A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 8
Vermelhos como sangue




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Vermelho como sangue

 

            Quando cheguei ao muro de sebes na entrada da mansão, eu estava ensopado. Abri o portão silenciosamente, caminhando lentamente. Meus olhos se perderam no vazio à minha volta, e pousaram no manto negro acima de mim. Eu não havia me dado conta do quanto eu demorei, encostado naquela calçada suja. Era noite e, apesar das nuvens carregadas, eu ainda podia ver a lua perfeitamente. Sua luz transpassando pelas gotas que caíam dava a impressão de uma chuva de diamantes. Não, não era algo belo, nem reconfortante. Pela primeira vez, eu odiei a lua.

            Passei pela trilha de ipês, observei o aras ao longe e isso pareceu tão fácil, mesmo com a escuridão e a chuva em meus olhos. Eu ainda estava com medo. Meu corpo estava gelado, meus braços tremiam, meus olhos começaram a arder. Era noite de lua cheia, a minha fase favorita e, ainda assim, eu a odiava. Como ela se atrevia a ser tão tranqüila? Como ela tinha coragem de me ver naquele estado? Eu pensava que ela me acolhia, mas eu estava tão errado. Ela não dava a mínima.

            Ao longe, vi a mulher de pedra deitada sobre a fonte, úmida, cálida, triste. A escadaria de mármore estava escorregadia. Eu subi silenciosamente. Minha mãe me pedira para chegar antes do anoitecer. Mas eu não pude cumprir, ela não sabia o que eu estava sentindo agora. Ela não sabia o que estava acontecendo comigo. Não, ela jamais iria saber. No outro dia seríamos chamados à escola, com certeza. Eu não tinha idéia de como explicar.

            Ali, sobre a escada, de frente à porta da sala, eu me lembrei de Abigail e Brian. Os dois vieram até mim e me apoiaram. Eles foram bem rápidos também. Eu desejei que eles não ficassem bravos comigo por deixá-los sozinhos. Abri a porta vagarosamente, passando meus pés sorrateiramente pela fresta e, em seguida, entrando com todo o meu corpo. Eu estava, então, na sala. Eu vi uma trilha de luz dourada vindo do corredor do térreo e percebi que havia alguém na cozinha. Eu não iria incomodar ninguém, apenas subir e dormir tranquilamente. Que aniversário de merda!

            Eu não fui rápido o suficiente. Os passos rápidos soaram furiosamente no assoalho. Minha mãe estava no portal da sala. As luzes ainda estavam apagadas. A julgar pela sua respiração rápida e descompassada, ela estava furiosa comigo, eu não me atrevi a encará-la nos olhos, e muito menos tinha ânimo de acender a luz para ver sua expressão furiosa. Mantive minha cabeça baixa e meus olhos estreitos, pronto para a bronca. Quando minha mãe falou, sua voz sou fria, sua ira era quase tocável, o ar parecia bem mais denso agora. Ela falava como se me odiasse.

            _ O que foi que eu disse? – ela rosnou – Antes de anoitecer, rapaz! Antes de anoitecer!

            _ Mãe, me desculpe, eu...

            _ Silêncio! – sua voz gelada pareceu cortar minha voz – Como você pode me decepcionar desse jeito? Como?

            Meu corpo estremeceu, eu apertei meus braços, segurando pelo cotovelo. O clima estava gélido agora. Ouvi outros passos urgentes à minha frente. Meu pai se juntou à minha mãe, ambos a uns três metros de distância de mim. Ouvi meu pai sussurrar:

            _ Querida. Ele não tem culpa, ele...

            _ Deixe-me dizer o que precisa ser dito, George! – eu nunca tinha visto minha mãe tão furiosa. Ela nunca falou daquele jeito – Matthew! Um simples pedido! Chegar cedo em casa! Você não foi capaz de fazer! Como você espera que eu me orgulhe de um filho assim?

            _ Mãe, por favor, me deixa explic...

            _ Será que eu vou ter que te mandar calar a boca, Matthew! – meu peito se abriu em uma ferida com aquelas palavras. A voz dela, antes reconfortante, era avassaladora agora – Espero que esteja feliz com o dia tão especial de hoje! Dezessete anos! Oh, Céus! Por que comigo? Eu sempre tentei...

            Ela engoliu em seco. Sua voz morreu e ouvi-a soluçar. Pelo ruído de tecido se esfregando, eu percebi que meu pai havia abraçado minha mãe. Então era isso, eles deviam saber da briga, alguém devia ter contado. Afinal, é uma cidade tão pequena, todos ali saberiam em questão de tempo. Mas a decepção dela parecia ir além, como se eu tivesse cometido um crime hediondo ou algo assim.

            _ Vá... Vá para o seu quarto... – ela murmurou, em meio aos soluços – Espero que esteja feliz, Matthew. Espero que esse dia tenha sido ótimo para você, porque, para o resto dessa família, não foi.

