade para a dor, para o vazio, não há um momento em que você esquece; as lembranças apenas se tornam cada vez mais insuportáveis à medida que você percebe que não há retorno, não há quem esperar.

Como se a perda não fosse o bastante, nas primeiras semanas Edward obcecou-se por descobrir como o acidente aconteceu. Dias e mais dias passaram enquanto ele refazia os passos da filha, estudando cada centímetro da colina, a estrada e o interior do que sobrou do automóvel, negando e renegando os fatos a sua frente: não fora apenas um terrível infortúnio, ela não havia perdido o controle do automóvel, a curva não havia passado despercebida.

Minha filha. — Pensava Bella. — A pequena criatura que lutou para crescer dentro de mim enquanto meu corpo morria, a existência fatal e maravilhosa pela qual abri mão de tudo, lutei contra todos, e que quase me levou a desistir do amor. Ela escolheu nos deixar.

E agora dói muito mais.

Então é impossível não abaixar os porta-retratos cada vez que passa por eles, evitar os lugares onde ela gostava de estar, de absorver-se em pensamentos. Logo, você não quer tocar em nada que já passou por suas mãos, não quer sequer pisar no solo que seus pés já tocaram, não há como habitar um local em que ela já esteve, é enlouquecedor. Em um momento você se julga por não tê-la conseguido salvar, para em seguida culpa-la por ter partido.

Como uma droga que vicia e intoxica, você se agarra a sua impotência, que é tudo que você tem. Não pode simplesmente se afastar e abandonar o templo de uma perda imensa. Não. Seu dever é abrir as cortinas todos os dias antes que amanheça, e colocar lindas flores nos vasos, apenas para vê-las definhar, esperando que o dia termine.

Ninguém quer falar, seu nome tornou-se uma maldição proibida. A pressão que a falta e a culpa fazem é difícil de suportar, e cada um pegou para si a parcela que achava que lhe cabia.

Com o tempo a dor deixa de ser motivo para uma família manter-se unida.

.

Sophia se encolheu no sofá, agarrando-se a uma almofada. Segurava a foto de seu casamento, odiando-se por ter apenas criado uma fraqueza — porque nada parecia ser importante quando Seth não estava em sua vida.

Mas o amor não é uma marcha vitoriosa.

Uma lágrima solitária acariciou seu rosto e ela a limpou rapidamente, como se o gesto pudesse trazer de volta quem costumava ser.

Estava habituada a lutar por si mesma, criando sua própria verdade mesmo nos anos em que Leonard estava por perto. Eles eram assim. Às vezes cansavam um do outro, então iam viver suas aventuras separadamente, mas logo retornavam ao ciclo viciado. Ela nunca esteve realmente sozinha.

E mais uma vez sentia-se a garotinha que jamais teria um lar.

Então a frustração a levou a cair na estrada, curando a solidão com joguinhos e novas vítimas, ansiando o que outras pessoas poderiam oferecer, devorando com ímpeto cada experiência e obcecada por sentir o que a liberdade realmente é. Sophia decidia quem queria ser a cada dia. Havia perdido a noção de qualquer limite, dando-se o direito de ser completamente imprudente. Não tinha mais nada a perder.

E quando o arrebatamento acaba, restando apenas solidão e ressaca, ela deseja, dia após dia, continuar enganando a si mesma, tentando acreditar que é forte para seguir em frente sem procurá-lo em cada rosto, e madura o bastante para não imaginar se ele estaria buscando consolo nos braços de outra. Talvez algum dia possa ignorar que afastar-se é a única forma de mantê-lo a salvo, e convencer-se de que o melhor era mesmo partir. Talvez, ainda que o destino o tenha trazido para sua vida, o tempo possa expulsá-lo.

.

Em cinco meses Jacob havia tentado todas as formas que sua mente criativa fora capaz de lhe proporcionar, mas nada era capaz de dar fim a sua droga de vida.

Às vezes, tentado assistir a um jogo na tela plana, adormecia de repente, apenas para que ela o visitasse em seus sonhos. Vê-la novamente era como um milagre. Queria tocá-la, estava certo de que poderia sentir o calor de seu corpo se chegasse perto o suficiente, mas ela estava tão diferente... tão fria, e cada vez mais distante. E seu pequeno milagre tornava-se uma tortura.

Sentia seu desprezo, o nojo escondido em seu olhar triste, a decepção implícita em sua voz. Por amá-la, seu crime fora maior que qualquer outro: tê-la ensinado a amá-lo.

Cada maldita noite ele a perdia novamente.

.

Em alguns momentos o branco se tornava insuportável.

