Caçador escrita por Lian Black


Capítulo 66
O carinha da barba maneira


Notas iniciais do capítulo

Lana, espero que entende a citação no título. Na verdade, nem sei se você ESTÁ lendo isso. Se estiver, sabe de onde tirei a ideia.



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Chuck ainda nem estacionou o Dodge e eu já abri a porta e pulei para fora, com o carro ainda em movimento. Saio correndo na direção do hotel, não parando para nada.

É fácil achar o quarto. É o único com uma linha de sal em frente à porta. Por um segundo penso que vou ter que arrombar, mas a porta está destrancada. Imagino que Joe não esteja preocupado com nada que se deixe intimidar por uma fechadura.

Joe está sentado em uma cadeira ao lado de uma das camas, com uma mochila largada na mesa principal. Jenne está deitada na cama. Uma mancha vermelha cobre seu tórax.

Joe pestaneja e olha na minha direção. Então seus olhos se arregalam.

— Lian! — Ele não consegue esconder o alivio na voz. — Como nos achou?

— Tenho meus truques. — Respondo. — Por que parou aqui?

— Eu precisava dormir um pouco, e imaginei que uma cama seria melhor para Jenne. — Sua voz falha na última palavra.

Me aproximo da cama, fitando Jenne. Como na imagem no cálice, ela está nua da cintura para cima. Mas o sangue a cobre totalmente. Um corte imenso, indo desde a base do pescoço até a cintura, pulsa de uma forma que me dá ânsias de vômito. A ferida é horrível. Vejo pedaços das costelas e dos órgãos vitais, inclusive um pouco do intestino dela. Incrivelmente o corte parece sangrar menos do que deveria. Até por que, sou obrigado a raciocinar, se isso aqui estivesse sangrando, ela já teria perdido uns cinquenta litros de sangue.

— Como é possível? O ferimento é fatal, ela devia ter morrido. — Eu murmuro, quase entrando em um transe.

Joe pergunta alguma coisa, mas eu não ouço. Com a sutileza de um caminhão desgovernado, a verdade me atinge. É óbvio o motivo dela ainda estar viva. Meu corpo fica gelada. Mal percebo quando Megan e Chuck entram no quarto.

Jenne devia estar morta. O único motivo dela ainda estar respirando é que ninguém veio levá-la ainda. As fronteiras da morte estão caindo aos pedaços, e parece que os Ceifeiros não estão dando conta do trabalho. As almas já estão vazando e algumas pessoas estão sobrevivendo. Se continuar assim...

Um zumbido insistente ecoa em meus ouvidos. Balanço a cabeça, tentando fazê-lo parar. Só depois de alguns segundos percebo que Megan está tentando falar comigo.

— Lian? Lian! O que vamos fazer agora? Ei, você está me ouvindo?

Ergo uma mão, sinalizando para ela esperar e fazer silêncio. Minha mente está a todo vapor, calculando os riscos, planejando o próximo passo. Um sorriso sinistro adorna minha face. Isso é um jogo, e tudo é uma questão de apostar e deixar os dados rolarem.

Me levanto e olho para eles. Megan está me olhando de uma forma estranha, e levo apenas alguns segundos para perceber que está tentando se controlar. Joe parece meio morto, um zumbi para ali na minha frente, mas um leve brilho de esperança apareceu em seus olhos. Chuck examina Jenne com uma curiosidade profissional. Faço uma careta ao lembrar que parte da profissão dele era fazer aquilo com as pessoas. Excluo o pensamento. Não tenho tempo para distrações.

— Chuck, leve Jenne para o GTO de Joe. Temos pouco tempo para salvá-la. Logo algum Ceifeiro vai vir terminar o serviço. — Me viro para Joe. — Nos siga o melhor que der. Eu tenho uma ideia que pode dar certo, mas precisamos chegar lá. — Começo a andar na direção da porta. — E dessa vez eu dirijo.

Os três levam um instante para começar a se mover. Não posso culpá-los. Nos últimos dias eu mesmo tenho trabalhado na base do desespero, cafeína e doses altas de adrenalina constante.

Megan senta ao meu lado do Dodge. Tamborilo os dedos no volante enquanto espero, impaciente. Sigo com o olhar Chuck levar Jenne para o GTO e depois vir para o Dodge. Assim que vejo que Joe está no banco do motorista, dou a partida e piso no acelerador.

As próximas horas são ultrapassagens a alta velocidade, velocímetro acima do dobro do permitido e uma playlist completa de rock. Quando eu finalmente saio da auto-estrada e entro em um estacionamento de trailers, quase não consigo tirar as mãos do volante, de tão rígidos que ficaram meus dedos.

