Caçador escrita por Lian Black


Capítulo 65
Sonhos


Notas iniciais do capítulo

Desculpe a demora. Atinei ontem que não tinha postado esse capítulo.



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— Você devia ir dormir. — Megan avisa.

— Por quê? — Pergunto, sem desviar os olhos da estrada.

Megan bufa.

— Você tem se mantido acordado nos últimos dias com doses incrivelmente altas de cafeína, deve ter mais cafeína no seu sangue que numa fábrica da Coca-Cola. Está com um tique nervoso e as mãos estão tremendo. Além de estar com cara de quem passou os últimos dias acordado vendo TV... Espere, você passou!

Olho para Mega, uma parte da minha mente analisando seu sarcasmo. Outra parte prestando atenção na estrada, outra na música, outra pensando no que vamos fazer para deter o Apocalipse, outra pensando em Jenne, outra...

Ok, acho que ela está certa.

De má vontade, encosto o carro no acostamento e deixo Chuck assumir o volante. Deito no banco de trás, tendo certeza que não vou dormir. Tenho coisas demais na minha cabeça, cafeína demais no meu organismo.

É claro que, como sempre, isso não faz diferença. Tenho a habilidade de dormir onde e quando quiser, e a cafeína nunca me manteve acordado.

Algo que quero deixar registrado para as posterioridades: eu odeio meus sonhos.

Antigamente eu adorava. Sabe, sonhos ótimos e relaxantes. Normalmente algum fantasma ou demônio me perseguindo, talvez um Wendigo tentando arrancar minha cabeça. Eu amava.

Agora, se Morpheus existe realmente, ele está tentando me irritar.

O sonho começa como qualquer um dos outros irritantes. Estou voltando para casa depois de um dia normal no trabalho, num escritório de contabilidade! Pior de tudo: eu estou usando um terno. Não, espere, pior ainda: eu me sinto confortável com ele. Estou assoviando e andando tranquilamente na calçada, numa rua cheia de casas comuns, numa vizinhança pacata.

É, pesadelo, definitivamente.

Chego em casa. Uma casa com pintura clara, bem arejada, e gramado bem aparado. Uma cerca branca de madeira baixa cerca o jardim, e um caminho de cascalho leva para a garagem, onde um Honda Civic está estacionando, recém lavado e brilhando.

Argh, estou com vontade de vomitar.

Abro a porta e entro. Nem estava trancada, vizinhança pacata.

— Querida, cheguei! — Meu eu no sonho avisa. Nunca que essas palavras passariam por meus lábios de verdade, nem pensar.

— O jantar está pronto! — Megan grita da cozinha.

Ok, lado bom dos meus pesadelos. Megan sempre faz parte deles. O lado ruim é que nunca, em hipótese nenhuma, nós faríamos o estilo “casalzinho feliz”. Casar e ir morar numa cidadezinha pequena, boa vizinhança e um trabalho honesto, com uma rotina? Nem que um anjo apague nossas memórias e tente nos sacanear. Já aconteceu, longa história.

Mas meu eu do sonho parece não saber disso, então está totalmente relaxado.

Ele, ou eu, ou tanto faz, larga o casaco num gancho ao lado da porta e a maleta em uma mesinha, depois vai para a cozinha.

Ampla, arejada, pintada com cores claras e com móveis em perfeito estado. A coisa mais perigosa na casa inteira deve ser a faca de cortar carne. Sem armadilhas do diabo nas portas e janelas, o sal fica nos potes e na comida, e não nas portas e janelas.

Megan se aproxima e me beija. Seus olhos brilham de uma forma divertida.

— Chegou cedo.

— O Bill está fechando um negócio com os coreanos, então não precisa de mim. Resolvi encerrar o expediente mais cedo. Peguei um filme na locadora.

Locadora? O que ouve com baixar versões piratas na internet? Virei um babaca certinho?

— Hummm... Que bom. Qual filme?

— Lagoa Azul.

Ok, alguém aperte o pause. Eu preciso vomitar. Sonho tem botão de pause? Ah, que seja. Sonhos não possuem lógica.

É um sonho, sonhos possuem o tempo fluido. Então imagino que eu possa passar uma semana aqui e só ter dormido por uns quinze minutos. Mas eu definitivamente dispensava a sessão de cinema piegas e romântico. O que houve com os filmes de terror?

Agora, seguindo o padrão dos sonhos, vem a parte final. A parte traumática.

Como se todo o resto não fosse traumático, certo?

O filme acaba. Megan sobe para o quarto. Eu fico na sala por mais alguns instantes. Tiro o filme, jogo o saco de pipoca e as latinhas de Coca no lixo, desligo as luzes e subo para o segundo andar.

Vejo pela porta entreaberta que Megan já está na cama. Vou até o fim do corredor, até uma porta pintada de azul claro. Entro sem hesitar.

Não ligo a luz. O luar entrando pela janela é o bastante. Observo Claire e Jake em suas camas. Claire em seus nove anos é um clone da Megan, e Jake parece uma versão mais inocente de mim aos sete anos. A única diferença é o temperamento. Jake puxou a Megan, enquanto Claire puxou a mim. Estão dormindo.

Fico ali, parado, observando os dois por um longo tempo, com uma sensação estranha. Depois de vários minutos suspiro e me viro, preparado para sair.

Ouço o ruído de vidro quebrando. O meu eu no sonho sabe exatamente o que é, antes mesmo de se virar, e o medo contorce suas entranhas como facas em brasa.

Uma figura negra indistinta está empoleirada na janela, os olhos brilhando como fogueiras azuis. Está perto demais das camas, perto demais. O meu eu dos sonhos fica paralisado, sem saber o que fazer.

A criatura na janela pula para dentro do quarto, para cima da cama de Jake. Um movimento rápido demais, um esguicho de sangue, e Jake está morto sem emitir nenhum ruído. Seu peito é uma confusão de carne e sangue.

A criatura se vira para Claire.

Eu reajo. Levado pelo instinto, pulo em sua direção. Ele me joga para o lado sem dificuldades. Perco o ar ao bater contra a parede. Claire acorda com o barulho.

A última coisa que ouço são seus gritos.

Quase caio do banco do Dodge ao acordar. Massageio a cabeça, irritado. A próxima coisa que vou fazer é procurar o maldito deus dos sonhos e dar um soco em sua cara.

O pior dos pesadelos não é o sonho em si, mas o significado. Eu ficar impotente, sem poder fazer nada, ver alguém morrer em minha frente e só poder assistir, vulnerável.

— Lian, você vai querer ver isso. — Megan interrompe meus pensamentos.

— O que? — Pergunto com a voz rouca. Pigarreio uma vez.

Sem responder, ela aponta pela janela. Em um estacionamento de um hotel beira de estrada, um GTO laranja com a pintura arranhada e marcas de fuligem. Na porta do carona, uma mancha vermelha que parece ser sangue.

— Só pode ser piada. — Eu reclamo.


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