Problem Temptation escrita por Boow, Brus


Capítulo 18
Our cottage, my cottage




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Eu deveria ser louca. 

Na verdade, “deveria” não era o termo certo, acho que eu poderia facilmente trocar essa palavra por “com certeza”.

Eu com certeza sou louca.

E como toda a afirmação bem construída, essa tinha um argumento bastante sólido. Era exatamente uma hora da manhã, Gabriel já dormia ao meu lado na cama de solteiro, de costas para mim, ocupando mais espaço do que realmente era necessário, me limitando à pequena borda do colchão, quando meu celular vibrou pela quarta vez seguida.

Outra mensagem.

Todas elas de Ashley.

Duas delas não continham nada além de um ponto final, como se ele estivesse tentando fazer-me lembrar do seu pedido de ajuda. Outra novamente com a mesma localização que ele havia mandado na primeira das mensagens. Mas foi apenas nesta última mensagem, quando desbloqueei o celular e visualizei o seu conteúdo, que todas as minhas forças para o ignorar se desfizeram.

Era curto e simples, mas dizia muito sobre a situação: Por favor.

Ashley não costumava implorar pelas coisas, muito menos por minha ajuda, que muitas vezes foi ignorada pela autossuficiência e orgulho dele. E na última vez que eu ouvi sua voz chamar meu nome em tom de súplica, Evans estava agachado no chão do seu quarto, próximo à porta enquanto seu corpo praticamente era devorado pela febre.

A remota possibilidade de Ashley estar sozinho em algum lugar afastado e passando por isso novamente foi o suficiente para fazer com que eu me levantasse e saísse do quarto na ponta dos pés para não acordar Gabriel, levando de lá apenas um short jeans do dia anterior que permanecia dobrado sobre a cadeira da pequena penteadeira.

Saí do chalé descalça, com uma blusa de Gabriel com o dobro do meu tamanho e certamente descabelada.

Três características que colaboram na minha tese de que provavelmente eu estou no meio de um surto de loucura. Mas eu não arriscaria abrir as malas com minhas roupas e sapatos, não quando os fechos são quase sirenes antifurtos; certamente Gabriel acordaria no segundo em que eu as abrisse.

Bato na porta do chalé de Danny e Oliver. Ainda há pessoas andando e rindo do lado de fora dos seus chalés, a grande maioria jovens que estão festejando suas férias. O pensamento de que nesse momento poderia ser eu e meus amigos no lugar desses adolescentes, rindo despreocupadamente de coisas bobas e não me preocupando com nada a não ser me divertir... Ou talvez eu poderia estar aproveitando cada segundo nos braços do meu namorado na cama não tão confortável do chalé. Respiro fundo algumas vezes e afasto tais pensamentos por hora. Eu precisava focar.

Torço mentalmente para que Danny me atenda, porque sei que terei que me explicar quando me verem desacompanhada a uma da manhã na porta do chalé quando deveria estar com meu namorado recém-chegado.

Entre contar os fatos ao Oliver e contar ao Daniel, certamente eu prefiro Danny.

— Erin? — Danny é quem abre a porta, para minha felicidade. Acredito que pelo seu sorriso simpático, a calça jeans que veste e o cabelo ainda levantado da mesma forma que costuma usar, o loiro de olhos azuis não havia se deitado para dormir. Outro ponto para mim.

Os olhos de Danny sobem e descem por mim, me analisando. Umas das sobrancelhas se levantam e o sorriso vai dando espaço para uma expressão mais curiosa. Ele me olha de forma questionadora como se pedisse por explicações, enquanto sai completamente do chalé e encosta a porta atrás de si, provavelmente desconfiado de que, seja lá o que eu queria ali, provavelmente Oliver não deveria de saber.

Danny sempre foi um garoto esperto.

— É uma longa história. Precisei sair e não queria que Gabriel acordasse, por isso as roupas... e a falta de sapatos. — Mordo a parte interna da bochecha. Ele saberia se eu mentisse e então provavelmente ficaria desconfiado demais para me ajudar, portanto eu não podia mentir... e ao mesmo tempo não podia falar a verdade, ao menos não completamente. — Preciso ver o Ashley e não queria ir de moto. Pode me emprestar a chave do Jeep?

