Mercado dos Mortos escrita por Goldfield


Capítulo 3
Capítulo II: Uma maldição se cumpre




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Capítulo II

Uma maldição se cumpre.

Os últimos clientes deixavam o supermercado. Alguns funcionários também. Nos caixas permaneceram apenas Judite e Bianca. Ao lado da primeira, Vinicius olhava impacientemente para o relógio na parede, os ponteiros tão lentos que pareciam pesados, feitos de titânio. Rodolfo continuava em sua bancada, bufando de descontentamento. No açougue, Jair se preparava para ir embora logo que Aluízio voltasse do banheiro. Na padaria, Gaspar também estava prestes a deixar a função, enquanto ouvia o despreocupado assovio de Seu Hermano enquanto trabalhava. O relógio marcou sete horas, e eles eram os únicos dentro do supermercado.

Súbito, algo inesperado ocorreu. As luzes do estabelecimento se apagaram repentinamente, deixando todo o recinto na total escuridão. Porém, antes que os presentes pudessem reagir ao susto, seus olhos mal se habituando às sombras e gritos de frustração morrendo em suas gargantas, a luz voltou. Mas não normalmente. As lâmpadas estavam mais fracas, o branco da luz havia se tornado sombrio. Avermelhado.

— Que foi isso? – perguntou Judite, assustada, olhando ao redor.

— Nada importante, Judy! – riu Vinicius. – Apenas uma queda de força. Acontece direto por aqui. A fiação deste lugar é nova e mesmo assim falha mais do que se fosse de cinquenta anos atrás. Agora, se me permite, a balada me espera!

Entusiasmado, o empacotador se aproximou da porta de vidro que levava para fora do supermercado, mas para sua surpresa, ela não abriu quando se aproximou. Ele não se preocupou, pensou que poderia ter sido uma falha nos sensores de movimento – isso já havia acontecido uma vez – e recuou alguns passos, se aproximando de novo para abrir a saída. Porém novamente isso não ocorreu.

— Quê? – surpreendeu-se Vinicius, começando a ficar alarmado.

— Que foi, Vinicius? – perguntou Judite, se levantando do caixa enquanto pendurava sua bolsa no ombro.

— A porta não abre! Ela não abre!

Vinicius tentou mais uma vez se distanciar e voltar para perto da porta, mas foi totalmente em vão. A saída não abria, havia algo errado. Provavelmente relacionado à queda de força.

— Puxa, não abre mesmo! – exclamou Judite, se aproximando.

— Merda de porta!

O empacotador deu um chute de raiva e frustração no vidro da porta. Será que perderia a balada por causa daquilo? Será que ele e os outros haviam ficado presos dentro do supermercado? Mil teorias passeavam em suas mentes naquele momento, porém poucas faziam sentido.

— Rodolfo! – chamou Judite, preocupada.

O segurança saiu de sua bancada e se aproximou, resmungando:

— Que foi, gente?

— A porta não abre, Rodolfo! – explicou a caixa, roendo as unhas pintadas de vermelho. – Ela não abre de jeito nenhum!

Com um gesto, Rodolfo pediu que ambos se afastassem. Os dois funcionários obedeceram, enquanto o segurança, com as mãos na cintura, examinava a porta de alto a baixo. Ele repetiu a ação de Vinicius, recuando alguns passos e avançando na direção da saída com o intuito de acionar os sensores, mas realmente nada ocorria.

— É, parece que os sensores queimaram após essa queda de força... – murmurou Rodolfo, cabeça baixa, ajeitando o boné.

— Como assim? – desesperou-se Vinicius. – Eu preciso ir embora! Preciso me encontrar com a galera no clube!

— Não podemos quebrar o vidro? – perguntou Judite. – Depois nós pagamos o estrago!

— Seria inútil... – respondeu o segurança, mordendo os lábios. – Todos os vidros deste supermercado possuem duas camadas de blindagem, inclusive as janelas e a porta, lembra? Assim os donos daqui pretendiam evitar arrombamentos.

— Meu Deus, e agora? – berrou o empacotador, dando mais um chute na porta. – Estamos presos aqui dentro!

Devido a todo aquele barulho, Gaspar e Bianca se aproximaram simultaneamente. O padeiro perguntou, braços cruzados:

— O que está havendo, pessoal?

