Cadente escrita por Sah


Capítulo 13
O Trem




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Meu coração pesou. Eu olhei para eles, acho que eles esperavam algum tipo de felicitação. Mas eu não estava feliz. Eu não me senti bem com essa notícia.

— Legal – Foi a única palavra que saiu da minha boca.

Eles se entreolharam. Acho que eu deixei transparecer a minha insatisfação.

— Estou muito cansada. – eu disse tentando parecer sonolenta.

Suspirei alto. Eu havia dormido bastante na casa do lago. Eu não estava com sono.

— Tudo bem, você pode ir descansar, mas fique sabendo que depois iremos conversar só nós duas. – Ela me disse como um ultimato.

Fui para o meu quarto e fechei a porta com força.

Pulei na minha cama e deitei de barriga para cima. Fiquei por alguns minutos olhando para aquele móbile idiota. Ele girava mesmo com a janela fechada.

Um sentimento de solidão me atinge. Eu não posso chorar mais. Eu não tenho que chorar mais. Esse casamento pode ser algo bom. Minha mãe ficará feliz, por que eu não posso ficar feliz também? Eu me tornei tão egoísta a ponto de desejar que nada dê certo?

Continuo olhando para o móbile. Me lembro de quando compramos. EU nunca fui de pedir nada para a minha mãe. Eu apenas aceitava o que ela me proporcionava. Mas eu amava aquele urso. De um desenho que passava na televisão. Aquele urso verde que aquecia o meu coração todas as manhãs. Meu único desejo era tê-lo. Acho que esse foi o primeiro pedido que eu fiz para o papai-noel. Ganhar roupas na manhã de natal me deixou muito chateada. Foi a primeira vez que eu fiquei decepcionada. E esse sentimento me deixou doente por vários dias. “ Ela ficou doente por causa desse urso, por causa da decepção ela não quis mais comer e isso a deixou anêmica” foi o que minha avó disse para a minha mãe. Ela comprou tudo do urso para mim. Mas antes ela deixou bem claro. O papel de parede não iria embora tão cedo. O meu quarto será da cor de verde limão e o urso estampará as paredes. Eu nunca poderei me livrar de nada que ela comprou. Foi uma promessa e ela cumpre com maestria até hoje.

Eu já me acostumei. Mas sempre que eu trazia alguma amiga aqui, eu tinha que explicar tudo isso de uma forma divertida, e deixar de fora que isso foi um castigo.

O móbile com todos os personagens do desenho. Girava e girava. Como um pendulo que poderia me hipnotizar. Olhei firmemente para ele. E ele parou subitamente.

Me desconcentrei e ele continuou a sua dança giratória.

Depois disso eu senti sono. Não parecia que eu havia dormido o dia inteiro. Alguma coisa sugou todas as minhas energias.

— Liv?

Fui acordada pela a minha mãe um tempo depois.

— Precisamos conversar. O Mark já foi embora.

Ela não queria brigar comigo na frente dele. Ela queria passar a imagem de mãe boazinha e compreensiva.

Suspirei forte. Tentando me livrar dos meus últimos resquícios de sono.

— Sim, como a senhora desejar. – Falei sarcasticamente.

Ela se sentou na minha cama e olhou ao redor.

— Olhe pelo lado bom. Você irá ganhar um quarto novo.

Se ganhar um quarto novo é o lado bom de tudo isso, eu nem quero saber qual será o lado ruim.

— Mãe, eu não me importo. Seja o que for, se te deixar feliz é o que verdadeiramente importa.

Mesmo que eu não faça parte disso. Esse pensamento sombrio passou pela minha mente e me fez hesitar em continuar a falar.

Havia algumas lágrimas caindo dos seus olhos.

— Liv, você sempre será a pessoa que eu mais amo do mundo. Quando eu achei que iria te perder o meu mundo caiu. Mark me apoiou muito. E quando ele me pediu em casamento eu só pensei em você. Nós duas só temos uma a outra. Se alguma coisa acontecer comigo eu não quero deixá-la sem família.

Ela não esta casando por que ama o Mark?

— Você não ama o Mark?

— É claro que eu amo. – ela diz limpando as lágrimas. — Mas antes dele eu amo você.

Realmente isso deveria me afetar, mas por algum motivo eu não acreditei totalmente nas palavras dela. Eu a amo, claro. Mas será que eu a amo tanto quanto antes de tudo isso acontecer? Essa dúvida me faz mal.

— Seremos uma grande família. E você sabe que esse sempre foi o meu sonho.

Minha mãe sempre quis ter uma família grande. Seus pais tiveram dois filhos, mas um deles morreu quando tinha apenas cinco anos, vitima de uma doença. Minha mãe cresceu sendo filha única. Seu irmão já havia morrido quando ela nasceu. Seu pai veio de uma família grande, mas todos cortaram os laços quando ele se casou com a minha avó. Ele era de uma família rica, seu pai e irmãos não aceitaram quando ele se casou com uma simples garçonete. Eles viveram juntos por mais de 30 anos. Ele morreu vitima de uma parada cardíaca e minha avó dois anos depois pelo mesmo motivo.

— Sim, eu sei mãe.

— Vai ser bom. Você e o Aaron já são como irmãos.

Ela jogou isso na minha cara.As pessoas sempre jogavam. Ele só me vê e sempre me verá como uma irmã. Mas dessa vez eu fiquei realmente irritada.

— Nós nunca seremos irmãos. – Eu disse duramente.

