Mercado dos Mortos escrita por Goldfield


Capítulo 2
Capítulo I: 31 de outubro de 2005




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Capítulo I

31 de outubro de 2005.

Judite, como se fosse uma máquina já acostumada a repetir sempre os mesmos movimentos, passava os produtos da senhora pelo leitor de código de barra e os arremessava na direção de Vinicius. Após deslizarem sobre o caixa, eles eram apanhados pelo empacotador e colocados dentro de sacolas plásticas numa rapidez admirável – fazendo a garota imaginar que, se existisse algum esporte de jogadas similares a arremessar coisas sobre uma esteira para serem apanhadas do outro lado, o colega se daria bem. Ambos vestiam a peça azulada que transitava entre macacão e avental utilizada por boa parte dos funcionários do estabelecimento. Não gostavam do modelito, porém não trajá-lo poderia significar demissão.

Logo o último produto passou: uma lata de ervilhas. Odiava ervilhas, mas não mais do que rejeitava as azeitonas. Judite olhou para a tela do computador do caixa e disse, num tom de voz amargo, em parte provocado pelo pensamento nos alimentos que não a agradavam:

— São vinte e oito reais e cinquenta centavos!

A senhora abriu a bolsa para pegar o dinheiro de modo tão vagaroso que uma tartaruga fazendo dança de salão seria mais veloz. Judite estava mesmo exausta daquele emprego. A cada dia o trabalho lhe era mais cansativo e monótono, além de proporcionar dores de cabeça descomunais ao fim do expediente.

A caixa pegou o dinheiro e Vinicius entregou as sacolas à cliente. Enquanto ela caminhava apressada até a saída do supermercado, o empacotador perguntou a Judite, decerto igualmente não aguentando mais a rotina e desejando extravasar:

— Você vai ao baile de Halloween?

— Qual deles? – a funcionária ainda estava distraída com o dinheiro, guardando-o na gaveta.

— Ora, no Clube Ceciliano! É o que vai mais bombar!

— Aquele à fantasia?

— Esse mesmo!

— Minha irmã vai... – Judite lembrou-se com certo desinteresse. – Eu, acho que não!

— Mas como assim? Você nunca perde uma balada, Judy!

— Isso era antes de arranjar este emprego! Olhe só pra mim! Eu pareço uma morta-viva! E me chama de Judite, OK?

Vinicius balançou a cabeça em sinal de reprovação. Judite olhou para o relógio numa das paredes do supermercado: seis e meia da noite. O expediente estava no fim, afinal, após uma longa tarde em que o tempo parecera não passar. Ela poderia chegar em casa e desmaiar na cama... Ah, que delícia!

Realmente, Judite costumava ser uma bailadeira de primeira. Não perdia uma festa. Mas aquele emprego no supermercado realmente a estava matando, e já fazia tempo desde a última vez em que dormira depois das onze.

O que mais havia em Santa Cecília do Oeste eram baladas, já que naquela cidade quase não havia o que fazer. Era só aparecer uma data até meio sem importância no calendário e pronto, lá estavam os organizadores de eventos da prefeitura e os donos de clubes anunciando bailes, muitas vezes simultâneos. E no Halloween não era diferente – por mais que alguns de seus amigos protestassem sobre não ser uma festa genuinamente brasileira e coisa e tal.

Porém, brasileira ou não, aquela seria mais uma balada que não contaria com a honra da presença de Judite...

X – X – X

— Boa noite, Aluízio!

— Boa noite, Seu Barbosa! O mesmo de sempre?

— Por favor!

Aluízio, com o sujo avental branco de açougueiro, máscara e touca na cabeça, foi providenciar o contrafilé que o senhor Barbosa levava todo início de noite. O rapaz trabalhava no supermercado há pouco mais de um ano, ocupando o antigo cargo do pai que se aposentara.

Só mesmo sendo açougueiro para usar uma máscara assim na cara... – ele comumente refletia, divertido, apesar de tudo. – Porque se for depender de eu me formar médico...