O.k, talvez citar Ashley não tenha sido o ponto alto da nossa conversa, uma vez que só ajudou a amplificar a expressão curiosa e perplexa no rosto de Danny. Eu tinha quase certeza sobre cada besteira em potencial que ele deveria estar imaginando entre mim e Ash.

— Você quer ver o Ashley? Espera ai… É uma hora da manhã e você quer a chave do Jeep para ir atrás do meu primo... que recentemente passou a morar com você?  — Ele dava ênfases em todas as suas palavras como se tentasse demonstrar o quanto aquilo não parecia algo moral. Um sorriso começou a alargar no rosto dele como se as coisas começassem a fazer sentido. — Melhor ainda, você que ir ver o meu primo e saiu de fininho para o seu namorado não descobrir isso? Uau, estou vendo resquícios da pequena Erin do ensino médio aflorando nos seus olhos. - e então ele parou por um segundo e cochichou como se estivesse me contando um segredo - Melhor conter esses hormônios antes que você vista um uniforme de líder de torcida e comece a flertar com caras musculosos.

Eu reviro os olhos. Contar que na verdade eu estava indo atrás do primo viciado de Danny porque provavelmente ele estava em grandes problemas e sozinho em algum lugar de Palm Spring não era uma opção.

Deixá-lo pensar que vou trair meu namorado também não.

— Não seja idiota Daniel, Ashley me pediu um favor. Vou pegar um cheque com ele para entregar à senhora Fell. Não é nada demais. — Daniel balançou a cabeça enquanto abafava um riso irônico entre seus lábios. Sua mão foi até o bolso da calça jeans escura tirando de lá as chaves e a entregou para mim.

— Certo, leve o jeep. Mas quando voltar me mande uma mensagem. Sabe... não é muito comum garotas desacompanhadas saírem pela cidade durante a madrugada para retirar um cheque com o primo do melhor amigo, eu acho que estou levemente preocupado. — E obviamente pelo tom debochado que ele usou para dizer aquilo, nenhuma das minhas palavras sobre o motivo de ir ver o Ash havia o convencido.

Até porque eu, certamente, não havia ajudado em nada ao falar sobre o cheque, pelo menos não a uma da manhã. E Ash tinha acesso aos depósitos da pousada, não precisava que alguém o entregasse a sua tia para que ela recebesse o mesmo, bastava apenas usar um banco vinte e quatro horas.

Mas mesmo assim, juntando a pouca dignidade que me restava, tirei as chaves da mão de Danny e dei as costas a ele antes que ele pudesse ter tempo de fazer qualquer outro comentário ou pensar ainda mais besteiras. Comecei a sentir raiva de Ashley porque mesmo quando estava longe conseguia me fazer passar por situações que eu nunca, nunca passaria em uma vida em que eu não o conhecesse.

Jeep verde escuro dos garotos era confortável, tirando alguns detalhes, como os farelos de comida espalhados nos bancos... claramente sabíamos a quem pertencia. Além disso, no banco traseiro de couro sintético escuro, haviam marcas pequenas de um arranhão que tenho quase certeza que não estava ali quando eles alugaram o carro, mas que com certeza apareceu depois que colocaram o Listrado como passageiro.

Imagino Oliver surtando com o estrago e negando-se a arcar com qualquer gasto que isso viesse a trazer no futuro, já que certamente a locadora do veículo cobraria algo pelo banco estragado… Rio comigo mesma por pensar em coisas tão triviais quando o que estou fazendo é algo tão… Proibido? Não acho que essa seja a palavra. Escondido.

Ao contrário da pousada, as ruas de Palm Spring pareciam desertas. E até mesmo quando passei a pequena ponte para o centro da cidade, não encontrei ninguém além de um casal caminhando de mãos dadas na frente de um hotel, perto da praia.

Eu continuei a dirigir por quase meia hora quando a voz automática no GPS avisou para que eu desacelerasse e virasse na próxima rua.

Meu primeiro pensamento foi: Ashley Evans me chamou para um encontro com a morte.

Tratava-se da antiga área industrial de Palm Spring, ela havia sido desativada há alguns anos por ficar muito distante do centro da cidade, quase na fronteira com a cidade vizinha. Os galpões hoje em dia estão todos abandonados, a maioria deles em ruínas, pichados em suas portas metálicas e ao mesmo tempo arrombados.