Edward cobriu as janelas com a pesada cortina que arrancou da biblioteca, as paredes ainda estavam molhadas, o cheiro forte de tinta fresca, mas não importava.

Finalmente um pouco de escuridão.

Sentou-se em frente ao piano, pressionando as teclas com leveza porque não podia mais suportar o silêncio. A música não foi escolhida intencionalmente, era apenas algo que havia composto há alguns anos para sua filha. Ele adorava vê-la tocar.

Sentia-se sozinho. A família havia oficialmente partido para Ester, no Alasca, há algumas semanas, pois seguir em frente no lar da tragédia era doloroso demais. Edward jamais os julgaria por isso, cada um a sua maneira havia perdido muito mais do que poderia suportar e tinha direito de tentar retirar os estilhaços.

No começo eram apenas visitas aos primos Denali — que se tornaram muito mais próximos depois do apoio que deram aos Cullens no problema com os Volturi há mais de sete anos —, com algumas paradas em Ester que aos poucos se tornavam cada vez mais frequentes e duradouras, a propriedade estava pronta para a mudança mesmo antes do aniversário de Renesmee. Era apenas questão de tempo.

Alice e Jasper foram os primeiros a partir — foi o melhor a fazer pelo bem de Jasper. Eles não queriam deixar todos para trás, mas o tenro mar em que a família se afogava o estava deixando em estado quase vegetativo —, seguidos por Rosalie e Emmett. Então, depois de sanar qualquer dúvida de que não havia nada que pudessem fazer, Carlisle e Esme também partiram, com esperança de que Edward e Bella logo estariam prontos para juntarem-se a eles. Mas ela não queria.

Bella havia se fechado tão profundamente em seu mundo que ele mal aguentava encará-la. Ela não permitia que se aproximasse, que a tocasse, que tentasse conversar ou que se afastasse. Ele não tinha a menor ideia do que fazer, de como ajuda-la, ou como recuperar a si mesmo.

E chegava ao limite.

Jamais poderia tirar de si o peso da culpa, mas egoistamente precisava que Bella o perdoasse.

A melodia não parou quando a porta do estúdio foi aberta bruscamente.

Bella o empurrou, fazendo com que retirasse as mãos das teclas, e fechou com força a tampa que protegia os teclados. Estava tão zangada, tão magoada que o deixou atônito.

— Como se atreve? — rosnou. Ela não percebeu que era a primeira vez que falava com ele desde o acidente. — Essa era a música dela! — Sua indignação o deixava confuso. — Nunca mais ouse tocá-la. Nunca! — gritou.

— Eu gosto da música — sussurrou confuso. Bella estacou, a raiva incendiando seus olhos, mas ele não percebeu, havia se perdido em pensamentos. — Gosto de lembrar como Renesmee costumava ser. — E ele a amava tanto... A doçura das lembranças o fez sorrir. — Nunca vou esquecer o brilho em seu rostinho quando toquei a canção pela primeira vez. Ela era tão pequena! Como é maldoso o tempo que a deixou crescer tão rápido!

Bella apertava os ouvidos e arranhava a pele, como se quisesse arrancar as palavras de sua mente, as lembranças que a consumiam.

Edward a encarou.

— Por que quer esquecer as coisas boas, Bella?

— Chega! — gritou, socando o piano. Ao mesmo tempo em que ela identificou o gesto impulsivo, a estrutura de madeira desabou, completamente destruída.

Edward baixou os olhos, afastando-se.

Bella queria pedir perdão, queria seu marido de volta, mas não conseguia encontrar sua voz.

Ele parou na porta, mas não se virou para encará-la. Sua voz era um sussurro partido.

— Ela também era minha filha.

.

Rosalie estava sentada na margem do rio, observando o gelo fixamente.

Emmett se aproximou lentamente.

— Conseguiu descobrir alguma coisa? — brincou.

A sombra de um sorriso brincou nos lábios dela por breve momento, e desapareceu.

Com muito esforço e uma série de argumentos, Emmett havia conseguido convencer a esposa a partir para Ester, pois não podia admitir que Rosalie seguisse os passos de Bella, afundando em sua própria tristeza, ignorando a vida que segue a sua volta. Não esperava que a mudança a fizesse superar a perda, ninguém havia superado, mas tinha esperanças de que a estimularia a seguir em frente, e, no entanto, lá estava ela, fechada em si mesma.

— Rose, por favor, me diga o que posso fazer, eu imploro. Faço qualquer coisa, tudo que quiser, mas, por favor, não fique assim, não me afaste. Você não está sozinha. Eu não posso perder você.

Ela o fitou com um olhar sofrido.