— A porta não abre! – respondeu Judite, evitando fitar os olhos do rapaz, que sabia há algum tempo aparentar ter segundas intenções para consigo. – E não adianta tentarmos quebrar os vidros, pois são blindados!

— Droga, não acredito!

— Ai, e agora? – perguntou Bianca.

— Alguém aqui tem celular? – indagou Vinicius.

Houve um instante de silêncio. Aqueles que costumavam levar seus celulares para o supermercado, por algum motivo, não o fizeram aquele dia. Mal tinham tempo para mexer nos aparelhos durante o expediente, então era comum que os deixassem em casa vez ou outra. Por Deus, a cidade era pequena, então não era das coisas mais complicadas procurar um deles pessoalmente no supermercado para resolver algo, ao invés de ligar. A questão era que, daquela vez, todos haviam procedido da mesma maneira. Parecia uma armadilha do destino. Algo assustadoramente arquitetado.

— O telefone! – exclamou Rodolfo. – Por que não usamos o telefone público perto da cafeteria?

— Boa ideia – sorriu Bianca.

Rodolfo, Vinicius e Judite correram na direção da simpática cafeteria vazia do supermercado, que ficava no final da fila de caixas.

— Espero que consigamos sair daqui ainda hoje... – suspirou Gaspar.

— É mesmo, eu preciso pegar uma balada! – disse Bianca numa risadinha.

O empacotador apanhou o receptor do telefone como se fosse a coisa mais importante em sua vida. Mas, ao colocá-lo no ouvido, não ouviu som algum. O telefone público do supermercado estava mudo. Não podia ficar pior.

— Merda! – gritou o funcionário, pendurando o receptor de volta no telefone com violência. – Está sem sinal!

— E agora? – indagou Judite, que roía as unhas cada vez mais freneticamente.

— Temos que usar outro telefone! – disse Rodolfo. – Creio que haja algum no andar de cima, na gerência!

Nisso, Gaspar e Bianca se aproximavam.

— Conseguiram? – perguntou o padeiro, já sabendo a resposta só de olhar para as faces deles.

— Negativo – respondeu o segurança. – Parece que esse telefone foi mais uma vítima da queda de energia.

Vinicius balançou negativamente a cabeça, cabisbaixo. Como fariam para sair dali?

X – X – X

Nos fundos do supermercado, Seu Hermano ignorava o que ocorria, e continuava a passar o esfregão pelo chão, assoviando feliz e despreocupado.

Foi quando ouviu um som. O funcionário olhou instintivamente para os lados, e logo percebeu que o barulho viera da porta de madeira que levava aos fundos do supermercado.

O som se repetiu, mais pesado, e, lentamente, a porta começou a se abrir. Seu Hermano não conseguiu ver quem estava entrando no estabelecimento, mas um terrível cheiro de carne podre atingiu suas narinas – do tipo que só costumava sentir quando um carro atropelava um cachorro ou gato nas imediações do supermercado.

— Quem está aí? – perguntou o faxineiro, colocando o esfregão dentro do balde d'água.

Não houve resposta. A porta continuava se abrindo numa enorme lentidão, o rangido prolongando-se mais do que qualquer ouvinte gostaria, quando o funcionário conseguiu ver algo mais. Uma mão surgiu sobre a madeira, mas não era um membro comum. Estava totalmente decomposta, pele em frangalhos e vermes serpenteando sobre a carne pútrida, alguns caindo no chão que Seu Hermano acabara de limpar.

— Quem está aí? – insistiu o faxineiro, confuso e intrigado.

Não duvidava ser algum tipo de brincadeira feita por jovens, já que agora era costume celebrar o tal "Dia das Bruxas". Resolveu então se aproximar da porta. Esta, num movimento súbito, abriu-se por completo, empurrada pelo misterioso indivíduo do outro lado com tamanha força que aparentava ter a intenção de derrubá-la. Com isso, Seu Hermano viu algo que o fez recuar imediatamente.

Era um homem, mas o funcionário do supermercado não tinha certeza se poderia designar aquilo propriamente como um ser humano. Sua face estava totalmente sem pele, um buraco no crânio sobre as cavidades onde um dia existiram olhos. Por estas, mais e mais vermes saltavam sobre o chão. Parte da mandíbula estava exposta, exibindo boa parte da arcada dentária enegrecida.