Mas o mais assustador não era o fato de eu estar do outro lado da cidade de frente para galpões velhos e sujos. Não, eu estava muito mais preocupada com o número absurdo de veículos estacionados próximo a um galpão em específico e com as pessoas estranhas caminhando ao redor.

Aparentemente parecia uma festa. Uma daquelas bem ilegais com direito a garotas seminuas e corrida de motos. Ou sei lá quais coisas proibidas podem ter essas festas ilegais.

Vou passando devagar com o carro na frente dos estabelecimentos enfileirados, cuidando para não atropelar ninguém. Consigo contar ao menos dezesseis daquelas grandes construções variando em cores claras cobertas de caruncho.  Para o meu desespero, eu não encontro numeração em nenhuma delas.

Quando chego ao último galpão, vejo um grande número de pessoas entrarem pela lateral. Se de fato havia uma festa, era lá que estava acontecendo. E para minha ruína ser completa, quando olho para a grande porta da frente, pichado de vermelho - grande o suficiente para se ver a metros de distância - a palavra “seis” estava gravada.

Começo a odiar Ashley. Não apenas as atitudes dele, mas tudo. Ele havia me tirado da cama, me assustado e me feito dirigir até um fim de mundo carregado de pessoas estranhas vestindo saias de couro e salto alto - completamente diferente das estampas florais que eu havia me habituado em Palm Spring - para me fazer parar em uma maldita festa.

Ele deveria estar tão chapado lá dentro que nem devia conseguir se levantar do chão e agora pensa que eu vou ser sua escrava só porque o ajudei algumas vezes. Ashley Evans era um estúpido, idiota e completamente sem bom senso sobre sua própria vida.

E eu iria embora dali. E mais tarde iria embora do chalé. Eu não queria mais olhar na cara daquele homem que tenta fazer graça com um problema real. Como ele podia fazer isso? Ele devia se livrar daquele vício imundo, mas não parecia sequer preocupado, uma vez que pareceu estar me convidando para um ninho de viciados.

Estou pronta para dar a ré e ir embora, mas por um minuto - no momento em que meus olhos passam pelo espelho retrovisor - encontro uma figura razoavelmente conhecida. Não meu, mas um conhecido de Ashley. O garoto com quem ele havia se encontrado uma vez na hora do nosso almoço em um restaurante no centro. Se alguém saberia me informar sobre Ash, certamente seria aquele cara.

Desligo o carro, tiro as chaves e saio do mesmo chateada demais com Evans para me importar com o short jeans que visto - que comparado ao tamanho das saias e vestidos colados das outras garotas, faz com que eu pareça uma freira - ou com o fato de estar descalça no chão de cimento úmido pelo sereno (que provavelmente estava repleto de bactérias que eu preferia nem pensar sobre).

O garoto parece perceber que estou indo em sua direção, porque prende sua atenção em mim. Se me conhece, não parece demonstrar isso, mas tenho certeza que se trata dele. Eram os mesmos cabelos escuros e olhos azuis… posso arriscar que ele usa até mesmo a mesma toca do dia em que o vi.

Seus olhos me analisam de cima a baixo, como se estudassem o que eu queria ou quem eu era. Acho que ele não demora a concluir que eu não sou uma “frequentadora” do ninho de viciados, porque assim que me aproximo o suficiente, ele me pergunta com um sorriso não muito simpático se a “jovem está perdida” e como poderia me ajudar. Queria ser clara e objetiva e responder “Se você estiver com disposição para matar seu amigo Evans, como está para flertar, certamente me ajudará muito. ”

Ao invés disso escolhi parecer razoável, pelo bem da minha saúde.

— Sabe se Ashley Evans está aqui? Eu recebi um torpedo dele, não parecia estar bem. Acho que alguém deveria conferir. — Sem “boa noite” ou “com licença”. Posso ver quando as sobrancelhas dele se levantam e um brilho aparece em seus olhos enquanto o sorriso vai atenuando aos poucos e seus olhos voltam a me inspecionar.