— Você não vai — começou abraçando-o. — Sinto muito, meu amor, não quis ser egoísta. Eu nem perguntei como você está.

— Não se preocupe comigo. Nós vamos passar por isso juntos, está bem? Sempre juntos.

.

Jacob havia corrido tanto e por tanto tempo que não notara para onde estava indo, apesar de saber. Desde o acidente vinha tentando fugir para o mais distante que pudesse, mas por algum motivo, ficava horas e até semanas correndo em círculos sem perceber, acabando por voltar para casa, onde os pesadelos e as memórias se tornavam insuportáveis.

A matilha tentava ao máximo lhe dar privacidade, e enquanto Jacob não retomava seus afazeres, Seth, eleito por unanimidade, ocupava o posto de Alpha — uma forma encontrada para impedir que este também deixasse tudo, ou abandonasse a si mesmo.

Ao perceber que teria companhia, Jacob pensou em se afastar, mas com toda certeza ela já havia notado sua presença. Jacob ficou indeciso, hesitou. Com um suspiro, adentrou a pequena clareira e sentou-se ao lado de Bella. Flores coloridas indicavam a primavera e, no entanto, eles seguiam sentindo frio.

— Quanto tempo...

Ela o ignorou como ele teria feito, mas não importava, não era preciso dizer nada.

— Onde acha que ela está? — perguntou a vampira com o olhar fixo na lápide. Jacob não conseguiu encontrar sua voz para responder. — Às vezes, acho que está no vento, e sempre que sinto uma brisa, imagino-a passando por mim...

Como um eco, uma brisa os atingiu suave e fresca, não tinha o cheiro de Renesmee, mas o coração dele pareceu ter-se encolhido. Mesmo sabendo que ela não havia realmente partido, Jacob queria acreditar em Bella, pois se ventos passam por todos os lugares, então talvez pudessem alcança-la.

— Algum dia você vai me perdoar? — perguntou Bella após alguns minutos. Jacob apenas fechou os olhos. — Jake, eu nunca pensei que... escrevi o diário porque não sabia o que me lembraria depois da transformação, não sabia como eu seria. Não queria esquecer o que tivemos... — terminou com um sussurro. Jacob se moveu desconfortável. — Nunca passou por minha cabeça que Renesmee o encontraria ou que...

Podiam não ser físicas, ou reais, mas Jacob conseguia visualizar as lágrimas escorrendo pelo rosto dela. Aquilo era errado, perturbadoramente errado.

— O que nós tivemos Bella? — Ela o fitou como se tivesse dito algo terrível. — O que está havendo entre você e Edward?

— Ele esta bem, eu... acho. Não conversamos.

Aquilo o surpreendeu. Há muito Edward havia dado a entender que os dois não estavam muito bem, mas o quileute jamais pensou que pudessem chegar a este ponto.

Uma nova brisa os atingiu, trazendo o cheiro de rosas, um resquício de luz atingia a copa das árvores, formando um circulo ao redor do túmulo, pássaros cantavam por toda parte em um dia tranquilo, como se houvesse esperança.

— Devia ter escolhido você — disse soturna.

O coração dele pareceu ter perdido uma batida em uma dor aguda. Bella havia enlouquecido.

— Não me olhe assim! — continuou. — Nós teríamos sido felizes, Jake, você sabe disso. Se Edward não tivesse voltado, nós...

— Você o ama, desistiu de tudo por ele — e aquilo não fazia o menor sentido.

— Talvez eu estivesse errada. — A raiva alterava seu julgamento, enchendo sua mente com palavras instáveis, pensamentos instáveis que não correspondiam com seus verdadeiros sentimentos.

O desespero pode te levar a lugares que jamais iria.

— Bella...

— Você não vê? — A vampira fechou os olhos com força. — Se tivéssemos ficado juntos quando tivemos a chance não a teríamos perdido.

Jacob suspirou pesadamente, lamentando.

O olhar consternado da vampira o fez se deslocar no tempo, e ele se lembrou daquele retalho de garota que havia sido abandonada, sua melhor amiga, aquela que ele amava e estava disposto a esperar, aquela pela qual faria qualquer coisa. E ainda que fossem movidos e aproximados pelo futuro que os transformaria em uma família, eles poderiam ter se escolhido, e se assim tivessem feito, todo o sofrimento, a perda, não teria acontecido.

Então Jacob se lembrou das tardes e das motos em sua garagem, de como era fácil estar com Bella, simples como respirar, e como ele a queria.

Com Renesmee nunca foi assim, com ela nada nunca foi tão simples, embora natural. Ela ela preciosa demais.

Então pela primeira vez Jacob se deu conta de como seria bom ter aquilo de volta, como queria que o sol parasse de se esconder atrás das nuvens.