O sujeito vestia um terno negro todo sujo de terra e uma gravata desbotada. Sua outra mão se encontrava no mesmo estado daquela anteriormente vista por Seu Hermano. A calça que usava, da mesma cor do terno, estava toda rasgada, e os pés descalços eram praticamente apenas ossos imundos.

— Quem é você? – exclamou o faxineiro, coração aos pulos, enquanto contemplava aquela criatura horrenda.

A resposta do monstro foi um gemido agonizante, que fez o corpo de Seu Hermano gelar. A "coisa", cambaleante, começou a caminhar na direção do funcionário, mais vermes e terra caindo pelo chão recém-limpo.

— Você precisa de ajuda? – indagou o pobre trabalhador, estendendo a mão direita para o soturno indivíduo.

Um erro que lhe custaria a vida.

O homem, num movimento rápido, abriu a boca repleta de dentes afiadíssimos, apesar de podres, e mordeu a mão de Seu Hermano com força descomunal.

— Ah! – gritou o faxineiro, sendo ouvido em todo o supermercado.

O funcionário, sofrendo enormemente com a dor, lutava para livrar sua mão. Após um chute na barriga da aberração, dado mais por instinto do que por raciocínio, fez com que ela caísse para trás, mas desesperou-se mais ainda quando olhou para a mão toda ensanguentada.

— Ai, meu Deus!

O dedo polegar de Seu Hermano fora arrancado pelo monstro, que agora o mastigava como uma linguiça, tentando ficar novamente de pé. Mordendo os lábios devido à dor, o faxineiro apanhou novamente o esfregão, seu sangue jorrando sobre o chão do supermercado. Por um mísero instante, foi como se quisesse insistir em limpar novamente o piso de toda aquela imundície... mas logo girou o utensílio para colocar-se em posição de defesa, decidindo inconscientemente que manter-se vivo era mais importante do que a eventual bronca que levaria dos patrões.

Logo a "coisa" já estava de joelhos, fitando Seu Hermano mesmo sem ter olhos. Este, num acesso de fúria, investiu com o cabo do esfregão contra a cabeça da criatura, mas o golpe, que seria mortal em qualquer pessoa, pareceu não surtir efeito contra o monstro.

— Quê? – espantou-se o funcionário.

O homem canibal estava novamente de pé.

— Desgraçado!

Desta vez a criatura saltou sobre Seu Hermano como uma cobra, derrubando-o.

O pobre faxineiro começou a gritar desesperado enquanto o monstro lhe dilacerava a carne com os dentes. Uma imensa poça de sangue começou a se formar sobre o piso que Seu Hermano limpara de forma dedicada por tantos anos. A dor crescia, quando novos gemidos surgiram.

Mais daquelas aberrações foram surgindo pela porta dos fundos. Primeiro uma mulher de pescoço quebrado, a cabeça pendendo para a esquerda, no mesmo estado do primeiro monstro, e depois um homem decomposto que Seu Hermano conhecia muito bem: João Leite, ex-prefeito de Santa Cecília do Oeste, morto há treze anos!

Os recém-chegados iam se abaixando ao lado do agonizante faxineiro, tomando parte no banquete. Eram como uma sinistra e feroz alcateia. Quando a mulher arrancou um pedaço do rosto de Seu Hermano com os dentes, seus cabelos compridos sujos de terra lambuzando-se no sangue do faxineiro, o pobre funcionário deu um último grito de dor e frustração, enquanto sua visão desaparecia...

X – X – X

Assim que os desesperados berros de Seu Hermano foram ouvidos, todos os funcionários do supermercado, aturdidos, calaram-se. Logo os brados também cessaram, como o ponto final a uma melodia diabólica, e Judite perguntou, trêmula:

— Vocês ouviram isso?

— Ouvimos! – assentiu Vinicius, petrificado pelo medo. – Veio lá dos fundos, e parece ser o Seu Hermano!

— Eu posso ir lá checar – ofereceu-se Rodolfo, colocando munição no revólver já em sua mão. – Alguém quer me acompanhar?

— Eu também posso ir! – exclamou Gaspar.

— Rodolfo... – suspirou Bianca, apavorada, enquanto apontava para a arma nas mãos do segurança. – Isso é realmente necessário?

— Você não ouviu os gritos, Bianca? – indagou o segurança, franzindo as sobrancelhas. – Há algo estranho acontecendo, talvez seja alguém tentando assaltar o supermercado!