Megan me olha sem entender quando estaciono e desligo o Dodge. Ignoro sua confusão e abro a porta, saindo do carro. Chuck também parece estar confuso, mas depois de alguns segundos sua expressão muda e se torna uma carranca.

Ele é seu plano? — Chuck pergunta, sem esconder o desagrado, me seguindo.

— Tem uma ideia melhor? — Chuck não responde.

Joe desce do carro, tão confuso quanto Megan. E também é ignorado. Sem hesitar, Chuck abre a porta do GTO e pega Jenne no colo. Eu mesmo faria isso, mas estou tão cansado que poderia deixá-la cair. Normalmente nunca que uma garota magrela e baixinha seria mais forte que eu, mas imagino que ter um demônio no corpo seja muito mais eficiente do que usar esteróides.

Desvio de trailers, varais improvisados e sacos de lixo, ignorando latidos de cachorros e outros ruídos menos importantes. Vou até um dos últimos trailers, branco com a pintura descascando, e as janelas sujas. Um daqueles trailers motorizados.

Bato na porta. Espero alguns segundos e bato de novo, mais forte. Espero mais alguns segundos e bato mais forte. Estou quase me preparando para arrombar quando finalmente ouço passos e o ruído da fechadura.

A porta se abre e o dono do trailer aparece na entrada, me olhando com uma cara de sono cheia de irritação. Trinta e poucos anos, pele clara e cabelos castanhos. Muito cabelo castanho. Cai abaixo dos ombros, e uma barba longa contorna o queixo. Seus olhos azuis brilham ao me reconhecer e ele dá um passo para trás empalidecendo.

— Você! — Ele fala, parecendo ter vontade de fugir.

— É, eu. — Replico sem paciência. — Olhe, eu tenho um problema e preciso de sua ajuda. E você me deve um favor.

Ele me examina por um momento, pensativo. Parece ter acabado de sair da cama, de bermudas e com uma camiseta branca surrada. Seu olhar se foca em algo atrás de mim. Olho por cima do ombro e vejo Chuck carregando Jenne.

— Traga-a para dentro. — Robert fala, entendendo o que eu quero.

Robert recua dando espaço. Eu entro e olho para Chuck. Com óbvia repugnância, Chuck avança. Então paralisa na entrada do trailer. Levo um segundo para perceber a armadilha desenhada na entrada. Com um grunhido me abaixo e raspo um pedaço com meu punhal. Chuck assente agradecendo e entra.

Enquanto Chuck larga Jenne na cama desarrumada, olho em volta. O trailer parece ter sido atingido por um furacão, e pelo cheiro Robert já está morando aqui há algum tempo. Ignoro a bagunça, as latas de cerveja jogadas pelos cantos e as peças de roupa. Se Robert conseguir salvá-la, eu seria capaz de arrumar isso eu mesmo. E eu detesto fazer limpeza.

Chuck se afasta um passo e abre espaço para Robert se aproximar, indo se escorar numa parede, o mais distante possível. Megan e Joe esperam na porta. Eu e ela trocamos um olhar, o bastante para eu entender.

— A coisa foi feia. — Robert murmura, examinando o corte. — Muito feia. Nunca vi nada parecido. — Ele franze o nariz e olha para trás, na direção de Chuck. — Demônio?

— Mestiço. — Chuck devolve. Bom, tecnicamente Robert é um mestiço. — Algum problema com isso, bastardo?

Robert se ergue, olhando com uma expressão irritada para Chuck.

— Nenhum. Só queria saber por que meu trailer está fedendo a carniça do Inferno.

— Há fedores piores aqui, cria de passarinho. — Chuck retruca, cruzando os braços. Seus olhos estão completamente negros.

— É, talvez. Mas faz dois minutos que estou sentindo o cheiro de rabo queimado. — Robert devolve num tom intenso.

Seguro Chuck pelo braço antes que ele avance.

— Querem para de bancar as crianças? — Eu interrompo. Normalmente seria engraçado ver a briga, um demônio puxando briga com um filhote de anjo. Mas tenho coisas mais urgentes no momento. — Jenne está quase pronta para fazer parte da próxima temporada de The Walking Dead, então se continuarem perdendo tempo eu vou pegar uma arma e começar a atirar.

Chuck bufa, mas recua, seus olhos voltando para a cor normal da garota. Ele volta a se escorar na parede e levanta as mãos, em sinal de rendição. Olho feio para Robert até ele desviar o olhar, constrangido.

— Pode curá-la? — Pergunto, indo direto ao assunto.