Sem perceber, eles estavam se aproximando, e cada vez mais próximos. Havia apenas a nostalgia, a esperança de que podiam costurar os pedaços um do outro; queriam acreditar que era possível voltar no tempo e concertar as coisas, pois qualquer vida seria melhor que aquele sofrimento.

Seus lábios se tocaram.

Mas por mais que desejassem refazer seus passos e suas escolhas, eles não eram mais aquelas pessoas. O destino não pode ser desfeito.

Jacob se retraiu pelo toque duro e frio, e se afastou. Bella encarava o chão, envergonhada. O que estavam pensando? Suas escolhas os levaram até onde estavam, e nada poderia ser diferente. As peças estavam fora do lugar, talvez algumas estivessem quebradas, mas todas estavam ali, apenas precisavam ser encontradas novamente, encaixadas.

Na verdade, o que queriam de volta não poderia ser concertado.

Como o nevoeiro que cobre uma construção assim que ela desaba, o instante desesperado em que aquilo de alguma forma pareceu certo se foi, deixando as ruínas expostas.

.

Seth sentou-se ao lado de Jacob na praia de La Push. Eles nunca foram dados à bebida, mas algumas garrafas pareciam uma boa ideia naquele momento. Encontros como este se tornavam cada vez mais frequentes.

— E aí, o que há de novo?

Jacob deu mais um longo gole em sua quarta garrafa. O corpo dos quileutes queima o álcool rapidamente, o que significava que para fazer efeito, eles precisam beber muito. E rápido.

— Fui ao túmulo dela hoje — disse Jacob. Sua voz rouca era um pesado sussurro.

Seth tirou a garrafa de vodca da mão de Jacob e lhe entregou uma de Uísque.

— Essa será melhor, amigo.

— Obrigado.

Eles passaram alguns minutos em silêncio, apenas bebendo e observando a água atirar-se violentamente contra as rochas. O que poderiam dizer? Sophia o abandonara e Renesmee estava morta. Fim da história.

— Bella estava lá.

Seth o fitou duvidoso, sabia que Jacob a culpava por Nessie ter descoberto o pseudo relacionamento que um dia tiveram. A última vez que se viram foi no funeral da mestiça, e seis meses e meio de amargura se acumularam desde então.

— E aí? — perguntou cautelosamente.

Jacob sorriu amargamente.

— Estão separados. Bella e Edward.

— O que? Ela disse isso?

— Não precisou. Talvez seja o melhor para eles, um tempo para pararem de culpar um ao outro, ou sei lá...

— Isso é um erro enorme! Ela o ama! Nós temos que...

— Não há nós, isso é problema deles.

Seth acalmou-se com mais alguns goles. Apesar de bêbado Jacob estava certo, ele mal conseguia tomar conta da própria vida.

— Sabe garoto, dizem que qualquer espaço de tempo com a pessoa que amamos é melhor do que nada — Jacob parou, encarando o oceano. — Eu preferia não ter tido nada.

Um sopro de vida me fez imergir da escuridão. Eu estava na floresta.

Havia algo que precisava encontrar, algo que queria de volta. Procurei tanto que minhas pernas ficaram trêmulas, e somente ao parar para descansar notei a familiaridade do local: era como se não tivesse me movido. A gigantesca árvore centenária seguia cravada em meu encalço. Ela parecia inexplicavelmente maior, com uma série de cicatrizes inflamadas e raízes robustas que tentavam transfixar o solo.

Contrastando com o verde vívido e sombrio do restante da floresta, ao redor da árvore os sinais do outono estavam por toda a parte, folhas tornavam-se amarelas ou alaranjadas, agarrando-se firmemente aos galhos enquanto morriam lentamente, as mais fracas secavam e caiam ao chão, formando uma espécie de tapete. Estava tudo tão silencioso que era possível ouvir o vento sussurrando em meu ouvido. Meu coração comprimiu-se como se estivesse sendo torcido.

Passei a correr a toda velocidade na direção oposta, afastando-me, corri por pelo menos doze quilômetros e quando olhei para trás para encarar a distância com um leve sorriso vitorioso, algo bloqueou meu caminho com uma pancada que me levou ao chão. Fitei horrorizada àquele pedaço de madeira grotesco: lá estava a maldita árvore novamente. Busquei algo que pudesse me auxiliar a derrubá-la, mas não havia nada. Fitei os resquícios do pôr-do-sol que penetravam pelas copas das arvores, apenas então percebendo que nenhuma outra se aproximava à centenária, mas que formavam um pequeno circulo ao seu redor, como se estivessem nos observando. Uma brisa fria me atingiu, eriçando os pelos de minha nuca. Estava pronta para tentar uma nova fuga quando um movimento afastou todo e qualquer pensamento.