— Uh, a amiga de Ashley certo? Ele falou de você, permita-me me apresentar... — Ele pegou minha mão e a levou em direção aos seus lábios. — Sou Hadley, um colega do nosso garoto prodígio. Então ele te chamou aqui? Corajoso, eu nunca deixaria a minha garota andar por aqui, ainda mais se fosse tão... bonita. — Eu tento puxar minha mão de volta, mas ele a segura mais firme enquanto sua outra mão vai até o bolso. A princípio eu me assusto, mas vejo que ele retira de lá uma pulseirinha azul de papel como a que todos ali usavam. Antes que eu tenha tempo de perguntar, ele a prende em meu braço. — Certo, amiga do Ashley, vou dar isso de presente para você entrar lá sem que os seguranças te barrem na porta. Afinal, se o garoto prodígio te chamou aqui, acredito que deve ser importante, não?

É eu realmente queria acreditar que era. Mas saber que havia um amigo de Ashley aqui e ele havia se dado ao trabalho de escolher a mim para ajudá-lo apenas me deixou com mais raiva. Ele certamente estava abusando da minha boa vontade.

Penso em pedir para que Hadley vá atrás dele, afinal devem ser mais íntimos, mesmo eu não achando que o tom que ele havia usado para falar comigo sobre Evans parecesse algo íntimo. No entanto, era óbvio pela sua expressão que ele não faria isso.

Hadley se aproximou do meu ouvido. Minha reação automática foi dar um passo para trás e me afastar do seu cheiro de álcool e drogas que embrulhava meu estomago, mas seu braço foi mais rápido ao segurar o meu e me manter parada onde eu estava.

— Não fique com medo amiga do Ashley, ninguém vai machucar você... E se você realmente está interessada em achar o garoto prodígio lá dentro, eu o vi no banheiro faz pelo menos umas duas horas. E acredite, ele não parecia disposto a sair de lá... nem em condições disso, mesmo que quisesse.

A forma como ele diz aquilo soa fria, nada amigável. Um arrepio percorre meu corpo e começo a questionar se ele realmente era amigo do Evans. E se eu realmente podia acreditar que ninguém me machucaria, uma vez que confiar nas palavras daquele cara parecia como confiar que o vento forte não vai te empurrar quando se está na beira de um precipício. Arriscado demais.

Me afasto sem me despedir ou agradecer pela pulseira. Logo estou no meio do grande fluxo de pessoas que passam pela porta lateral e são engolidas pela velha construção do galpão. Algo no fundo do meu cérebro palpita como sou uma garota burra e louca, enquanto outra está cheia de adrenalina e com o coração acelerado devido a situação.

As palavras de Danny voltam em minha mente dessa vez fazendo sentido: Uau, estou vendo resquícios da pequena Erin do ensino médio aflorando nos seus olhos, melhor conter esses hormônios...

A Erin do ensino médio adoraria se meter nesse tipo de encrenca junto com Megan e usando Oliver como cúmplice, de alguma forma o impedindo de contar algo aos pais. Eu fiz questão de matar essa personalidade quando me formei. Talvez um pouco antes, quando Gabriel foi para Nova York. Eu não sei quando exatamente, mas em algum momento deixei a garota imprudente de lado para viver como uma mulher de planejamentos e objetivos.

Eu odiava o fato de estar ressuscitando-a agora, apenas porque Ashley me faz viver como aquela garotinha outra vez. Isso para mim significava regredir.

Entro no local. O homem que checa a pulseira em meu braço era alto e forte, não me admiraria de amanhã acordar com um hematoma onde ele havia segurado para levantar meu braço até seus olhos. Ele me olha desconfiado por alguns instantes, como se algo estivesse muito suspeito (óbvimente minha vestimenta não é a mais apropriada para a ocasião), mas logo depois me deixa entrar. Acho que minha falta de sanidade provavelmente podia estar reluzindo em minha testa.

Lá dentro as pessoas pisam nos meus pés. Está lotado e preciso atravessas pelas pessoas enquanto elas dançam fora do ritmo das batidas altas que fazem o chão vibrar. O galpão que por fora parecia velho, por dentro com certeza havia sido reformado, com luzes e pintura nova, além de com certeza terem colocado uma outra camada ao redor das paredes com algum material especial para limitar o som somente ao espaço de dentro.

