O Entregador de Estrelas escrita por Beatriz Azevedo


Capítulo 2
A primeira estrela




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Poucas pessoas lembram de o que aconteceu quando elas nasceram e eu duvido que elas tenham lembranças de seus primeiros dias de vida, mas minha mãe já contou a minha história tantas vezes que eu acredito que eu estava completamente consciente na hora e que as imagens que vem a minha mente quando tento me lembrar são lembranças genuínas que eu presenciei. Ela disse que nos meus primeiros anos de vida ela e meu pai achavam que eu era surdo e mudo. Só quando eu fiz três anos eu comecei a falar. Contava ela que eu sempre justificava este evento -depois que eu fiz 5 anos - com o fato de eu ter ficado muito assustado com o enorme barulho do mundo e que eu não queria participar dele. Esta é a única história que eu consigo me recordar de ouvir dela.

Todas as outras histórias que me lembro eram contadas por minha avó. Era complicado saber se as histórias eram inventadas, se ela as presenciou durante suas viagens ou se ela havia as lido em algum lugar. Agora, que estou mais velho e acredito ter recolhido bastante eventos, histórias e pessoas me pesa na consciência pensar que nunca contei ou tentei inventar uma história. Esta é minha primeira tentativa;

Existe um pensamento famoso que não me vem a memória agora para citar, mas que diz que cada humano é diferente mentalmente. Dentro de sua mente você pode ser você mesmo e tem de admitir que existe uma peculiaridade em você que não é encontrada em toda esquina -as vezes nem é encontrada-.

A minha peculiaridade?

Dentre muitas eu crio estrelas. E com algumas pequenas memórias de minha infância tentarei convencer outra pessoa (coisa que eu nunca fiz antes) de que eu tenho total sanidade e motivos para acreditar no que acreditei e fazer o que eu fiz. Talvez com isso você consiga criar um pouco de simpatia por mim -mesmo que isso não será necessário- e pensará mais um pouco sobre tudo que eu venha a narrar.

Criar estrelas... eu nem sempre criei estrelas, mas como tudo começa a partir de algo posso dizer que tudo começou numa terça-feira de Setembro de 1846 em Southend-on-Sea, Essex no Reino Unido. Muitas pessoas acreditam que tudo e todos os detalhes que existem mudam seu rumo. Nunca havia pensado nisso, mas com toda certeza estar lá naquela época, naquele lugar foi sim, uma coisa grande. Me lembro como lembro o que aconteceu a um segundo atrás... Começou no mês que todos estavam espantados com a morte súbita de uma moça da nobreza. Recordo-me de meu pai contando a história no café da manhã com todos os detalhes e minha felicidade da manhã sumindo do meu rosto com a rajada de vento entrando pela janela.

Acredito eu que morar em uma fazenda e não saber ler (bloqueando meu acesso aos eventos da cidade pelo jornal) me deixava com a dúvida de como as pessoas morriam e, certamente, isso nunca passava por minha cabeça. Saber de tal tragédia, devo admitir me deixou chocado e fez com que eu me questionasse o dia todo como a moça aparentava ser ou como ela se sentiu no segundo que sua vida se extinguiu.

Lembro que eu sentava sob as estrelas na grama cheia de orvalho da fazenda que morávamos. A mulher morta havia fugido de minha mente e eu estava entretido limpando a lente do telescópio enferrujado que meu avô havia me presenteado no meu 5o aniversário. A tela cheia de rabiscos estava bem posicionada na minha frente e eu a examinei cautelosamente enquanto a comparava com o céu e ao mesmo tempo com alguns cálculos. Eu não tinha deixado de desenhar uma estrela sequer. Eu me encontrava diante de um perfeito mapa de estrelas. Aquele mapa havia levado 1/3 de minha vida e eu finalmente havia o acabado... pelo menos aquela faixa estrelar. ‘Valeu a pena’ pensei enquanto sorria novamente. Ouvi os grilos e suspirei. Tudo tão vivo e tão silencioso.

