Reminiscências de Touro escrita por Aries_sin


Capítulo 3
O Purgatório




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Uma densa neblina branca cobria o abismo, envolvendo-o num manto de luz angelical. A ponte de madeira estendia-se para lá do nevoeiro, como se estivesse pendurada sobre as nuvens, pairando melancolicamente num limbo de suspensão do tempo. De olhos fixos na passagem que o levaria ao outro lado, Aldebaran ainda não sabia o que pensar sobre aquele enigmático local. Tinha-se visto mergulhado no nevoeiro espesso, sem conseguir explicar o momento exacto em que isso tinha acontecido. Havia momentos em que tudo naquelas planícies pitorescas lhe aparentava beleza e serenidade, um espaço místico de onde irradiava sapiência e tranquilidade constantes. Mas naquele momento, as montanhas de Jamiel mostravam uma segunda faceta: sob o manto toldado das brumas, o encanto transformava-se em algo assustadoramente sinistro.

– Chegámos… - o silêncio absoluto foi perturbado pela voz serena do tibetano - É o mais longe que me permito ir, senhor Aldebaran… a partir daqui terá de seguir sozinho.

O cavaleiro anuiu. Nem esperava pela companhia do médico até ali, a partir daquele instante a situação poderia tornar-se o ponto de não retorno a qualquer momento. Não sabendo o que o esperava, era preferível jogar pelo seguro e evitar danos colaterais.

– Espero que tenha uma viagem tranquila – continuou quase num sussurro, embalado pela quietude do ambiente – a minha porta continuará aberta, esperando pelo seu regresso a salvo.

O cavaleiro agradeceu, e manteve-se um tempo a observar o vulto do médico desaparecer por entre a bruma. Quando já não o conseguia ver, deu-se como satisfeito e focou-se na estranha missão que o esperava.

Olhou uma vez em volta, sentindo um calafrio percorrer-lhe o corpo. Aquele nevoeiro não era decididamente natural, mas uma assombração criada através de uma energia que ainda não conseguia definir.

Com um suspiro pesado, começou então a percorrer o caminho que o levaria ao cimo da montanha. Ao dar o primeiro passo na ponte suspensa ouviu o ranger da madeira que lhe servia de apoio ecoar por entre a bruma. Estagnou.

Durante alguns segundos manteve-se estático, os sentidos em alerta. Olhou em volta diversas vezes, como se esperasse que, com aquele ténue barulho, a criatura que habitasse aquelas montanhas tivesse dado pela sua presença e o fosse atacar a qualquer momento.

Apenas quando se deu por satisfeito pela ausência de movimentação à sua volta, seguiu caminho, passo a passo, com cuidado para que as pranchas não quebrassem.

Quando começou a sentir alguma estabilidade, os seus olhos fixaram-se no vazio por baixo dos seus pés, tentando distinguir algo por entre as nuvens.

Deu por si a pensar no que o tibetano lhe tinha revelado naquela manhã e da realidade que aquilo implicava… aquele caminho nem sempre tinha sido brumoso daquela forma mas não deixava de ser extremamente perigoso! Como era possível que crianças pequenas tivessem a coragem de passar naquela ponte centenária extraordinariamente perigosa para alcançar o outro lado? Já certos adultos achava complicado, ainda mais crianças…

Foi então que os seus olhos captaram algo la em baixo, uma imagem desfocada que foi emergindo gradualmente à medida que o nevoeiro cedia. Prendeu a respiração quando percebeu que a imagem não passava de um amontoado de corpos que jaziam inertes, algumas centenas de metros abaixo dos seus pés. Havia um pouco de tudo… chineses, tibetanos, fragmentados, empalados, chacinados, bocados de armamentos atirados pelos cantos… uma miscelânea de cadáveres digno das mais macabras obras de Bosch.

Respirou profundamente, e seguiu caminho.

Não havia nada que pudesse fazer pelos mortos, mas podiam ajudar os vivos.

A ponte finalmente atravessada, pouco mais conseguia ver do que o esperava. Tudo começava numa trilha estreita encaixada nas montanhas, onde mal conseguia passar uma pessoa.

– Tsss… - ciciou desconcertado pela próxima etapa da jornada. Não havia nada pior do que o sentimento de estar encurralado, ainda mais numa posição de alerta constante.