Há cacos de vidro no chão e começo a me arrepender brutalmente de não ter colocado sapatos. E me arrepender ainda mais de ter aceito entrar naquele lugar e me submeter a mãos bobas passando pelo meu corpo enquanto tento achar um lugar para caminhar em meio as pessoas, sem saber ao certo onde fica o banheiro.

Quando cheguei até o balcão do bar foi um alivio, mesmo que por lá estivesse quase tão cheio quanto a pista. As luzes incandescentes suspensas sobre o mar de jovens me permitiam enxergar o chão que estava molhado. Tinha certeza que se tratava de alguma bebida alcoólica que virou durante a festa, porque quando entra em contato com os cortes nos meus pés a ardência foi inevitável.

Me aproximei mais do balcão. Uma garota de cabelo preto e piercing nos lábios veio me atender imaginando que eu fosse uma cliente, mas eu apenas pedi informação sobre onde ficava os banheiros, embora quisesse muito pedir um shot da bebida mais forte que ela tivesse. Se realmente fosse verdade o que Hadley havia me dito, encontraria Ashley lá... e só Deus sabe em quais condições.

Para minha sorte não ficava muito longe e não haviam muitas pessoas pelo caminho; e certamente ainda mais sorte pelo fato de ser o único banheiro em todo o galpão.

Olho para as entradas parando por um momento e refletindo em algo que até então eu não havia pensado sobre. Ashley não estaria no banheiro feminino, pelo menos eu queria acreditar que ele não era um pervertido além de drogado. Mas se eu estivesse certa, isso basicamente me submeteria a entrar no banheiro masculino.

No banheiro onde um homem baixo e muito magro acabou de sair vestido completamente de preto e me chamando de “princesa”. Se Ashley estivesse dentro daquele banheiro, em algum estado menos do que o estado de quase-morto, eu arrancaria seus órgãos e daria descarga neles.

Entro no banheiro, há alguns caras lá. Uns nem notam minha presença enquanto outros me olham de maneira maliciosa. Ouço cantadas e assovios, mas permaneço olhando o chão o tempo todo sem coragem de encará-los.

Não há nenhum sinal de Evans lá.

Ando pelas cabines olhando as que estão abertas. Todas estão vazias.

Quando retrocedo me preparando para sair com a cabeça baixa da mesma maneira que entrei, reparo no chão algo estranho. Por baixo da cabine, passando pela porta, posso ver dedos. Meu coração se acelera e automaticamente tenho certeza absoluta que é ele ali, mesmo não vendo nada de característico naquela mão.

Bato na porta e chamo o nome de Ashley. Não recebo nenhuma resposta, então tento empurrar com um pouco de força. Ela não está trancada, mas está presa em algo. Quando abro mais percebo que é o ombro de Evans que a segura. Sei disso porque o corpo dele se move quando consigo desprender a porta e os olhos dele se abrem revelando um dourado característico marcado por vermelho.

Eu o havia encontrado.

Ashley Evans estava jogado no chão do banheiro de uma balada.

E quando parei para olhá-lo por mais de cinco segundos, apenas para constatar que aquele era mesmo Ashley e que ele ainda estava vivo, percebi coisas que foram me cortando a respiração pouco a pouco.

Um dos olhos dele estavam tão inchados que sequer se abriam.

Sua blusa branca estava com manchas vermelhas de sangue que eu não podia afirmar de onde saíram.

Havia um corte em sua testa que fazia o sangue escorrer até sua bochecha.

A parte inferior esquerda do lábio dele estava inchada o suficiente para parecer deformada.

E mesmo assim, quando seus olhos perceberam que a figura em sua frente era eu, com a respiração entrecortada e não muito mais alto que um gemido, Ashley falou:

— Eu... eu achei que você me odiasse.

Aquilo bastou para que meus olhos marejassem e eu adiasse um pouco da raiva que estava sentindo para dar espaço a culpa. Ashley estava arruinado. Talvez se eu tivesse vindo antes, quando ele mandou a mensagem, eu podia ter evitado que fizessem isso com ele... ou que ele fizesse isso a si mesmo. Ao menos eu poderia tê-lo ajudado antes.

— Precisamos sair daqui. Preciso levar você a um hospital... seu rosto está... — Mas não consegui terminar de falar porque a esta altura eu estava chorando e tinha certeza que lágrimas se formavam no olho de Ashley também. Talvez de dor, de vergonha, ou apenas por ele estar drogado e não ter controle emocional.