Robert olha para Jenne, coçando a barba.

— Talvez.

— Você é filho de Gabriel e já ressuscitou pessoas. É claro que consegue.

Robert continua inseguro.

— Isso era outra história. Havia pouco dano, pouca coisa para curar. Isso aqui é muito extenso.

— Tente. — Eu peço. — Por favor, Robert, você me deve essa.

Robert suspira.

— Ok, vou tentar. Pode me passar aquela garrafa ali?

Robert aponta para uma garrafa de vidro escuro que parece cheia até metade. Vejo pelo rótulo que é conhaque.

— Desinfetar ou coisa do tipo? — Pergunto ao entregar a garrafa, me lembrando dos velhos métodos de faroeste.

— Não. — Robert replica, tomando um longo gole. — Preciso me preparar para isso.

Reviro os olhos. Perfeito, estou deixando o bêbado tomar conta da Jenne. Que seja.

Chuck continua parado, observando Robert atentamente. A figura é quase engraçada, da garota gótica baixinha, mas não me resta muita energia para rir. Robert murmura algumas coisas enquanto estuda o ferimento.

— Hey, Lian, será que pode sair daqui? Vá lá para fora, te chamo quando terminar. — Robert pede.

— Por quê? — Pergunto assustado.

— Você está me dando nos nervos.

Percebo que devia estar caminhando de um lado para o outro, provavelmente mexendo em tudo que estava ao alcance. Se quando estou tranquilo já faço isso, quando estou nervoso então minha hiperatividade deve explodir.

— Ah, certo, desculpe.

Robert resmunga qualquer coisa enquanto saio do trailer. Megan está escorada ao lado da porta, examinando o horizonte. Não vejo sinal de Joe.

— Está no carro. Eu o obriguei a ir pra lá. Parecia prestes a pôr um ovo. — Ela olha para mim. — Ele também te expulsou lá de dentro.

— Algo do tipo. — Admito.

— Como Robert pode estar vivo? Eu vi você atirar nele. Vi o furo no peito e o sangue escorrendo. Aquilo não foi uma encenação. Ele morreu.

Solto uma risada rouca.

— Culpa minha. Eu não fui totalmente sincero com você.

Megan estreita os olhos.

— O que quer dizer?

Sento nos degraus do trailer e tento manter as mãos paradas.

— Você não achou meio estranho ele simplesmente aceitar que eu o matasse? Todo aquele papo de “aceitar as consequências”? Eu tinha um plano, e Robert entendeu ele de primeira.

— Plano. — Megan destaca. — Você sabe o que eu penso dos seus planos, certo?

— Esse funcionou que foi uma maravilha. Na verdade, a maioria funciona, lembra? — Megan resmunga qualquer coisa. Tomo isso como uma afirmação. — Então, eu tinha poucos precedentes para me basear, mas supus que não seria tão fácil matar Robert. E supus certo. Os filhos dos Arcanjos possuem duas vidas. Foi assim que o carinha da barba ressuscitou dois mil anos atrás. Só que ele achou que era imortal, então da segunda vez deu merda.

— Você forjou a morte dele? — Megan pergunta incrédula. — Todo aquele papo sobre os Ceifeiros se intrometerem por ele interromper a morte e coisa do tipo, era piada?

— Não exatamente. É claro que os Ceifeiros não ficariam exatamente felizes com ele. Na verdade, nos aproveitamos uma chance. Robert precisava de um bode expiatório, uma forma de fugir da perseguição. Com a suposta morte, ele tirou da cola demônios, Ceifeiros, anjos e toda criatura que queria sua cabeça. Eu lhe dei uma chance de fugir e apagar a existência do mapa, e ele ficou me devendo um favor. Ah, claro, eu não forjei a morte. Ele morreu mesmo, só que voltou.

Megan balança a cabeça.

— Bom, pelo menos ele pode ajudar Jenne.

— É — eu concordo. — Ajudar Jenne.

Olho para o céu, fitando as estrelas que começam a surgir. Agora que fiz tudo que podia por Jenne... Não sei o que vou fazer em seguida. Parar o Apocalipse? Adoraria, só que não posso fazer nada para evitá-lo. Nenhum Caçador pode. Dessa vez não foi algum demônio ou anjo, ou coisa pior, não, dessa vez foram os próprios humanos que começaram.

— Você está bem? — Megan me pergunta, parecendo preocupada.

— Estou... Eu acho. É só que... Tudo é tão estranho.

— Defina estranho. — Megan pede. — Nossa vida é estranha.