A triste história de Aluízio era conhecida em toda a cidade: um brilhante aluno no colégio, mas que nunca conseguiu passar em nenhum vestibular e acabou desistindo de cursar faculdade. A razão de seu mau desempenho nas provas era simples: nervosismo. Ele dominava o conteúdo como ninguém, mas na hora de aplicá-lo, ficava inseguro e transtornado. Já tentara vencer esse problema de inúmeras formas, mas fracassara em todas – o sonho antigo de entrar em Medicina agora não passando de um devaneio que ele mesmo reprovava. Além de quando fazia provas, Aluízio também ficava nervoso sob pressão, principalmente se tivesse que assumir alguma responsabilidade ou tomar uma decisão. Como açougueiro, ofício que aprendera com o pai, o rapaz pensava estar longe de situações como essa. A carne que picava, mesmo sangrenta, jamais cobrava nada de sua pessoa...

Uma defesa, talvez?

Sim, já o haviam chamado de covarde, não poucas vezes. Insistiam que nunca conseguiria nada notório permanecendo naquela vida, que Santa Cecília do Oeste despossuía oportunidades... Mas buscar algo além, infelizmente, estava além de sua capacidade. De nada bastava dominar uma boa gama de conhecimento se seu estado de nervos impedia que o colasse em prática...

Devido à sua grande inteligência, várias pessoas, como Barbosa, simpatizavam com o açougueiro, e gostavam de conversar com ele sobre política, atualidades, entre outros assuntos. Às vezes essas conversas levavam horas; não era difícil encontrar Aluízio levando uma bronca do patrão. Mas o que mais importava é que ali ele estaria longe de situações estressantes, ou assim achava...

Ser querido pelos fregueses e ter domínio do que faço... Mesmo ganhando pouco, acho que não poderia querer mais.

X – X – X

Atrás de uma bancada perto da entrada do supermercado, havia um homem sentado numa cadeira, vestindo uniforme preto. Em sua cintura exibia, com nítido orgulho, um coldre com um revólver calibre 38 em seu interior, algumas balas extras presas do lado de fora, e em seu peito, um crachá: "Rodolfo Ferreira – Credir Segurança Particular Ltda". Na cabeça possuía um boné com a logomarca da empresa, algo como uma mistura de formas geométricas que talvez espantasse algum assaltante com pavor de matemática.

Na frente da bancada havia dois meninos e um adolescente que, debruçados de frente para o segurança do supermercado, ouviam atentamente o que falava:

— E então? – sorriu Rodolfo. – Vocês querem ouvir minha história ou não?

— Conta sim, Rodolfo! – pediu um dos meninos. – Conta!

— Está bem, mas vocês juram não contar aos seus pais?

— Pare de embromação e conta logo! – irritou-se o adolescente, cruzando os braços.

— Muito bem. Não sei se vocês sabem, mas até dez anos atrás, este lugar era um cemitério!

Breve pausa se seguiu, com os jovens assimilando a perturbadora informação. Rodolfo já estava acostumado: as pessoas o decepcionavam por serem tão previsíveis.

— Um cemitério? – espantou-se o menino mais novo.

— Disso eu já sabia! – riu o mais velho. – Assim como onde é a fábrica de laticínios era um hospício! Conta outra. Se for por essa lógica, a cidade toda é amaldiçoada...

— Cale-se e me deixe contar! – exclamou o segurança, irritado. Aquele era seu momento, era ele o narrador; por mais que alguns achassem aquela história manjada. – Bem, quando os empresários vieram comprar o cemitério para construir este supermercado, havia um padre que repudiava a ideia. O nome dele era Tadeu Lima, um velho misterioso.

— E o que tem ele?

— Na noite do dia 31 de outubro de 1995, há exatamente dez anos, padre Tadeu enlouqueceu – disse Rodolfo, enquanto sua voz tomava tom cada vez mais horripilante. – Até hoje não se sabe ao certo o que houve, mas na manhã seguinte, ele foi encontrado dentro da capela do cemitério, onde hoje é a padaria do supermercado, morto.

— Oh! – espantaram-se os garotos em uníssono, com exceção do mais velho.

— A autópsia revelou que foi um infarto, apesar da saúde de ferro do padre, que conseguiu chegar quase aos cem anos sem tomar remédios e com o físico tão magro quanto uma vara. Alguns, porém, dizem que Tadeu praticava bruxaria secretamente, e que antes de morrer, vendeu sua alma para poder amaldiçoar este lugar, vingando-se dos compradores do cemitério.

— Cara, você já está me deixando com medo... – afirmou o menino mais novo.