Meus olhos abriram assutados quando um ouvi um barulho no arbusto e desviei minha atenção do céu. Foi rápido demais e a imagem que minha mente havia montado do corpo morto da moça invadiu tudo ao meu redor. A grama e o céu sumiram e a casa de madeira com uma lareira no fim do corredor se ergueu de repente à minha volta. As duas poltronas viradas para a lareira e a cortina movendo suavemente com o vento noturno. Olhei para os retratos na parede quando ouvi um grito que arrepiou minha espinha e de repente um movimento vindo das cadeiras. Dois instantes depois tudo ficou quieto novamente. Me aproximei da cadeira voltada a lareira e contemplei a moça caída na poltrona vermelha com o braço atraído em direção ao chão. Ela segurava uma xícara de chá que havia derramado seu rastro em direção à janela.

Caminhei até a janela e observei o céu; Estrelas.

Sacudi a cabeça negativamente e voltei minha atenção para outra coisa. A imagem da lareira sumiu e eu voltei para a grama molhada de orvalho. Coloquei minha mão na testa tentando entender o que havia acontecido, mas nada além de uma dor de cabeça se encontrava ali. Suspirei. 'Está tudo bem.' Pensei e tentei absorver a paz do lugar novamente.

De repente minha mãe gritou apavorada. Voltei minha atenção para a casinha há alguns metros de distância. 'É uma emergência' pensei já que minha mãe nunca gritava. Corri até a casa e olhei para o corpo no meio da cozinha.

“Vovó?” Perguntei assustado me aproximando do cadáver.

Minha mãe me abraçou enquanto eu olhava para o corpo horrorizado. Identifiquei um líquido arroxeado em volta do corpo e o bule do jogo de chá da tarde favorito da mamãe jogado do outro lado da cozinha.

“O que aconteceu com ela?” Perguntei quase gritando (o que não é comum já que costumam dizer que eu sussurro).

“Ela estava vindo buscar o chá e de repente... eu ouvi um barulho.” Ela falou limpando as lágrimas que escorriam de seu rosto.

“Não, o que aconteceu com ela?!”

"Ela morreu...” A voz dela morreu junto com o final da frase. Com toda certeza ela estava estranhando minha pergunta, eu tinha 7 anos e já sabia o que significava a morte (mesmo sendo a morte do meu avô a única que eu tenha testemunhado quando eu fiz 6 anos).

“O que aconteceu com ela?!” Insisti.

Minha mãe respirou fundo e acariciou minhas bochechas, mas eu sabia que ela só estava se certificando se as sardas do meu rosto nunca iriam sair.

“Eu não sei.” Ela respondeu ajeitando meu casaco cinza e me lançando um sorriso amarelo para tentar me tranquilizar -mesmo que eu tenha total certeza de que era mais para ela do que para mim-. E ela me abraçou.

Permanecemos abraçados até meu pai entrar preocupado na cozinha. Eu me lembro de levantar meus olhos de suas botas cheias de grama molhada até seu rosto com uma barba mal feita. Ele olhou para minha avó primeiro e passou um tempo pasmo até acompanhar a trilha de chá e pesar seu olhar sobre nos dois. Assim que ele viu o estado de minha mãe ele correu em sua direção e a abraçou. O ouvir sussurrar ‘só vou colocar um casaco’ e meus ouvidos acompanharam suas botas batendo no piso de madeira até entrar no segundo quarto à direita. Minha mãe o seguiu com o olhar triste e continuou secando as mãos no avental do seu vestido tom rosa esquisito. O ambiente era tenso demais para eu falar qualquer coisa e foi aí que eu percebi que não importava por que palavras são muito superficiais comparadas a lágrimas.

“Vamos” Meu pai falou ajudando minha mãe a levantar e depois se virando para mim “fique aqui, voltamos já.” Ele bagunçou meu cabelo que já estava uma enorme bagunça de cachos castanhos e saiu da casa.

Observei a cena. Cruzei os dedos para que os cavalos não se incomodassem demais em andar tão tarde carregando um corpo. Porquê uma das coisas que mais me aflige até hoje é lembrar do dia que meu pai ficou irritado com um cavalo que não estava o obedecendo...