Passei o braço dele pelos meus ombros, oferecendo apoio para ele se levantar. Tive certeza de que parte das suas lagrimas eram de dor, porque após levantar-se, ele soltou um gemido tão agonizante que fez com que eu sofresse junto... e outras lágrimas desceram do seu (e do meu) rosto.

Pensei em parar para limpá-lo na pia do próprio banheiro, mas as pessoas olhavam estranho para nós. Preferi sair rápido dali, com certeza um hospital cuidaria melhor dele do que eu era capaz de cuidar.

Ashley era pesado e com parte do seu peso sobre o meu ombro ficava ainda mais difícil caminhar no meio daquelas pessoas. Em algum momento ele foi empurrado por alguém que passava ao seu lado e seus joelhos se dobraram em direção ao chão, por pouco não me levando junto.

Quando finalmente saímos daquele inferno, meus pés estavam sujos e machucados. Ashley e eu estávamos suados e um tanto desnorteados pela música alta, ele certamente muito mais do que eu.  Eu precisei refazer meus passos para encontrar o carro, não sabia quanto tempo ao certo fiquei dentro daquele lugar, mas tinha quase certeza de que o estacionamento cheio de pessoas estava ainda mais cheio do que a última vez que o vi.

Quando achei o carro suspirei em alivio. Larguei Ashley com cuidado no banco do carona, ouvindo seus gemidos baixinhos e o ajudei a passar o cinto, já que ele não conseguia mover direito o seu braço. Quando já estava de frente para o volante, ligando o carro e olhando pelo retrovisor, checando se era possível dar a ré sem ter que matar ninguém, vi um sorriso direcionado à mim se destacando entre toda a movimentação através do espelho do jeep.

Era Hadley.

Meu instinto automático era descer do carro e ir tirar satisfações com aquele miserável. Eles eram amigos, como ele podia ter deixado Ashley sozinho naquele estado?! Porque ele com certeza sabia como Evans estava, ele me mandou procurá-lo no banheiro e disse “ele não parecia disposto a sair de lá”. Ele não diria isso porque usava poderes visionários nos fins de semana, com certeza.

Mas como se soubesse o que eu iria fazer, ouvi o baixo “clak” nas portas e olhei na direção de Ashley. Seu braço que ainda consegui se mover levantou-se até o painel do Jeep e apertou o botão das travas na porta. Olhei para ele enquanto ele me retribuiu o olhar com o único dos olhos que conseguia abrir.

— Só vamos para a pousada, Erin... não quero você... não quero que se envolva nos meus problemas. — Suas falas eram entrecortadas por baixos gemidos. Eu reconheci as palavras que ele havia acabado de me dizer, eram as mesmas que ele havia me dito quando deixou o chalé a alguns dias.

Não me queria envolvida nos problemas dele, ótimo. Mas me trouxe para o outro lado da cidade para buscá-lo quando os problemas dele acabaram tentando quebrar cada osso do seu corpo.

— Vamos para o hospital de Palm Spring. — Falei finalmente dando a ré no carro, desistindo de ir até Hadley e concluindo que, seja como fosse, eu não poderia fazer nada. Eu não sabia o que aconteceu exatamente e mesmo que soubesse eu não teria nenhuma chance contra o homem.

Ashley se move minimamente no banco ajeitando sua coluna e pescoço bem devagar. Ele vira o rosto para frente e fecha os olhos. Ainda tem rastros deixados pelas lágrimas misturadas com o sangue que estava secando em sua bochecha, mas ele não estava mais chorando. Ótimo, porque talvez se eu o ouvisse chorar agora, começaria a gritar com ele perguntado se ele é um homem ou um adolescente irresponsável.

— Erin, eu fiquei sentado naquele lugar a noite inteira... Eu estou sujo de sangue e eu nem sei diferençar quanto dele é meu e quanto é de... — Mas ele deixou a frase morrer. Então realmente havia sido uma briga. — O primeiro médico que me atender vai chamar um policial e eu não quero sair do hospital... para uma delegacia; se formos para o chalé eu posso me limpar e amanhã você pode... me amarrar e me levar a qualquer hospital que quiser. —  cada breve pausa que ele fazia, uma expressão diferente de dor aparecia em seu rosto.