— Ah, então vocês estão aí? – exclamou uma senhora carregando sacolas nas mãos, expressando-se em tom zangado. – Ouvindo de novo as histórias desse cara?

— Mas, eu... – tentou se explicar Rodolfo.

— Nem mas, nem meio mas! – esbravejou a mulher, puxando os garotos. – Da próxima vez que encontrar você amedrontando meus filhos, vou contar ao meu marido, entendeu?

Rodolfo Ferreira havia trabalhado como investigador da Polícia Civil em Santa Cecília do Oeste, de 1998 a 2002. Foi afastado da corporação devido às suas "teorias", uma ação administrativa tendo sido feita para demiti-lo do cargo após demorada apuração de suas ações como policial. Rodolfo era um grande defensor do sobrenatural, e acreditava no impensável. Qualquer crime, levando em conta suas circunstâncias, poderia ou não estar associado a nuances paranormais. Não demorou para acusarem-no de manipular evidências e informações – embora ainda tivesse consigo que acabara espiando segredos que poderosos preferiam deixar ocultos, sendo essa a verdadeira razão de seu afastamento. Havia conseguido o emprego de segurança no supermercado no final de 2003, mas logo seria igualmente removido se continuasse com suas histórias mirabolantes...

...porém, tinha certeza, verdadeiras.

X – X – X

— Dois pãezinhos, Gaspar!

— É pra já, Dona Rita!

O jovem Gaspar, todo de branco e também com os cabelos cobertos por uma touca, foi providenciar os pães. Trabalhava na padaria do supermercado há dois meses, quase o mesmo tempo desde que a caixa Judite havia arranjado o emprego.

E lá está ela...

Do balcão do "quiosque" no meio do supermercado que compunha a padaria, Gaspar conseguia quase sempre observar a colega nitidamente. Sua "deusa mercadora", como gostava de pensar – transformando o rústico avental azul do estabelecimento quase numa túnica resplandecente. Como era bonita, tanto de rosto quanto de corpo! Os colegas chamavam-na, pelas costas, de "gostosa", assim como aquela outra caixa, a Bianca. Já deviam ter ouvido, porém não demonstravam – e de um jeito ou de outro, o padeiro não gostava de utilizar aquele termo. Era por demais vulgar, e Judite estava acima da vulgaridade... Acima, na verdade, de qualquer outra garota que já conhecera.

Ele simpatizava muito com a moça, havendo se tornado até um de seus únicos amigos no supermercado além do empacotador Vinicius; mas, apesar de querer tornar aquilo algo maior que amizade, seus esforços eram em vão. As conversas nunca rendiam muito, ela e o rapaz aparentemente tendo pouco em comum – sem contar que a caixa sempre parecia cansada, odiando aquele trabalho como tantas vezes já manifestara, e dessa maneira ficava difícil ela conseguir enxergar alguém daquele ambiente como um possível candidato a namorado – sequer ficante. Gaspar com frequência a fitava com desejo, mas Judite sempre desviava o olhar, o rosto se contorcendo num misto de surpresa e repulsa. Ele sabia que ela não era comprometida, no máximo ficava com um carinha ou outro nas baladas – das quais, segundo fontes confiáveis, encontrava-se sumida. O que teria que fazer para conquistá-la? Seria ela uma garota tão difícil assim?

Preciso parar de ficar apenas nos planos e "colocar a mão na massa"... literalmente.

Tendo já apanhado os dois pães franceses e os entregado à freguesa dentro de um saquinho, Gaspar aproveitou o momento sem ter de atender mais alguém – típico do final de expediente – para lançar novo olhar à sua musa dos caixas. Acabou observando uma curiosa figura surgir pela porta do supermercado, mais além, e se aproximar da garota sem que ela percebesse... lamentando, em seu íntimo, que todos no mundo pareciam ter fácil acesso à moça, menos ele.

X – X – X

Judite terminava de passar pelo leitor de código de barra os produtos de mais um cliente, quando uma mão tocou seu ombro esquerdo. Enquanto virava-se para trás, ouviu uma voz conhecida saudar:

— Olá!

A caixa teve tamanho susto que até saltou sobre o banquinho. Em sua frente havia uma figura feminina, cabelo roxo, olheiras horrendas, caninos pontiagudos de vampiro e sangue escorrendo da boca borrada de batom. Logo ela reconheceu Carla, sua irmã caçula.