Meu pai se aproximou da casa com a charrete velha do meu avô e colocou o corpo dentro. Depois ajudou minha mãe à subir no cavalo. Ele olhou para o seu redor até seu olhar parar em mim e ele piscar em minha direção achando que conseguiria passar uma imagem tranquila. O que só me deixou mais revoltado então eu cruzei os braços e soprei a franja de cima dos meus olhos como resposta. O problema é que ninguém consegue me enganar. Não por muito tempo.

Olhei para o cavalo negro que ainda estava agitado em ser acordado. Quando eles foram embora eu voltei para o morro e direcionei meu olhar para o céu que era testemunha de mais uma morte. "Vocês sabiam?" Perguntei e entortei o lábio ao tomar consciência de que eu estava falando sozinho novamente. A lua iluminava meu material, e eu sorri olhando para o meu mapa estrelado. De repente tive um estalo. Franzi a testa e olhei para o céu conferindo. Havia uma estrela que eu não havia catalogado.

“Mas eu cataloguei todas.” Falei para mim mesmo, como poderia eu não ter notado uma estrela tão brilhante no meio do mapa? Alguns segundos depois me veio outro estalo e eu sorri satisfeito com minha nova teoria: O céu não era testemunha, ele era cúmplice. "Por que não me contaram?" perguntei novamente e desta vez pouco me importei no fato de falar sozinho. Com minha nova descoberta descifrei a resposta para minhas perguntas. A brisa fez as folhas voarem para longe e trouxe uma voz leve como o vento.

"Agora você já sabe." Foi o que eu consegui ouvir.

“Oi vovó!” Respondi ao reconhecer sua voz.

Naquela noite eu não dormi, toda vez que minha cabeça se encostava no travesseiro a estrela brilhante piscava e eu me levantava, pegava um banquinho, encostava na janela alta do meu quarto e a admirava. Depois de fazer isso 3 vezes desisti do sono e fiquei conversando com as estrelas pelo resto da noite. Já bem mais tarde meus pais voltaram, eles estavam exaustos então eu resolvi não os incomodar com tal história até a manhã.

Eu não tive, realmente, a oportunidade de me despedir da minha avó (Não em um velório de qualquer forma) que estava me ensinando a ler e escrever. Eu sempre falhei neste aspecto. Não que eu seja burro, mas sempre fiquei para trás nisso. Por isso gosto de estrelas, uma das melhores partes é que você não precisa passar sua vida aprendendo a admirá-las, é só abrir os olhos.

Decidi então criar companhia para minha avó que respondia como brisa e descobrir sobre a vida das pessoas que podem ser estrelas... No outro dia minha mãe leu o testamento da minha avó na mesa do café da manhã e perguntou se eu sentia falta dela.

“Ela não foi embora.” Respondi num sussurro. Minha mãe arregalou os olhos e encarou meu pai assustada.

“Ele ainda não se recuperou.” Meu pai sussurrou para minha mãe e eu olhei para o teto incompreendido.

“Mãe, ela virou uma estrela.” Insisti.

Minha mãe sorriu, fez carinho em minha cabeça e mudou de assunto do seu jeito singelo. Você nunca nota que sua conversa mudou de assunto enquanto conversa com ela por que ela faz bolinhos soarem como vegetais. Eu ainda sinto falta dela, mesmo que ela tenha usado este poder para me abandonar.

“Sua avó deixou esta bolsa de carteiro para você.” Ela me entregou uma bolsa velha, encardida e eu suspeito que era azul escuro antes de se encontrar com o tempo. Não que realmente importasse por que eu tinha uma ideia desde o momento que minha avó havia me dito que eu herdaria a bolsa de carteiro do primeiro trabalho do vovô.

Sorri com o presente.

“Posso ser um carteiro!” Falei e minha mãe entortou o lábio e depois sorriu. Acredito que ela achou que era uma piada.

“Que coisa ordinária, você deveria fazer algo importante da vida.” Meu pai argumentou e ele com toda certeza não estava feliz com a brincadeira.

“Não pai, não serei um carteiro comum, serei um entregador de estrelas! vou entregar estrelas para o céu!” Respondi sorrindo com a cara que meu pai fez. Não me entenda mal, mas no meu caso tudo que meu pai quer pra mim é o contrario do que eu quero.

“Claro, claro.” Ele deu de ombros e voltou a ler The Essex Standard que era o que ele fazia de melhor, a não ser quando ele falava de violência enquanto eu tomava chá.