Pisquei várias vezes enquanto as raízes se afastavam, revelando uma espécie de entrada oculta no tronco. Contive o desejo de me aproximar — essa coisa de Alice entrando na toca do coelho nunca me pareceu uma ideia atraente, mas não foi preciso um único movimento para que eu fosse enlaçada pela armadilha.

Imagens invadiram minha mente. Eram tantas e passavam tão rapidamente que logo me deixaram tonta, a luz estava intensa demais, fazendo com que meus olhos ardessem, e mesmo ao fechá-los continuava sendo cegada. Quando finalmente consegui abri-los, meu coração veio à boca ao avistar um Jacob inconsciente completamente imobilizado por àquelas raízes medonhas. Estava ajoelhada a sua frente sem sequer efetuar um movimento, não seria necessário porque é isso que ele faz: Jacob me atrai como um ímã, e me prende.

Procurava desesperadamente uma forma de soltá-lo quando um riso sarcástico preencheu todos os espaços, ergui os olhos e minhas mãos soltaram as raízes, afastei-me lentamente encarando a forma monumental. Acima da minha cabeça, debruçando-se para fora da árvore, mas ainda fazendo parte dela, minha mãe sorria.

Era difícil definir onde sua pele acabava dando lugar às cascas da árvore, mas o que definitivamente me desestabilizou foi a forma alucinada com que Jacob me encarava, o modo com que um realmente parecia fazer parte do outro, como uma extensão do mesmo ser.

— Sabe que jamais será boa o suficiente para salvá-lo, não sabe? Você é o que sobrou depois do nada.

Com os olhos fixos em Jacob, deslizei um pé para trás o mais discretamente possível, mas não foi o suficiente. Ela notou, e um novo riso irrompeu.

— Jacob, querido, diga a ela.

Havia uma sombra sobre seus olhos, um espaço vago.

— Você me tirou tudo — disse com uma voz soturna. — Eu nem mesmo a queria! Mas você me invadiu como uma droga, e me acorrentou. É engraçado para você? Divertido? Me fazer de idiota, fugir... me trair.

— O que? — perguntei sem fôlego.

— Eu sei o que tem feito, sei tudo sobre você. Não pode se ver livre de mim assim como eu não posso me livrar de você.

Queria mostrar que ele estava errado, a cada dia, é tudo o que tenho feito. Estava disposta a fazer o que fosse preciso para esquecê-lo.

Meus pés empurraram o chão com todas as forças em direção a floresta.

— Por que ainda tenta? Jamais conseguirá fugir — disse Jacob com uma voz cansada.

Após alguns metros de corrida fui impelida da área verde para o mesmo ponto, sendo obrigada a encara-los. Estava pronta para fugir mais uma vez quando Jacob pareceu se cansar da brincadeira: ele lançou as raízes que o abraçavam em minha direção. As duas primeiras atingiram meu pulso e meu pé esquerdo, que estava descalço, perfurando a pele e o osso como uma estaca, prendendo-me a algum ponto invisível; a duas outras atingiram os mesmos pontos do lado direito, prendendo meus braços e pernas eretos longe do corpo, me pendurando no ar. Uma quinta enrolou-se em meu pescoço, impedindo que o ar chegasse a meus pulmões; tentei lutar, mas os movimentos faziam com que a raiz o apertasse cada vez mais.

— Você não vê? — perguntou Bella. — Estamos em suas entranhas.

Pude vislumbrar meu pai, Rosalie e Emmett aprisionados ao tronco, então meus avós, Jasper e Alice; Jacob começou a se unir a eles, fundindo-se à árvore e à minha mãe. Então o rosto dela se tornou o meu.

Minha cabeça pulsava violentamente.

Um som estridente invadiu meus ouvidos, e só então percebei que estava gritando, encolhida em posição fetal, afundando a cabeça no travesseiro.

Forcei meus músculos retesados a relaxarem lentamente. Era apenas um pesadelo, eu logo acordaria.

Como que para confirmar a teoria, vi-me em meu quarto em Volterra. Eric estava ajoelhado ao lado da cama me dizendo alguma coisa, mas eu continuava a ver a árvore e os rostos apesar de meus olhos estarem abertos. O pesadelo não recuaria.

O riso de minha mãe ecoou em meus ouvidos. Senti-me chacoalhar.

— Ouça-me Renesmee, tu precisas separar o que é real do que é tua imaginação. Concentra-te! — dizia Eric. Tentei ficar com ele, seguir sua voz, mas havia folhas de outono pelo chão do quarto.