A caixa calou-se. Realmente fazia sentido. Talvez os meliantes tivessem cortado a energia para evitar a saída dos funcionários, e então entraram pulando o muro nos fundos. Mas e Seu Hermano? O que teriam feito com ele?

— Vamos logo! – disse Rodolfo, segurando sua arma como se fosse o próprio John Wayne.

O segurança e o padeiro desapareceram correndo por um dos corredores do supermercado, enquanto os demais funcionários mal conseguiam respirar de tanto medo e ansiedade.

X – X – X

Aluízio lavava suas mãos lambuzadas de sabonete líquido na pia do banheiro quando pensou ter ouvido gritos. O açougueiro não deu muita importância ao fato, já que era Halloween e o passatempo preferido dos jovens era assustar uns aos outros pelas ruas, e após enxugar as mãos deixou o lavatório.

Ao caminhar por entre as prateleiras do estabelecimento, o açougueiro sentiu algo estranho no ar. O clima do supermercado era mórbido, fantasmagórico. Tudo estava incomodamente quieto. E um cheiro... um cheiro de carne podre se espalhava!

— Mas...

Antes que pudesse indagar-se sobre o que ocorria, Aluízio ouviu alguém exclamar, voz quase sumida:

— Socorro!

Era Jair, e o pedido de ajuda vinha do açougue. Aluízio correu para lá.

X – X – X

Rodolfo e Gaspar corriam como dois loucos pelos corredores do supermercado, o segurança à frente. Súbito, o ex-policial parou a alguns metros da saída dos fundos, olhando perplexo para frente. O padeiro alcançou-o fitando o chão, e demorou a perceber o que havia chamado a atenção de Rodolfo.

A porta dos fundos estava aberta, e entre ela e os dois funcionários do supermercado havia cerca de sete pessoas abaixadas sobre algo. Porém, não eram indivíduos comuns. Elas vestiam ternos e vestidos cobertos de terra, e praticamente não tinham pele. Em algumas era fácil notar membros quebrados e ossos expostos – até mesmo plantas crescendo por entre as cavidades obscuras repletas de poeira.

De repente, uma daquelas coisas percebeu a presença dos dois homens, e levantou-se. Rodolfo e Gaspar puderam então observar com espanto o rosto da criatura: totalmente desfigurado, com ausência de nariz e olhos. Por buracos escuros em sua carne podre vermes escorregavam e caíam sobre o chão, e o odor de carniça cresceu conforme a figura chegou mais perto.

— Mas, que são essas coisas? – gritou o padeiro, desesperado.

— Não pode ser...

Rodolfo estava abismado. Tantos filmes de terror sobre eles, desde as clássicas películas de George Romero até os modernos efeitos especiais que os deixavam ainda mais assustadores, e agora estavam ali, bem na frente de seus olhos, devorando um cadáver...

— Zumbis.

Todos os outros seis mortos-vivos começaram a se levantar, gemendo em agonia. Para piorar, mais deles entravam pela porta dos fundos, exibindo os dentes afiados. Dezenas deles.

Os monstros caminhavam na direção dos dois funcionários, braços erguidos como se fossem sonâmbulos que houvessem percorrido o mundo por tanto tempo sem repousar que até haviam se decomposto. Rodolfo e Gaspar puderam então ver o que os zumbis devoraram: era o corpo de Seu Hermano, sobre uma extensa poça de sangue, coberto de mordidas e totalmente mutilado.

— Deus do céu, o que faremos? – perguntou Gaspar, recuando pelo corredor junto com Rodolfo.

— Ora, você nunca assistiu a filmes de mortos-vivos?

O segurança, com as duas mãos, apontou o revólver para o zumbi que vinha à frente dos outros. Após mirar por um instante, Rodolfo disparou, atingindo a aberração em cheio na testa.

O morto-vivo caiu imediatamente, derrubando também uma zumbi que vinha logo atrás. Apenas esta se levantou, mostrando que a tática de Rodolfo surtira efeito.

— Deve-se atirar sempre na cabeça – sorriu o segurança.

— Certo, mas vamos avisar os outros, rápido!

A dupla recuou em disparada pelo corredor, enquanto as suspeitas de Rodolfo se confirmavam: a maldição de padre Tadeu havia acabado de se cumprir.