— Puxa, fedelha, você me assustou! – suspirou Judite, tomando fôlego.

— Ah, irmãzinha... – sorriu a garota, mostrando os dentes bonitos semiocultos sob a prótese de plástico que usava. – Você se assustou mesmo?

Judite recebeu o dinheiro do cliente, que pareceu incomodado pela aparência da menina, e respondeu:

— Sim, eu me assustei! Por quê?

— Você anda muito estressada, deveria mudar de emprego...

Vinicius, após entregar as sacolas para o cliente, exclamou, ao se aproximar da recém-chegada:

— Que bela fantasia, Cacá! Você vai à balada do Ceciliano?

— Oi, Vinicius! – saudou Carla, trocando beijos no rosto com o amigo da irmã. – Vou sim! E você?

— Também vou, logo que o expediente acabar vou pra casa vestir minha fantasia.

— E do que você vai fantasiado?

— Predador!

— Ah, que legal! O Lucas vai de Alien. Vocês podem até brigar lá, que nem naquele filme que fomos ver ano passado.

— Se ele vier com aquelas gracinhas pra cima de mim, brigo mesmo!

Judite fingia ignorar a conversa dos dois, assim como o pensamento de uma eventual briga postiça entre dois monstros conhecidos do cinema, digitando valores no computador do caixa. Ela queria ir ao baile, afinal...

— Vamos para a balada, irmãzinha! – sorriu Carla, como se pudesse ler os pensamentos da irmã mais velha. – Vai ser divertido, quem sabe você não arranja um namorado por lá!

— É mesmo, Judy! – empolgou-se Vinicius. – Meus primos de Casa Branca e Aguaí vão vir, acho que você vai gostar deles.

— Gente, eu ando muito cansada... – suspirou Judite, cabisbaixa, sentindo que contrariava a si mesma ao falar.

— Vamos sim, assim você se anima!

Os apelos cessaram quando Judite começou a atender outro cliente no supermercado quase vazio. Faltavam quinze minutos para as sete horas, quando terminava o expediente.

X – X – X

Aluízio entregou o colchão-mole para a freguesa e virou-se para o amigo Jair, que ali também trabalhava. Ele perguntou para Aluízio:

— Você vai a algum baile hoje?

— Não, nunca gostei de bailes...

— É por isso que não arranja namorada... – a constatação veio no tom irritante de uma reprimenda. – Você precisa sair mais, Aluízio.

O rapaz fingiu ignorar o amigo, enquanto fatiava pedaços de carne com uma faca afiada e ensanguentada.

— Cara, cortando carne assim você parece um psicopata!

— Fique quieto, Jair!

X – X – X

Rodolfo levantou-se, saiu de trás da bancada e caminhou até um dos caixas. Nele estava Bianca, provavelmente a mais bela e simpática funcionária do supermercado. Trabalhava ali há cerca de seis meses e encantava a todos ao redor, tanto clientes quanto colegas de trabalho. O segurança estava de olho nela há tempos – e achava ter razoáveis chances, já que ela gostava de ouvir suas histórias... embora não tivesse certeza se ela dava crédito às mesmas.

— Oi, Bianca – saudou Rodolfo, enquanto a moça recebia o dinheiro de um cliente.

— Oi, Rodolfo. Tudo bem?

— Tudo ótimo. À que baile você vai?

— Clube de Regatas da Lagoa – sorriu Bianca.

— Mas é no Ceciliano que vai ser a melhor balada! – não sabia ao certo por que estava falando aquilo. Ele queria sair com ela, e pra começar contrariava a garota?

— É que meu tio é dono de lá, assim posso entrar de graça.

— Entendo... – Rodolfo bem gostaria de ter parentes donos de comércio que dessem a ele coisas de graça, porém não tivera essa vantagem nem mesmo numa cidade pequena como aquela.

— E você? – ela indagou num sorrisinho.

— Bem, vou ter que ficar até mais tarde aqui hoje, mas assim que sair, darei um pulo no clube do seu tio para te encontrar.

— Então nos vemos lá! – ela pareceu bastante animada, e o segurança, que já fora mais ingênuo, captou a deixa.