            Eu não discuti, não tentei explicar. Simplesmente me lancei contra a escada e subi às pressas, meus tênis batendo com violência nos degraus. Assim que cheguei em meu quarto, bati a porta com força, tranquei-a, e me joguei sobre a cama, de barriga para cima. Levei as costas das mãos até os olhos, tentando desanuviar meus pensamentos. Aquilo me deixou mal, muito mal, mas estava decidido. Eu não iria me martirizar por me defender, embora eu preferisse apanhar de Edmund a ouvir aquela voz agressiva de minha mãe.

            Eu não conseguia pegar no sono, minhas mãos tremiam e minhas pernas estavam rígidas. Levantei-me, me sentindo um fracassado. Nunca imaginei que minha briga pudesse afetar minha mãe daquela forma. Ela foi fria, cruel em cada palavra, e eu não pude reagir, em defender, nem ao menos explicar que havia algo muito errado em mim.

            Abri a janela, deixando a claridade da lua cheia entrar no meu quarto. A chuva tinha passado, e as nuvens pareciam estar se afastando vagarosamente. Eu devia estar um bagaço, meus cabelos bagunçados e minhas roupas ensopadas. Só depois eu me dei conta do qual encharcado estava. Decidi tomar um banho. Peguei roupas secas e minha toalha e usei meu próprio banheiro, não queria ter que cruzar com ninguém no corredor.

            Pendurei as roupas no cabide perto do box, tirei minhas roupas molhadas e liguei o chuveiro. A água estava quente, apreciável até. Deixei a enxurrada cair sobre meu corpo, que começou a esquentar aos poucos. Coloquei minha cabeça debaixo do chuveiro, deixando as gotas cair insistentemente sobre a ponte de meu nariz, escorrendo até o pescoço. Vinte minutos ou mais.

            Desliguei o chuveiro, me enrolei na toalha, meus cabelos ainda estavam pingando. O vapor quente impregnou o ambiente, embaçando o espelho. Debrucei-me sobre a pia, ainda tentando absorver tudo o que estava acontecendo comigo. Talvez, se eu estivesse em Seattle, nada disso estaria acontecendo comigo, eu estaria com Camille e Kyle jogando conversa fora, vendo algum filme antigo ou fazendo trabalhos de fim de ano. Aproximei meu rosto do espelho, mal podendo vê-lo, devido ao vapor que condensara na superfície do espelho. Passei a mão freneticamente para limpá-lo. Eu devia estar péssimo, com certeza.

            Então eu encarei meu reflexo. Minha reação foi instantânea. O ar em meus pulmões parou, meu rosto ficou lívido, de repente, o banho quente havia perdido seu efeito, eu empalideci e fiquei gelado, quase como se estivesse vendo um fantasma. Meus olhos não pareciam ser meus olhos. Definitivamente aqueles não eram meus olhos. Eu me lembro perfeitamente! Eles eram azuis, como os da minha avó. Naquele momento, no entanto, eles estavam vermelhos... Vermelhos, como sangue! Minha pupila estava contraída em uma fenda vertical, como se fossem olhos de gato. As íris escarlates cintilavam como duas bolas de vidro banhadas em sangue.

            Se houvesse algum ar dentro do meu pulmão, eu provavelmente teria gritado ou gemido de espanto. Ao invés disso, levei minhas mãos ao reflexo. Deslizei as pontas de meus dedos nos olhos vermelhos refletidos. Ainda em meu reflexo, eu percebi que os músculos dos braços, peito e abdômen estavam mais definidos.

            Eu me vesti rapidamente, joguei a toalha sobre a cama, voltei ao banheiro e, ligando a torneira, lavei meu rosto, como se aqueles olhos vermelhos fossem apenas uma mancha. Olhei novamente para o espelho. As bolas vermelhas ainda estavam ali, meus músculos estavam mais acentuados debaixo da camisa. Meus cabelos, eu percebi só então, estava com um tom diferente. Não eram os mesmos cabelos pretos. Eles estavam mais intensos, cintilando um brilho azul prateado, como a lua. 

            Eu estava mudando e, a única coisa que eu queria, era parar, voltar a ser o velho Matthew dos olhos azuis. O pânico começou a me tomar, minhas mãos estavam trêmulas, meu coração acelerava como o Mercedez do meu pai. Eu tinha que sair dali, esfriar a cabeça. Vesti um moletom largo, com medo de alguém perceber a mudança em meus braços, coloquei um boné e saí pela porta do meu quarto. Desci as escadas, sorrateiramente, evitando qualquer emboscada de surpresa. Eu precisava esconder aqueles olhos.

            Assim que alcancei a porta da sala, me certifiquei de que ninguém havia me escutado. Abri a porta, que rangeu de leve, encostei-a de modo que o som do trinco soasse quase inaudível e saí apressadamente, descendo as escadas de mármore. Eu precisava esfriar a cabeça, aqueles olhos não queriam sair, tudo em mim estava diferente. Pulei a cerca e corri em direção ao aras, um dos poucos lugares silenciosos durante a noite.