X – X – X

Enquanto Aluízio pulava sobre o balcão do açougue, um tiro ecoou pelo supermercado. Havia algo de muito errado acontecendo, e o rapaz certificou-se disso logo que olhou para o chão do local de trabalho, poucos metros à frente de onde estava.

Jair estava caído sobre o piso, já sem vida, sangue escorrendo de seu pescoço estraçalhado. Abaixado sobre seu corpo estava um sujeito de terno encardido, pele em frangalhos e face desfigurada, fedendo terrivelmente a carne podre. Seus lábios estavam lambuzados de líquido rubro, enquanto, aproximando a cabeça do pescoço de Jair, voltava a mastigar sua garganta com os dentes afiados como facas.

— Pare, já! – gritou Aluízio, aturdido. No fundo, sabia que aquele assassino, fosse lá sua origem, não seria do tipo que atenderia a um comando como aquele.

A coisa lhe fitou. Seus olhos eram dois globos brancos sem vida. O morto-vivo levantou-se, braços erguidos na direção da nova presa, enquanto cambaleava feito um bêbado na direção de Aluízio.

O espanto do rapaz fez com que aquela terrível sensação voltasse. Ele não sentia aquilo há tempos, desde que começara a trabalhar no supermercado, mas não podia mais se controlar. O nervosismo dominou-o, a ansiedade prendendo-o com seus grilhões trêmulos. Quando isso ocorria, Aluízio se transformava numa outra pessoa. Uma pessoa perigosa, imprevisível. Explosiva.

Rapidamente o açougueiro, gritando em fúria e sem dar conta do que ao certo fazia, apanhou um cutelo afiado que estava sobre o balcão, ainda sujo com o sangue das carnes que cortara aquela tarde. Em seguida arremessou-o na direção do zumbi.

A lâmina girou no ar e atingiu a cabeça do morto-vivo na vertical, enterrando-se na região entre os olhos do monstro. Mas, para espanto de Aluízio, o zumbi apenas recuou brevemente e continuou caminhando em sua direção, soltando um gemido infernal.

— Droga!

Súbito, um tiro foi ouvido pelo açougueiro. O monstro veio ao chão, atingido num dos ouvidos – e viu sua cabeça, com cutelo e tudo, explodir da direita para a esquerda. Aluízio, surpreso, olhou para seus dois salvadores: o segurança Rodolfo, com um revólver em mãos, e Gaspar, o padeiro, apenas observando ofegante.

— Que coisa é essa? – gritou Aluízio, trêmulo, fitando a criatura no chão agora decapitada e em seguida o corpo inerte de Jair, retirando do rosto a máscara de trabalho.

— São zumbis – respondeu Rodolfo. – Eles estão invadindo o supermercado pelos fundos. Vamos avisar os outros e correr para o andar de cima, antes que nos transformemos neles.

Aluízio ficara na mesma, porém saltou sobre o balcão, seguindo os dois na direção da entrada do supermercado. Atrás deles, gemidos daquelas aberrações. Logo se aproximaram dos demais funcionários do estabelecimento, que ainda aguardavam junto aos caixas com grande receio. Chegarem todo cobertos de sangue e miolos despertou a reação esperada:

— O que aconteceu? – quis saber Judite, arregalando os olhos. – O Seu Hermano está bem?

— Acredite, garota, você não vai querer saber! – afirmou o segurança, olhando de forma apreensiva para trás com o revólver em punho.

Súbito, um alto som gutural respondeu à indagação da jovem. A atenção de todos voltou-se para o corredor pelo qual os recém-chegados tinham vindo. Uma verdadeira multidão de zumbis sanguinolentos avançava por ele na direção dos seis indivíduos trancados dentro do supermercado, atropelando-se, acotovelando-se. Alguns dos mortos-vivos acabavam caindo e eram inconscientemente pisoteados por seus colegas defuntos – a cabeça de um deles esmigalhando-se sob o peso de uma botina usada por um zumbi que fora sepultado com chapéu de vaqueiro.

— Virgem Maria, quem são essas pessoas? – gritou Vinicius. – E por que elas estão se esfarelando desse jeito?

— Não são bem pessoas... – murmurou Gaspar. – Acho que esta é a deixa para corrermos!

— Mas correr para onde? – desesperou-se Bianca.

— O escritório da gerência! – propôs Aluízio. – Lá deve haver algum telefone que possamos usar para chamar a polícia!