Eu gosto de lembrar destes dias como os últimos dias de paz por que três meses depois tudo fiou caótico.

Meu pai foi preso por um crime que não cometeu (mesmo que ele falasse sobre isso no café da manha ele nunca mataria alguém) e acabou virando estrela dois meses depois deixando minha mãe sem forma de nós sustentar. Eu saí da escola mais cedo para ajudar na fazenda já que minha mãe estava sempre doente, mas todos meus esforços foram em vão; Acabamos sem dinheiro para continuar com a fazenda e minha mãe ficou mais doente. Quando eu fiz 9 o irmão dela mandou uma carta convidando-a para ir morar com ele em uma cidade distante. Ela aceitou, obviamente, mas em momento algum eu estive no meio disso e ele me deixou em Essex.

É difícil de lembrar e agora que eu me esforço a última lembrança que tenho dela é quando eu a acompanhei ate a estação de trem e ela se agachou, colocou as mãos nos meus ombros, olhou dentro do meus olhos e sussurrou “Você esta tao grandinho, olhe só, 9 anos. Eu te amo tanto”. Lembro do seu sorriso desaparecendo com o apito do trem e suas últimas palavras sendo “Não me siga, fique sentado, eu volto já” Ela mordeu o lábio e eu em minha inocência a abracei, ela me afastou “Espere por mim”. Não sei como fui burro o suficiente para me sentar na plataforma e a ver entrando em um trem sem ler a placa para o destino ou perguntar quando o trem voltaria. Vi o escurecer e acabei dormindo na estação. Lembro que me senti mal no outro dia ao levantar e andar pelas ruas ‘quebrei nossa promessa, mamãe’.

Depois daquele dia foi bem complicado confiar em pessoas por dois simples motivos:

1) Pessoas abandonam outras pessoas sem se importar com o que irá afetar desde que algo será ganho.

2) Eu não cumpri minha promessa.

Esqueci totalmente meus estudos e consegui um emprego em uma fábrica onde eu passei a morar. Cresci limpando as chaminés e fazendo outros trabalhos comuns na fábrica. No fim, eu passei mais tempo de vida sozinho do que com uma família completa.

A coisa boa de morar naquela fábrica é que minha cama é do lado da janela. Talvez janela é um elogio, por que é somente um buraco na parede e todo inverno eu penso que vou virar uma estrela congelada, mas isso nao importa por que de noite eu posso admirar as estrelas. Talvez eu goste de estrelas por que nos momentos que eu estava na fazenda as observando eu sabia exatamente onde eu estava, eu estava encontrado e agora, eu nem sei mais o que sou. Fiz 16 anos admirando estrelas, posso me considerar um profissional em olhar para cima e ignorar tudo ao meu redor.

Nunca mais consegui montar cenas como as do dia que minha avó virou estrela, minha mente parecia um breu e eu culpo a minha ignorância em ler. Como inventar outras histórias se não consigo conhecer mais?

Talvez o fato de tudo que aconteceu na minha infância ter sido catastrófico minha mente nunca se recuperou de o que alguns doutores chamam de trauma mesmo que eu quase me convenço de que sempre fui assim.

Às vezes entro em pânico. A imagem de cada pessoa que eu conheci antes de vir para a fábrica aparece em minha mente e é horrível, eu os vejo gritando e não consigo evitar o pensamento de que estão todos mortos. Às vezes isso me desespera tanto que eu não aguento e a não ser que eu prove a mim mesmo que não é verdade a assombração não vai embora. Eu não sei como começou, só acontece e tudo me traz de volta as imagens. Pessoas conversando, Pessoas dormindo. pessoas comendo. pessoas rezando. Pessoas correndo. Pessoas encarando. Pessoas escrevendo. Pessoas lendo. Pessoas gritando. Pessoas sussurrando. Pessoas beijando. Pessoas piscando. Pessoas flertando. Pessoas nadando. Pessoas sentando. Pessoas com planos de viagem. Pessoas com medo da morte. Pessoas que pintam. Pessoas que cozinham. Pessoas que ensinam. Pessoas que não olham para você. Pessoas. Trens também me apavoram, mas eu posso os evitar...


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