Cambaleando, fui até a parede de espelho no corredor entre o closet e o banheiro, precisava garantir que não estava me transformando naquela árvore, mas quando encarei meu reflexo, era a imagem de minha mãe sorrindo sarcasticamente que eu via. Lancei meu corpo em direção ao espelho, vagamente ciente do vidro cortando minha pele, mas a imagem continuava intocável, ela repetia suas palavras. Investi conta à parede com ainda mais violência, gritando coisas que nem mesmo eu era capaz de entender. Mais vozes se juntaram à de Eric, mas eu nao estava ouvindo. Precisava acabar com aquela árvore, destruí-la.

Não sei se alguém conseguiu me conter, ou se simplesmente bati a cabeça com tanta força que acabei apagando. Não importa. Eu finalmente pude ter a esperança de não mais precisar acordar por mim mesma.

Na manhã seguinte havia um notebook sobre a escrivaninha, preso à fita vermelha que o envolvia, um cartão:

Cara mia,

É nos momentos difíceis que descobrimos quem realmente somos. Enquanto não conseguir enxergar, apenas divirta-se.

Aro

Seth adentrou a casa absorto em pensamentos, a garrafa de absinto pela metade. Estava terrivelmente exausto. Convencer sua irmã de que estava pronto para voltar para casa fora mais difícil do que qualquer um poderia prever. O que estava esperando? Que ele fosse morar com ela? Que voltasse para debaixo das asas de sua mãe? Não. Ele tinha sua própria casa mal-assombrada, e gostava muito dela.

Subiu as escadas ansioso para encontrar uma cama, lamentando profundamente por ter quebrado a sua. Mas, espere, o colchão ainda estava em seu quarto! Um pouco sujo... E ele teria que retirar os destroços dos móveis que quebrou, mas isso era o de menos. Finalmente iria dormir em sua própria cama!

Parou confuso ao entrar no quarto, não esperava que tivesse alguém lá. Analisou a sombra por alguns minutos, tentando identificar quem poderia ser a pessoa inconveniente que atrasava seu sono, até que se lembrou de ascender à luz.

Quando finalmente conseguiu abrir os olhos zangados pela claridade, e pôde enxergar a forma a sua frente revirando o que sobrou de suas coisas, seu corpo começou a tremer.

— O que está fazendo aqui? — rosnou.

— Eu... er... Desculpe, Seth. Eu apenas estava... — gaguejou Tarcisio. O garoto respirou profundamente. — Estou procurando pistas do paradeiro de Sophia.

Seth fechou os olhos com força, tentando controlar a respiração.

— Saia da minha casa.

— Ela não pode simplesmente ter desaparecido, cara! Tem que haver algo aqui... Qualquer coisa!

— Isso não é problema seu. Saia daqui agora!

Tarcisio pensou em argumentar, mas sabia que seria inútil. Começou a se aproximar de Seth, teria que passar por ele para chegar à porta.

— Não acredito que a deixou ir embora — resmungou antes de sair.

A garrafa caiu no chão tornando-se apenas pedaços débeis de vidro, o líquido verde manchando o tapete, mas nenhum dos dois teve tempo de perceber, ou de se importar com isso.

.

Jacob percorreu os três quilômetros da estreita estrada residencial ensaiando um duro discurso, convicto a arrastar Seth a casa dos Symoné e a obriga-lo a pedir perdão, pois era o certo a fazer, mas se abalou ao se aproximar da casa que agora parecia tão estranha e incompleta. A única fonte solitária de iluminação provinha dos fundos.

Ele tocou a campainha uma, duas, três vezes, mas não houve qualquer sinal de que o local era habitado. Então entrou, seguindo a luz como um vagalume.

Seth estava sentado em uma espreguiçadeira, encarando a água da piscina como se ela estivesse escondendo algo. O garoto fingiu não notar a presença do Alfa, mesmo quando ele se sentou ao seu lado.

Jacob não tinha a menor ideia do que dizer, então preferiu ir direto ao ponto.

— O que houve com Tarcísio?

— Ele invadiu minha casa — respondeu com ácida indiferença.

— E você espancou um garoto de dezessete anos!

— Não foi tão ruim assim tá legal? — Seth o encarou pela primeira vez. Seus olhos revelavam um grau de sanidade contestável. — Não faça parecer uma tentativa de homicídio.

— Mas bem que poderia. Você quebrou pelo menos seis ossos! Tem ideia do desespero e da revolta dos pais dele? Nós somos uma família, cara, cuidamos uns dos outros lembra?