Todos assentiram rapidamente com a cabeça, correndo como loucos na direção da escada que levava ao segundo andar do prédio, a qual se encontrava a cerca de dez metros da posição atual do grupo. Porém, no meio do caminho, Judite percebeu que alguém ficara para trás. Virando-se na direção dos caixas, notou o fato de que Vinicius, totalmente imóvel, nem ao menos saíra do lugar, estando totalmente à mercê dos mortos-vivos cada vez mais próximos.

— Corra, rápido! – exclamou a jovem, temendo pela vida do amigo.

Mas qualquer esforço seria em vão. Paralisado devido ao medo, o empacotador não conseguia tirar os olhos daquelas pavorosas criaturas que pareciam ter saído direto do inferno. Para ele, naquele momento, era impossível mexer as pernas. Estava condenado à morte.

— Saia daí, Vinicius! – insistiu a colega, chorosa.

— Não consigo! – replicou o rapaz, trêmulo da cabeça aos pés.

E, impotente diante da ameaça, o funcionário foi derrubado por um zumbi que saltou sobre si, abocanhando-lhe o pescoço com seus dentes afiados. Um verdadeiro mar de líquido rubro jorrou sobre o piso do supermercado, ao mesmo tempo em que mais cadáveres ambulantes aderiam ao banquete.

— Vinicius, não! – berrou Judite aos prantos, caindo de joelhos no chão.

— Venha logo! – disse Gaspar, puxando a jovem pela mão direita.

Os fugitivos venceram os degraus da escada como se estes fossem um só, adentrando velozmente um dos corredores do andar superior. Os zumbis que não haviam perdido tempo com Vinicius continuavam no encalço dos sobreviventes, seus gemidos horripilantes provocando calafrios em cada um deles.

— Cadê a maldita entrada da gerência? – perguntou Aluízio, calculando o tempo que ainda possuíam antes que os mortos os alcançassem.

— Aqui! – respondeu Rodolfo, aproximando-se de uma porta trancada. – Afastem-se!

Os demais obedeceram, e o segurança estourou o trinco com um disparo de seu revólver. Ele sabia que a bala poderia ter ricocheteado e atingido a si próprio ou um dos colegas, porém o instinto de sobrevivência falou mais alto e por sorte isso não ocorreu. Logo depois gritou, gesticulando nervosamente:

— Rápido, para dentro!

O grupo adentrou a sala, ainda seguido pelos mortos-vivos, que já subiam pela escada aos tropeços. A porta foi fechada por Bianca, a última a entrar, enquanto Gaspar exclamava:

— Temos que erguer uma barricada para impedir que os zumbis entrem aqui!

— É verdade! – concordou Rodolfo, o "expert" em criaturas sobrenaturais entre eles. – Vamos, peguem o que puder e coloquem diante da porta para obstruí-la!

Todos começaram a fazê-lo. Em poucos segundos já havia uma prateleira e algumas cadeiras bloqueando a entrada do escritório. Entretanto, não era o suficiente, pois as aberrações esmurravam a porta furiosamente e com um pouco mais de esforço conseguiriam derrubá-la. Aluízio somou uma mesa à barreira. Judite e Bianca, por sua vez, empurravam um pesado armário de metal na direção dos demais obstáculos. Assim que concluíram a tarefa, Rodolfo disse, ao mesmo tempo em que a improvisada barreira se estabilizava:

— Já basta! Parece que estamos seguros aqui, por enquanto...

Segundos depois, os mortos-vivos pararam de golpear a porta. Um silêncio fúnebre tomou a sala, como se ali estivesse sendo realizado um velório. Os sobreviventes, ofegantes e confusos, sentaram-se no chão e sobre os móveis que não haviam sido usados na barricada, analisando minuciosamente a situação. Judite chorava por Vinicius.

— O telefone! – lembrou Aluízio num sobressalto.

O coração de todos pulsou mais rápido, pois em suas mentes surgiu a esperança de escaparem dali sãos e salvos. Gaspar caminhou até uma escrivaninha onde era possível ver o aparelho em questão. Com as mãos formigando, apanhou o receptor, colocando-o junto ao ouvido. Sua expressão facial tornou-se fria e resignada após um único segundo de alento. Assim como no andar inferior, não havia sinal de linha.

O MAPA DOS MORTOS:


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Notas finais do capítulo

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