Eu fico em silêncio porque sei que ele está certo. Se Ashley aparentasse uma simples briga de rua, ninguém se importaria, mas no mínimo ele retratava a figura de alguém que acabou de ser tão espancado, que seu rosto parecia que nunca mais voltaria ao normal. Mas principalmente queria que ele permanecesse quieto e guardasse qualquer energia que tivesse restado em seu corpo.

— Por que você estava naquele lugar, Evans? — E enfim arrisquei a perguntar, sem ter coragem o suficiente para olhar na direção dele. — Por que fizeram isso com você? Por que você faz essas coisas com você?

Mas ele ficou em silêncio, talvez sem saber o que responder, ou quem sabe tenha ficado inconsciente, o que era bastante provável. Mas então, ouvi o gemido baixinho e notei seu pescoço virando outra vez na minha direção.

— Você não entenderia Erin... e mesmo que entendesse, nunca saberia qual a sensação.

Aquelas palavras me fizeram segurar tão firme no volante que senti as articulações em meus dedos reclamarem. Olhei para a estrada de maneira fixa, controlando minha raiva, mas não aguentei mais do que alguns poucos segundos.  

— Entender o quê exatamente? O quanto é tão bom estar drogado que você se submete a esse tipo de coisa, a esse tipo de gente? É, tem razão, eu não entenderia uma coisa dessas, nunca. E mesmo que entendesse, eu realmente não saberia a sensação, porque teria nojo, nojo de me olhar no espelho e ver que não tenho controle sobre meus próprios atos. Ver que sou dependente de uma maldita seringa com um pouco de qualquer coisa que vai te matar. — E logo eu estava gritando e meus olhos não tinham controle sobre as lágrimas quando virei meu rosto rapidamente em direção a Ashley, vendo que ele forçava seus olhos fechados e seus lábios também.

A boca de Evans estava em uma linha reta e acredito que fazer isso tenha reiniciado o sangramento na sua ferida, porque logo um fino traço vermelho corre por seu queixo. Quando ele alivia sua expressão, noto que não foi isso que aconteceu, na verdade ele havia mordido tão forte seu lábio que uma nova ferida abriu ali. Ele abre os olhos outra vez e só agora quando parece relaxar o corpo, noto que sua mão segurava o banco como se sua vida estivesse ligada a ele.

Outra vez passa-se uma série de segundos em que tudo o que temos é o silêncio. Eu passo as mãos no rosto para limpá-lo e quando os segundos se convertem em minutos, Ashley finalmente me responde.

— Você também não entende como é estar morrendo um pouco mais a cada dia, pela segunda vez na sua vida.

Suas palavras permanecem no mesmo tom que ele usou para falar comigo desde que o coloquei no carro, baixo e transparecendo sua dor. Mas dessa vez ele não parece estar sentindo a sua dor física, porque as palavras parecem reprimi-lo. Tenho quase certeza que se ele conseguisse, abaixaria sua cabeça agora para esconder seu rosto.

Sinto que todo o meu sangue deixa a temperatura elevada de Palm Spring e cai rapidamente diversos graus. A essa altura já estou perto da ponte, no centro da cidade.

— Você é quem está fazendo isso a si mesmo Evans e ninguém pode te impedir a não ser você mesmo. — E pela primeira vez ele abre um sorriso. Um sorriso que não transmite nenhuma alegria e felicidade. É um sorriso amargurado, tanto que dias atrás eu nunca imaginaria que Ashley, o cara tranquilo que me recebeu tão bem em seu chalé, poderia dá-lo.

— Eu não estou me matando Erin, estou só fazendo a espera ficar mais suportável, está tudo aqui. — Ele levantou o braço que conseguia mover até sua cabeça e apontou para a mesma com o indicador, deixando o braço cair ao seu lado logo depois.

E então eu não disse mais nada. Não disse porque não gostava do rumo daquela conversa, não gostava da forma como Ashley falava como se não existisse uma saída e porque se o ouvisse dizer mais alguma coisa sobre morrer eu provavelmente partiria com ele rumo a uma clínica de reabilitação e provavelmente me internaria com ele para me certificar de que ele ficaria bem.