— Tá de volta a matilha, é? Vai dizer agora que se importa?

Eles se encararam por longos minutos, avaliando se valia a pena entrar em uma discussão que apenas os levariam a dizer coisas cruéis das quais se arrependeriam.

— Você tem razão — Jacob relaxou a postura. — Desculpe por ter abandonado tudo na sua mão.

A expressão de Seth suavizou pouco a pouco, mas o olhar torturado permaneceu manchando as feições puras, obscurecendo-as. Parecia pálido e desconcertantemente menor, ainda que efetivamente não houvesse nenhuma mudança física, além das profundas olheiras e dos olhos mais escuros.

Desde quando ele estava assim?

Com um golpe de consciência Jacob se deu conta de que havia mergulhado tão profundamente em sua dor, que não foi capaz de perceber que seu melhor amigo precisava de ajuda — porque perder alguém é terrível, mas ser abandonado não é muito mais fácil. — E, no entanto, Seth esteve ali o tempo todo, lhe dando apoio e recebendo apenas ingratidão em troca.

— Foi mal cara — disse o líder o abraçando.

— Tá Jake, chega. — Soltou-se.

— Er... Seth.

— O que?

— Posso te fazer uma pergunta?

— Desembucha.

— Por que não foi atrás dela?

Seth respirou profundamente.

— Quando a pedi em casamento... Deus, tive tanto medo que me deixasse! Pensei que me mataria, que diria que eu estava louco... — sorriu amargamente. — Ao invés de responder, ela me fez jurar que se um dia quisesse seguir outro caminho, eu a deixaria partir. Eu jurei que nunca a impediria de ser livre.

— O que? Mas ela aceitou.

A expressão cansada de Seth era a de quem explicava algo pela milionésima vez.

— Sophia disse que o “sim” era uma promessa de me amar para sempre” — seu tom tornou-se colérico nas últimas palavras —, mas que isso não significava que nunca partiria.

— Isso não faz sentido.

— Ela não é minha Jacob, nunca foi, e nunca cansou de me lembrar disso. — Uma lágrima solitária lhe acariciou o rosto. — E a cada dia, a cada segundo desde que a vi pela primeira vez, tentei fazê-la mudar de ideia. Cheguei a pensar que enfim estávamos em paz, que podíamos seguir em frente e formar uma família; jurei que nunca o faria, mas a estava pressionando.

— Oh, cara! Você não pode se culpar por querer ir mais além ou por esperar qualquer coisa. Casar, ter filhos... esse é o caminho natural para duas pessoas que se amam, entende?

Seth assentiu, seu olhar escravizado encarando o horizonte.

Seu celular passou a tocar uma melodia personalizada para chamadas de números desconhecidos. Desgostoso, tentou ignorar, mas a música não parava...

— Talvez devesse atender — disse Jacob pegando o aparelho da mesa ao seu lado e o entregando ao amigo. Não pôde evitar visualizar a chamada que certamente era internacional —, pode ser importante.

Com um vinco na testa Seth fitou a tela iluminada por alguns segundos, há muito havia decorado o prefixo. O que o faria ligar depois de tanto tempo? Eles não tinham mais nada em comum.

— Cara, você está bem? — perguntou Jacob ao perceber que a luz fazia a pele de Seth parecer possuir um tom acinzentado.

Ao invés de responder ele pressionou o botão atender e levou o telefone ao ouvido lentamente. Sem encontrar palavras, eles ficaram em silêncio, um ouvindo a respiração do outro durante alguns segundos.

— Alô — disse Seth finalmente.

— Seth... Como andas?

— Ela me deixou Eric, não perca seu tempo.

Sem esperar por uma resposta, Seth atirou o aparelho na piscina, vendo-o afundar como se estivesse em transe.

— Seth? O que está acontecendo? — perguntou Jacob, mas o garoto seguia com o olhar fixo na agua. — Quem é esse Eric?

Seth recostou-se com uma expressão amarga.

— O único que Sophia foi realmente capaz de amar.

Sou uma garota incomum.

Não por minhas origens, não por ter sido criada por vampiros que não se alimentam de sangue humano, mas por ser quem sou, e nada mais.

Sempre fui o que há entre os dois lados, o meio do caminho, pois não sou uma coisa nem outra. Entendo muito melhor o que parece incompreensível, me identifico com coisas que não se encaixam mesmo fazendo parte de alguma coisa. Gosto de dificuldades. Escolho sempre o pior caminho e, de certa forma, prefiro o que parece errado.

Quero sempre mais dos vilões, acho os mocinhos terrivelmente chatos e idiotas. Tenho essa ótica invertida.