Mas não havia outro caminho. Era por ali o percurso, era por ali que iria. Repuxou as amarras da caixa de pandora sobre os ombros, de forma a que esta ficasse bem presa e mais alta. Recomeçou a andar, confiante, sentindo o peso das montanhas ao seu lado que davam a sensação de poder esmaga-lo a qualquer momento; dois gigantes adormecidos que o arrasavam com a sua simples presença. Depois do caminho suspenso em que qualquer passo em falso podia ser fatal, aquela parte do caminho parecia-lhe mais fácil a nível fisico.

“Ssssshhhhhh…”

Um estranho burburinho atrás dele fê-lo estagnar e virar a cabeça. Mas não conseguia ver.

Resmungou frustrado ao tomar consciência que agora não era apenas o nevoeiro que o impedia de olhar, mas igualmente a caixa de pandora que lhe tapava a visão. Impossibilitado de virar o corpo pois o caminho era demasiado estreito, só havia uma solução: continuar em frente até sair daquele túnel.

Shi de… Shi de tā jiang si yu…” (simsim, ele vai morrer)

Os burburinhos anteriores tornavam-se mais nítidas; vozes do além, longínquas e envolvidas numa estranha ressonância irrealista. O que ao início pareciam sons murmurados ao vento, grunhidos desconexos e sem sentido ganhavam forma à medida que avançava.

Conseguia agora distinguir alguns sons conhecidos, algumas palavras que pareciam vir do fundo de um túnel, ou por vezes sussurradas directamente ao seu ouvido.

Era chinês.

Aldebaran começou por pensar que tudo aquilo devia ser fruto da sua imaginação, um delírio fantástico devido às condições atmosféricas sugestivas.

“Pao!” (fuja)

Mas quando começou a reconhecer algumas das palavras murmuradas, reconsiderou a sua posição e concluiu que aquilo era bem mais do que brincadeiras da sua mente.

Não… aquilo era bem um poder transcendental, alguma força sobre-humana que dominava aquelas montanhas. Conseguia sentir o ar pesado à sua volta, não apenas devido à pressão da altitude, mas cheio de algo que afectava directamente o sistema nervoso. Pessoas comuns nunca tinham tido chance de sair dali vivas.

Em meio de pensamentos e teorias, percebeu que pouco faltava para o fim do caminho. Alguns metros adiante, as montanhas ao seu lado abriram-se numa clareira, oferecendo uma sensação de libertação que foi bem recebida.

“AAAAAAAAAAAaaaaaaaaaaaaaaaaaahhh!”

O brasileiro deu um salto quando o seu pé se apoiou em algo estranho e ouviu o som de algo a partir-se. Mal tinha entrado na clareira ouviu um grito ao longe que se assemelhava muito a uma lamúria. Olhou em volta à procura de indícios de alguma presença.

Em vão.

A adrenalina crescente devido aos acontecimentos estranhos, ajoelhou-se no chão e tentou encontrar algum sinal do que se passava naquele lugar.

Agarrou em algo que levantou à altura dos olhos, tentando perceber o que tinha pisado.

O que os seus olhos viram, deixaram-no perplexo. Agarrava um crânio entre as mãos.

Eram ossadas… um verdadeiro rio de ossos espalhados pelo chão, parcialmente cobertos por neve, perdendo-se por entre a bruma. Ali estavam os poucos que tinham conseguido escapar à passagem da ponte. Na altura em que tinham chegado, após assistir à queda de uma grande parte dos companheiros e aterrorizados pelas vozes do além do túnel, deviam estar muito apavorados para conseguir seguir caminho. Mas então, porque não tinham regressado para trás em vez de permanecer ali à espera da morte?

Ni shi shui

O brasileiro arregalou os olhos e largou o que tinha entre as mãos quando ouviu uma voz que lhe pareceu vir directamente do crânio. Levantou-se de rompante, começando a sentir um clima hostil e crescente por entre o limbo do nevoeiro.