Ela ficou um pouco impressionada com essa minha atitude.

— Quer dizer, nós não somos mais amigos.

Seu olhar suavizou.

— É claro que são! Ele te visitou no hospital todos os dias. Ele está fazendo tudo o que pode para voltar a andar com você.

— Então ele não está fazendo o suficiente, por que agora, eu é que não quero ser mais amiga dele.

— Olivia! -- Ela me repreendeu. — Você nunca falou assim. O que está acontecendo com você.

— Nada, eu sempre fui assim. Você é que nunca percebeu.

Ela pareceu magoada. Levantou e não disse nada. E fechou a porta com força. Ela estava se contendo. Se ela explodisse provavelmente eu iria também.

Olhei para o relógio, já eram nove da noite. Eu estou precisando de ar fresco. Visto uma calça jeans que está um pouco desgastada, coloco uma camiseta cinza sem estampas e um tênis de corrida. Amarro o meu cabelo bem alto em um rabo de cavalo.

Saio de fininho, minha mãe não está na sala. Ouço o chuveiro. Ela nem vai saber que eu sai. Eu vou voltar antes que ela perceba.

Fecho a porta da entrada devagar. Um dos vizinhos está subindo as escadas com o seu enorme Golden Retriver, esse cachorro sempre foi desse tamanho?

— Olivia, que bom te ver com saúde. – O Homem diz tentando puxar assunto.

Retribuo com um sorriso e tento me desviar dos pulos que o cachorro dá em minha direção, no final afano a sua cabeça e ele me deixa em paz.

— Parece que o Summer gosta de você.

— Parece né. – Digo já tomando o meu caminho.

As ruas estão iluminadas. A luz dos postes é suficiente para indicar o caminho. Uma brisa gelada passa por mim. Eu deveria pegar um casaco, mas não vou voltar.

Inicio uma corrida leve, logo saio da minha rua. A avenida está lotada. Seus bares e lanchonetes estão abarrotados de gente. Acho que até reconheço algumas pessoas.

Mudo o trajeto, não quero que ninguém me reconheça. Passo por uma rua mais tranquila e um pouco mal iluminada.

Começo a enxergar o trilho do trem. E corro próximo a ele. Meu corpo começa a esquentar e não sinto mais frio.

Um trem passa ao meu lado fazendo todo o barulho do mundo. É tão bom, não consigo nem ouvir meus próprios pensamentos. Claramente ele é mais rápido que eu, ele me ultrapassa me deixando com um silêncio assustador. Eu deveria ter pegado meu ipod, na verdade eu nem sei se tenho mais um ipod. Pensando bem algumas das minhas coisas desapareceram. Paro e fico um pouco pensativa.

Olho ao redor. Não há mais luzes visíveis. Tenho que voltar, estou em uma área perigosa.

Uma risada estranha corta o silencio.

— O que uma beldade como você está fazendo tão tarde fora de casa? – Uma voz grave e rançosa diz.

— Talvez ela tenha se perdido. – Alguém completa.

De repente dois homens surgem na minha frente.

Eles não parecem ser muito velhos. Um deles tem algumas tatuagens no rosto e usa uma toca preta, sua pele é muito branca. O outro parece meio descolado. Ele é bonito parece um dos caras da faculdade da cidade vizinha. Ele usa roupas de marca e um cigarro de maconha pousa em uma das suas mãos.

Respiro fundo. E tento tomar o meu caminho de volta.

— Espera, você acabou de chegar. – O de tatuagens diz.

— Eu tenho que ir, minha mãe está me esperando. – Digo pausadamente.

— Acho que ela não quer brincar com a gente Denis.

— Ah, mas ela não vai embora até brincar com a gente.

Meu coração acelera mais que o possível. Eu começo a bater os dentes involuntariamente.

— Está com medo gracinha?

O outro se contem um pouco, mas o de tatuagens que eu imagino que se chama Denis se aproxima demais de mim. Eu posso sentir o seu bafo embriagado.

Tento me afastar, mas ele me agarra pelo braço. Seu aperto é forte. Tento me desvincular mas isso não tem efeito.

— Me solta! – Eu grito

— Não mesmo.

— Socorro! -- Eu me desespero.

— Não adianta não mora ninguém perto da linha do trem.

Tudo começa a ficar distante. Retomo minha concentração quando eu ouço o barulho de um trem se aproximando.

Será que esse é o meu fim, será que eles vão me matar, depois que fizerem tudo o que quiserem?

Ele me puxa para perto dele. Posso ver os seus olhos. E um sorriso malicioso. Eu queria que ele se afastasse.

— Fique longe de mim. – Eu digo com muita raiva. Assim alguma coisa o puxa ele é arremessado longe. Sinto uma fraqueza nas pernas quando ele se afasta.

Ele se levanta e olha assustado para mim.

— Que porra aconteceu? – Ele diz alto.

O outro rapaz está com os olhos um pouco que vidrados.

— Acho que essa droga, está me fazendo viajar demais.

Termine o que começou. É uma voz que eu ouço na minha cabeça. Olho para os dois rapazes desorientados. Falta pouco para o trem passar por nós.

O trem poderia passar por cima deles. É meu único pensamento no momento. Eu consigo imaginar uma força os puxando para o trilho. Assim eu me assusto quando os meus pensamentos viram realidade.

Os dois são puxados para os trilhos, exatamente no momento que o trem passa. Espirrando sangue por todos os lados. Deixando a minha camiseta com lindos respingos vermelhos.


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