Gosto de imaginar o que aconteceria depois do final da história. “E viveram felizes para sempre” nunca pareceu suficiente, pois algo perfeito logo se torna entediante.

Demorei muito para entender que esse apenas não era o final que eu queria para mim.

Eles seguiam pelo mesmo caminho que percorreram há sete anos, a trilha embrenhada na floresta os levaria novamente ao clã que causara a maior parte dos problemas.

Os Cullen os haviam enfrentado publicamente, saindo impune, levando outros clãs a acreditarem que poderiam fazer o mesmo, que talvez os Volturi pudessem ser vencidos. Os movimentos dos rebeldes eram sutis, apenas alguns boatos se espalhando... Atualmente a dizimação dos Cullen seria mais prejudicial à imagem dos Volturi que sua existência, e este era o único motivo pelo qual suas vidas haviam sido poupadas até então, mas, todavia, a paz não seria concedida, os Volturi possuíam ao menos meia dúzia de motivos públicos para observá-los de perto.

A formação seguia imperturbável.

Não era comum que quatro guardas fossem pessoalmente entregar uma carta, mas o convite de uma vista seria um lembrete muito mais claro que os votos de felicitações à mestiça.

Há distância, o ruído que acentuava a imprudência humana teria sido ignorado se Alec não tivesse parado. Ele o seguiu obstinado, ignorando os protestos da irmã — jamais esqueceria aquele cheiro.

Os outros apenas entenderam o que havia sido encontrado quando Alec retirou o corpo da garota dos destroços. Ele limpou o sangue do rosto da jovem com a capa preta, apenas para confirmar a certeza que já possuíam.

O som puro da risada de Jane ecoou pela floresta.

— Ora, ora! Então a princesa Cullen veio ao nosso encontro... — sorriu. — Muito bem, irmão!

— Precisamos nos apressar, eles a devem estar procurando — lembrou Felix depois de se livrar da surpresa inicial.

— Sim, meu caro — concordou a vampira. — O que devemos fazer com ela?

— Talvez seja melhor não ser você a decidir — começou Demetri. — A vidente sabe que é você a tomar decisões.

Ela o encarou com fúria, mas antes que ele pudesse sentir a dor, Jane ponderou a respeito.

— Está certo. Você, irmão, a encontrou, portanto deve decidir.

Como se estivesse ouvindo, a garota se moveu em seus braços, abrindo os olhos por alguns segundos antes de desmaiar novamente.

Alec não precisou refletir a respeito.

— Vamos para casa.

Um relógio pode parar de tiquetaquear, mas nada pode deter o tempo e o poder que ele exerce sobre nós.

Pouco a pouco e não intencionalmente, fui formulando uma espécie de rotina: tomar café da manhã com Eric no jardim, correr pelo perímetro do castelo, plantar e colher frutas e verduras, cuidar das rosas, banho, almoço, ler na biblioteca mais esplendida do mundo, chá da tarde, limpar o quarto ou a cozinha, encontrar-me com Eric e fazer qualquer coisa que passe por nossas mentes problemáticas, ou simplesmente não fazer nada. Atividades podem ser incluídas ou retiradas do roteiro, mas esta é minha base diária de distração.

Então se cria algo em comum.

Inofensivamente você se habitua e sem querer vai se encaixando, moldando-se à nova realidade; compreende que novos rostos são novos apenas por um dia. É apenas um lugar diferente com costumes diferentes.

Aqui é tão quieto e solitário... mas algo faz parecer com o que chamam de casa.


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Notas finais do capítulo

*Escrevi somente essa cena sobre a infância da Sophia, mas acho que foi o suficiente para vocês entenderem como ela foi criada. É claro que isso tem muito a ver com a mulher que ela se tornou. Espero que tenha dado para conhecê-la um pouco melhor, e que isso ajude vocês a entenderem porque abandonar o Seth foi tão devastador para ela.

*Não sei se alguns de vocês já passaram ou se já conviveram com alguém que estava passando pelo período de luto, mas devo dizer que é um momento da vida conturbado, de muita instabilidade emocional, que varia muito de uma pessoa para a outra. Eu senti a necessidade de contar como Bella e Edward passaram por isso, e também sobre a Rosalie. Alguns de vocês podem achar que eu falei pouco sobre o Jacob, mas o processo dele é mais longo, com mais etapas.

*Enquanto isso Renesmee está se adaptando aos Volturi, mudando conceitos e criando uma rotina. Seus poderes estão mais fortes e completamente fora de controle. Ela está muito instável. Mas não se engane: Renesmee é um camundongo no laboratório mais imprevisível e perigoso que existe.

E aí, o que acharam? Me conteeeem!
Até mais!



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