— Estranho até para nós. — Eu acrescento. — Olhe, isso é... A guerra não me pegou completamente desprevenido. Venho percebendo a tempo que isso ia acontecer. A tensão entre o bloco Europeu e os EUA com a o Bloco Asiático... Era óbvio que uma hora ia estourar. Só o alvo me pegou completamente de surpresa. Qual é o sentido de atacar o Brasil? Sempre achei que o primeiro ataque seria aqui, talvez Manhattan ou Washington, mas não. O Brasil é um país neutro, tem boas relações com ambos os blocos econômicos... Não vejo motivo.

— Talvez não haja motivo. — Megan opina. — Um ataque aleatório apenas para começar a guerra? O Brasil seria um centro de refugiados, como país neutro, e provavelmente a Amazônia deve manter alguns governos abastecidos com recursos biológicos. Uma jogada estratégia nas linhas de abastecimento do inimigo?

— Talvez — respondo, em dúvida. — Mas não faria sentido. Foi um ataque desperdiçado.

Megan dá os ombros.

— Não parece ter feito muito efeito. A mídia está levando como um acidente isolado, aparentemente a guerra não foi declarada.

Solto uma risada desanimada.

— Não oficialmente. Estão apenas esperando. O próximo tiro vai ser o estopim oficial... E é só uma questão de tempo até ele ser lançado.

— Você está bem otimista hoje.

— É realismo... Mas não é isso o mais estranho. — Me contenho para não olhar para dentro do trailer. É com Robert agora, não posso fazer mais nada. — Eu esperava... Não sei o que eu esperava. Talvez algo mais parecido com os filmes, ou coisa do tipo. Um inimigo poderoso que descobriu um jeito de desencadear o Apocalipse. Eu iria lá lutar contra ele. Ou eu morria, ou evitava o Apocalipse. Mas isso... É praticamente uma bagunça. A Organização pretendia começar o Apocalipse e controlar o rumo dele com os super-soldados do sangue de Ceifeiro, mas Lúcifer se adiantou e destruiu a Organização, e agora ele iniciou o Apocalipse. Fez os humanos começarem o Apocalipse.

— Você nunca explicou o que é essa Organização... — Megan comenta, se sentando ao meu lado.

— Nem vou. Há coisas que você não precisa saber. — Solto um suspiro. — Tanta coisa que deveria ter feito, se eu não tivesse passado os últimos anos fugindo deles e caçando monstros menores... Bom, imagino que não se possa mudar o passado.

— Adoraria que você estivesse certo — Robert nos interrompe. — Mas os anjos adoram mostrar que estamos errados.

Me levanto num pulo e olho para ele.

— Jenne...? — Não consigo terminar a pergunta.

Robert abre um pequeno sorriso cansado.

— Deu trabalho, mas ela está melhor. Vamos, entre.

— Vou chamar Joe — Megan se oferece.

Nem escuto o que ela disse. Pulo para dentro, empurrando Robert para o lado.

Jenne está deitada na cama, no mesmo lugar que Chuck a colocou, com um cobertor cobrindo-a. Sua palidez mortal se desvaneceu, e a respiração está mais estável. Parece estar dormindo.

Me abaixo ao seu lado. Como se pressentisse o movimento, Jenne abre os olhos e me fita.

— Por que está me olhando como se eu tivesse morrido?

— Porque você morreu. — Eu respondo, não conseguindo evitar um sorriso largo.

— Besteira, foi só um arranhão. — Ela tenta se levantar, então perde o equilíbrio e cai deitada de novo. — Ok, vou ficar deitada se não se importa.

— Lian? — Megan chama. — Você vai querer ver isso.

Olho para trás, curioso. Megan não está me olhando. Está pálida, de olhos arregalados, observando uma pequena TV em um canto. Sigo seu olhar confuso.

A TV está no mudo, mas o letreiro na noticia é o bastante.

OCÊANIA DEVASTADA POR MÍSSEL NUCLEAR. TERCEIRA GUERRA MUNDIAL DECLARADA.

Engulo em seco, meu sorriso morrendo no rosto.

— Megan, lembra quando disse que já tinha enfrentado zumbis para uma vida toda?

— Lembro. — Ela responde, meio catatônica.

— Esquece o que eu disse. Eu preferia um apocalipse zumbi.


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Notas finais do capítulo

Hey, se tem alguém acompanhando ainda, e imagino que tenha por causa do contador de acessos, por favor, deem um sinal de vida. Um olá, ou sei lá o que nos comentários. Sei que mereço uns 180 dias de vácuo depois do hiato, mas... Vocês não são vingativos, certo?



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