Mas ao invés disso, apenas dirigi para a pousada... e acho que em algum momento da viagem ele dormiu. Já eram duas horas da manhã, eu duvidava que Danny ou meu irmão estivessem acordados. E quando eu chegasse ao chalé me encontraria com Gabriel... e Gabriel se encontraria com Ashley em sua pior condição. Então eu teria que explicar algumas coisas, pedir desculpa por outras e mentir mais. Porque outra vez precisaria acobertar Evans.

Eu acordei Ashley, ou pelo menos acho que fiz, porque ele permaneceu de olhos fechados e em silêncio o tempo todo. Mas quando parei na pousada, a única condição que mudou foi que seus olhos se abriram.

Eu tive que o ajudar a caminhar pela pousada. Não estava tão movimentada quanto antes, nem tão iluminada, mas pelo menos Ash andava melhor do que quando deixou o banheiro daquele galpão.

— Ashley? — O chamei parada no hall do chalé, de frente para a porta com entalhes de golfinho. Ele emitiu um “Ham?” para que eu prosseguisse, então respirei fundo e continuei. — É que... - parecia algo tão idiota para se falar em um momento como aquele, mas mesmo assim prossegui - lembra que eu falei sobre o Gabriel, meu namorado...? Bom, ele veio me visitar e ele está ai dentro, no meu quarto. Eu só queria adiantar que ele não vai gostar de você.

Ashley abriu o segundo sorriso da madrugada, dessa vez algo mais leve, um pouco debochado talvez. Uma prova de que não havia nenhum controle emocional.

— Eu estava me perguntando de quem era a camisa que você está vestindo... — Ele sussurrou de maneira leve, mas antes de continuar foi interrompido por uma carata de dor. —... eu sou um cara carismático, me dê uma chance.

Eu não pude evita, dessa vez deixei que um pouco da tensão fosse embora e me permiti um curto sorriso da besteira que havia acabado de ouvir, enquanto abria a porta. Eu sabia o que vinha pela frente, tinha feito um plano, teria que cuidar de Ashley agora, limpar suas feridas, ajudar o quanto podia e depois levá-lo até sua cama. O mais difícil viria quando Gabriel acordasse e eu tivesse que me explicar quando amanhecesse.

Mas então, quando entro com Ashley no chalé, percebo que terei que fazer uma brusca mudança de planos. Afinal, Gabriel Austine está sentado no sofá com uma expressão de confusão e choque. Não acredito que ele esperaria até o amanhecer para ganhar explicações.

Fecho os olhos e respiro fundo. Penso em algo para dizer. Mesmo algo que não fosse uma verdade, contanto que deixasse as coisas um pouco menos piores.

Eu poderia dizer que Ashley e eu nos conhecemos quando ele veio até aqui para me entregar a chave e me mostrar o chalé e que precisaria passar uns dias aqui devido a briga que teve... ou melhor, ao assalto. E que ele me ligou porque... bom porque eu morava no chalé dele.

Eu estava ficando melhor no ramo de criar histórias ruins para mentir para os outros.

Mas quem começa falando não sou eu, mas sim Gabriel, em uma voz tão baixa e mortal, que deixa evidente toda sua raiva.

—Erin, aonde você estava? - E como se essa pergunta não fosse ruim o bastante, ele acrescenta - E o que esse cara está fazendo no nosso chalé?

Enquanto eu desesperadamente procuro por uma desculpa rápida, Ashley fala:

— Oi, sou Ashley Evans, um amigo... — Um corte abrupto na sua respiração travando a fala por alguns instantes.  — Você deve ser o Gabriel, namorado da Erin... o cara que foi preso. — Outra pausa, mas não sem antes uma risadinha. — Seja bem-vindo ao meu chalé.

Então eu tive certeza que o sorriso que Ashley havia demonstrado segundos antes era totalmente debochado, porque carismadefinitivamente não foi a qualidade que ele escolheu para se apresentar ao Gabriel, apesar do sorriso ligeiramente simpático.  Por um mero segundo me arrependi de não ter feito o caminho para o hospital.

Ashley teria sido mais bem recebido por policiais do que pelo olhar que Gabriel lançou a nós.

Seria sem dúvidas a madrugada mais longa das minhas férias.


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