Não conseguia acreditar ser verdade. Depois de anos lutando, levando foras de todas as garotas possíveis e imagináveis naquela porcaria de cidadezinha, ele finalmente conseguiria um encontro com uma delas, e para sua felicidade uma das mais lindas e meigas que já tivera o prazer de conhecer. Seus relacionamentos anteriores haviam sido todos muito mais breves do que gostaria, resultando nos mais diversos desastres. Nem mesmo a rápida carreira na Polícia Civil, que acreditara poder atrair alguns rabos de saia e romper com a aura "nerd" que o acompanhara desde a adolescência, resultara em algo positivo naquela área. Pior era ouvir parentes e amigos falando que, quanto mais perto dos trinta chegava, mais difícil a coisa se tornava. A sorte, entretanto, aparentemente resolvera lhe sorrir depois de tanto tempo e desenganos. Entusiasmado como nunca, soltou, quase sem perceber:

— Mal posso esperar!

Eles trocaram sorrisos, enquanto Rodolfo voltava para a bancada. O terreno estava preparado. Ele ia conseguir conquistar Bianca, e seria aquela noite. Estava na hora, realmente, de ela descobrir o que mais ele tinha a oferecer além de seus contos macabros...

Este trinta e um de outubro entrará para a História!

X – X – X

Gaspar tornou a olhar para o caixa que tanto atraía sua atenção, depois de atender mais dois fregueses. A garota fantasiada que chegara há pouco se parecia um pouco com Judite; talvez fosse sua irmã. A caixa, como sempre, aparentava desânimo: aquele emprego devia estar sendo muito cansativo para ela.

Se ao menos eu pudesse te oferecer algo diferente...

De repente, Gaspar sentiu algo estranho. Seu corpo todo gelou, como se um vento frio o houvesse atingido. Porém, todas as janelas do supermercado estavam fechadas, assim como a porta de entrada, e se aquela corrente houvesse entrado pela saída dos fundos, encontraria várias prateleiras pelo caminho e ali chegaria bastante reduzida. O ar condicionado tampouco era tão potente. Que teria sido aquilo?

X – X – X

— Nossa, vocês sentiram isso? – indagou Judite, abraçando seu corpo para se livrar da sensação de frio.

— Sentimos! – exclamou Vinicius, confuso, enquanto olhava para os lados. – Pareceu ser um vento gelado!

— Mas como? – riu Carla, também espantada. – Vejam, as janelas e a porta estão fechadas!

— Só sei que me arrepiei toda... – murmurou a caixa, um tanto trêmula.

— Ah, gente, deve ter sido só o ar condicionado. Já vou indo, preciso passar nuns lugares antes da balada.

— À que horas ela começa mesmo? – perguntou o empacotador.

— Nove e meia – Carla sorriu.

— Tenho tempo de sobra para ir em casa me vestir. Acho até que vou passar na casa do Mário.

— Que Mário? – Carla não poderia perder a oportunidade de lançar a milenar piada.

Vinicius deu uma risadinha sem graça ao mesmo tempo em que a menina se voltava de novo para a moça e perguntava:

— Você não vai mesmo, Judite? – e sua irmã sabia que quando ela lhe chamava pelo nome, estava falando com seriedade.

— Não, não vou não... – resmungou a funcionária do supermercado, passando a mão pelos cabelos castanhos.

— Melhor então, sobram mais gatinhos pra mim!

Carla caminhou na direção da porta e saiu do estabelecimento. Vinicius, após um instante de silêncio, pigarreou e disse:

— Você devia ir, Judy, para se divertir um pouco.

— Não vou e acabou... E é Judite!

Vinicius deu um suspiro e olhou para o relógio: cinco para as sete da noite. Os ponteiros aparentavam mesmo maior lentidão aquele dia, como se zombassem deles em sua labuta.

X – X – X

— Que terá sido isso, Jair? – perguntou Aluízio, que também sentira aquela sensação estranha e gélida, mesmo estando mais familiarizado a ela devido ao trabalho no freezer do açougue.

— Corrente de ar... – murmurou o outro açougueiro. – Já vai acabar o expediente, vamos tirar estes aventais.

— Antes preciso ir ao banheiro...

— Pode ir, eu te espero pra gente ir embora.

Aluízio, ainda trajando o uniforme de trabalho com máscara e tudo, deixou o açougue e seguiu na direção de um dos banheiros masculinos do supermercado, a poucos corredores de distância. Precisava muito urinar, pois não o fazia desde a hora do almoço. Não desejava usar sua bexiga para bater nenhum recorde.