Crac…crac…crac…

Os barulhos secos de algo que se juntava à sua volta puseram-no em estado de alerta, posicionando-se para atacar o que estivesse por vir. Tinha agora a sensação de ter acordado algo naquelas montanhas e de ser um invasor no domínio de alguém. Com certeza que iria haver retaliação…

Crac…crac…crac…

Viu vultos emergirem gradualmente à sua volta por entre a neblina, fazendo um barulho oco à medida que avançavam na sua direcção. Semi-cerrou os olhos, confuso, tentando assimilar o irrealismo da cena que se desenrolava à sua frente.

Os ossos que tinha encontrado adormecidas no chão, formavam agora corpos inteiros, alguns cobertos por armaduras enquanto outros permaneciam despidos. Um batalhão inteiro de mortos que se aproximavam dele a passos largos.

Começou a entender o porquê de ninguém conseguir sair dali com vida. Muitas das pessoas deviam ter tentado fugir, mas o regresso era completamente impossível para guerreiros aterrorizados com aquela imagem. O espirito já inicialmente atormentado pelas historias misteriosas que envolviam aquele desfiladeiro começavam a fervilhar de medo ao ínfimo movimento.

Mas para ele, não era aquela pequena farsa que lhe ia impedir a passar… fechou os olhos e concentrou o cosmo, esperando pelos ataques que pressentiu vir. O nevoeiro podia dificultar a visão, mas o barulho oco dos ossos a chocarem uns contra os outros entregavam os movimentos.

Durante os primeiros segundos sondou o campo, limitando-se a bloquear os golpes deferidos pelos guardiões. Eram muitos, mas eram fracos e descoordenados. Sabia que era impossível para indivíduos comuns escapar à enxurrada de golpes da qual estava a ser vítima, por isso a razia de mortos que se encontravam naquele caminho. E para completar, o ar rarefeito da montanha e o nevoeiro dificultavam substancialmente a defesa, quanto mais pensar em ataque.

Foi então que, no meio daquele caos de campo de batalha que descobriu algo, uma luz ténue conhecida no meio da escuridão - Ah… - murmurou entre dois golpes, um sorriso de agrado desenhando-se nos seus lábios.

Uma cosmo-energia.

Muito ténue e quase imperceptível, mas estava lá.

Decidiu então que estava na altura de marcar a sua presença e mostrar o seu poder. Não sabia a quem pertencia aquele cosmo, mas aqueles joguinhos não funcionariam contra um cavaleiro da elite dourada. Sobretudo contra ele, Aldebaran de Touro.

Aproveitando um compasso de espera nos ataques, colocou-se em posição, os punhos fechados suspensos no ar. Esperou uns instantes, concentrando uma grande quantidade de energia nos punhos.

– Great… HOORNNNN!

O grito ressoou pelas montanhas, seguindo-se de uma rajada de energia extremamente potente, despedaçando tudo por onde passava.

Aquele sim, era o verdadeiro poder de um cavaleiro de ouro. Um golpe desferido à velocidade da luz, de uma potência inigualável e impossível de ser bloqueado.

A calma e silêncio que se seguiu lembravam a explosão de uma estrela e a suspensão que a acompanhava. Abriu finalmente os olhos, lentamente, avaliando os estragos.

Tudo aparentava não ter passado de um pesadelo.

O nevoeiro tinha desaparecido como por magia, e a visão das montanhas que rasgava o céu azul-claro pareciam levitar ao longe tinha voltado. A poucos metros de distância, viu que a plataforma onde se encontrava mergulhava num penhasco traiçoeiro, completamente impossível de ser visto com a presença da bruma. Apenas um caminho estreito permitia a passagem em direcção ao outro lado.

À sua volta, as ossadas tinham sido completamente dizimadas pela energia, restando apenas pó do que outrora tinha sido um batalhão de mortos-vivos. Os guardiões do vale dos mortos.

A cosmo-energia que tinha sentido durante o combate parecia agora ter-se dissipado no espaço, sem deixar rasto.

A mancha nívea que via ao longe reflectia como um espelho brilhante e cristalino os raios de sol. Com alguma dificuldade conseguiu retirar os óculos escuros do bolso do casaco, ajudando-o a regular um pouco da claridade intensa.

Aquele devia ter sido o último obstáculo antes do seu objectivo. Por essa altura, o ser que dominava aquelas montanhas já estava ciente da sua presença e chegada iminente. Por essa altura, sabia que não tinha chances contra ele, Aldebaran de Touro. Cavaleiro dourado.


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