Se não consegui passar no maldito vestibular, não é por algo assim que quero ficar conhecido...

X – X – X

Rodolfo havia tido uma das piores sensações de sua vida quando aquele frio repentino atingiu seu corpo. Mesmo após o fim do fenômeno, ele continuou sentindo calafrios, tremendo como uma criança assustada. Quando estava na Polícia Civil, costumara visitar várias vezes a área rural da cidade, onde em locais descampados a força da natureza não era nada generosa – mas ainda assim aquela repentina corrente no interior do supermercado conseguiu superar as ondas de frio da mata. Pela cara de Bianca no caixa, examinada num breve vislumbre, ela também sentira aquilo.

Quando contara o caso do padre Tadeu para aqueles três garotos, Rodolfo havia se lembrado das datas... 31 de outubro de 1995, 31 de outubro de 2005... Haviam se passado exatos dez anos desde aquela história de mistério envolvendo o cemitério onde hoje era o supermercado, por sinal uma das preferidas do segurança. E se aquilo tudo...

— Não, Rodolfo! – disse o ex-policial, falando sozinho. – Isso é só sua imaginação, talvez você deva parar de contar histórias de terror!

Mas aquela ideia dificilmente abandonaria sua mente, por mais absurda que fosse...

E o pior era que, no fundo, ele gostava dela.

X – X – X

Gaspar viu quando a provável irmã de Judite saiu, e a caixa ficou cabisbaixa. Como ele queria beijar aqueles lábios tão bonitos... Ele ansiava ser em parte como Rodolfo, que estava criando coragem e quase conseguindo conquistar a Bianca – embora o arrogante colega nunca houvesse sido muito de sair com garotas, correndo vários boatos sobre sua virgindade. Bem, na verdade o termo "conquistar" era utilizado somente por Gaspar, pois na prática, para Rodolfo e outros idiotas, seria meramente "pegar". Para as mulheres, achava o padeiro, uma mera mudança de verbo fazia toda a diferença... e ficava triste em ver que várias delas optavam pela opção mais vulgar.

Mas não Judite...

Olhando para frente, o jovem viu o senhor Hermano, faxineiro, se dirigindo na direção dos fundos do supermercado. Segurava um esfregão e um balde d'água, a expressão em sua face serena como de costume.

— Vai começar a limpar, Seu Hermano? – perguntou Gaspar amigavelmente.

— Como todo santo dia... Hoje vou começar lá pelos fundos.

O padeiro sorriu em resposta, enquanto o velho funcionário desaparecia atrás de uma das prateleiras do supermercado.

X – X – X

Seu Hermano parou na frente da saída dos fundos, uma porta de madeira, enquanto molhava o esfregão no balde e começava a passá-lo no chão. Atrás daquela porta, nos fundos do supermercado, havia um espaço aberto, onde futuramente seria realizada uma ampliação do estabelecimento. Por enquanto no local só havia grama, um tanto alta, cercada por um muro também alto, cheio de cacos de vidro no topo para evitar eventuais ladrões. Apesar de ser oficialmente a "saída dos fundos", a porta na verdade levava àquele espaço fechado sem continuidade, onde não era possível sair para a rua. O único meio de se deixar o supermercado era pela porta da frente, todos ali sabiam – embora fosse algo bastante criticado como um erro na construção, visto que dificultava o descarregamento de mercadorias e outros serviços. Santa Cecília do Oeste, parada no tempo como era, não podia mesmo esperar muito brilhantismo dos engenheiros que nela projetavam obras...

Nesse referido gramado, naquele momento, pousou um gafanhoto. Tal animal era bem comum na cidade e suas cercanias. O pequeno ser esverdeado saltou sobre uma pequena muda que Seu Hermano havia plantado, para alimentar-se de uma das folhas.

Mas, para sua surpresa, algo começou a sair do chão bem embaixo da muda, remexendo a terra e fazendo-a tremer. Era uma mão, que, antes que o pobre gafanhoto pudesse escapar, apanhou-o. Ela se fechou, esmagando o animal sem piedade entre os dedos fortes como pinças. Mas não era uma mão comum. A pele caía aos pedaços, podre, e nela havia buracos por onde escapuliam vermes dançantes.


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