            Os cavalos estavam dormindo, e o cão de guarda estava deitado na grama, me olhando com aqueles olhos castanhos de dar dó. Eu daria tudo para ter aqueles olhos castanhos agora. Passei pelo portão e corri até o fim do estábulo. Havia uma outra cerca de sebes logo à frente. Eu não sabia ao certo onde estava indo, mas sabia que tinha que me isolar e tentar entender o que estava acontecendo.

            O espectro de luz à frente indicou o lago que havia ali. Apressei a caminhada até alcançá-lo. Por um breve momento, eu parei em sua margem e fiquei contemplando o casamento entre o espectro da lua e as águas escuras. Em um outro momento, seria admirável. Joguei o moletom em um canto e o boné por cima, e me virei para olhar meu reflexo. Meus cabelos emanavam uma luz azul-prateada, meus olhos estavam vermelhos e eu me sentia estranho, mais pesado e mais leve ao mesmo tempo. Sentei-me na margem, encolhendo as pernas e as envolvendo em meus braços. O pânico e o nervosismo foram se dissipando aos poucos, dando lugar à tranqüilidade. Com o tempo, aquele reflexo não me metia mais medo, eu não estava tão desorientado quanto antes, mas meu corpo ainda tremia. Será que aquilo nunca ia acabar? E se eu fosse ficar naquele estado para sempre? Não, eu não me sentia assim. Eu sei que logo, logo tudo ia acabar, eu poderia ir para casa e dormir sossegado. Mas eu já havia compreendido. Fazia algum tempo que eu sentia mudanças em mim, e não era o tipo de mudança da idade, essas coisas de puberdade. Era o tipo de coisa que deveria ser mantida em segredo.

            O cão de guarda se aproximou de mim. Seus olhos ainda eram castanhos, eles não precisavam se preocupar com o que iriam ver. Sua pelagem era preta, comum, sem luzes azuis cintilando anormalmente. Ele passou o focinho por baixo do meu braço, me lambendo a bochecha.

            _ Hei, Brock. – falei, sorrindo levemente enquanto acariciava a ponta de seu focinho – você não se importa com o que eu sou não é?

            Ele grunhiu inocentemente, pousando sua cabeça sobre meu colo.

            _ Você sente falta de como era aqui... Antes? Deve sentir. Aposto que sim.

            Ele me olhou, fungou e colocou a cabeça em meu colo novamente, como se quisesse dizer sim.

            _ É, o vovô faz uma falta nesse lugar...

            Continuei observando o reflexo da lua, que parecia descansar sobre as águas. Ah, eu desejei mais do que tudo ter alguma resposta! Gente normal não mudava a cor dos cabelos, olhos e muito menos inchava os músculos instantaneamente. Pessoas normais não sentiam cheiros e sabores que não existiam. Pessoas normais não corriam como um leopardo. Não, nem um leopardo corria da forma como corri.

            Ali, naquele lugar silencioso, comecei a “mirabolar” hipóteses, todas sem pé nem cabeça. Primeiro, comecei a suspeitar de usinas nucleares desativadas na cidade. Radioatividade costuma explicar todo o tipo de bizarrice nos quadrinhos da Marvel. Talvez aquilo não passasse de um pesadelo que insistia em me manter cerrado no sono. Eu só queria acreditar que ainda era humano. Eu encostei minha cabeça na grama, olhando diretamente para a lua. Brock levantou-se e caminhou até o aras. Antes que eu deixasse de ouvir as patas dele sobre a grama, eu adormeci. 

 

            Eu acordei com o sol da manhã queimando o meu rosto de leve. Meus braços haviam adormecido, eu quase não podia senti-los. Minha mente estava muito mais tranqüila, e eu quase me esqueci do que tinha me perturbado na noite anterior. A grama estava fresca, acho que devido ao orvalho da manhã. Minhas costas estavam úmidas, e o boné e a jaqueta jaziam ao lado da margem do lago. A lua cheia havia dado espaço ao sol imponente, que incendiava o campo com um calor morno e calmante. Havia também a brisa, que pairava no ar, ora vinha, ora cessava. Os galhos das árvores, espaçadas, farfalhavam timidamente com o efeito do vento cálido. Quando a brisa passou pelo meu rosto, os cabelos da minha nuca arrepiaram. Era uma sensação boa, não era o bastante, mas já era um começo.

            Meus pais provavelmente já estavam acordados, e eu ainda estava ali. Eu precisava chegar em casa antes que alguém descobrisse que eu estive fora da cama durante a noite. Minhas pernas já estavam bem elétricas, ansiosas para alcançar o segundo patamar da casa. Algo dentro de mim me disse para aceitar a mim mesmo. Eu não tinha culpa do que estava acontecendo, eu não queria nada disso. Mas eu havia mudado. Lembrei-me da velocidade sobre-humana e, por uma fração de segundo, eu imaginei... E se eu pudesse usá-la? Isso poderia ficar pior? Talvez eu fosse realmente mais rápido do que a maioria das pessoas.

            Eu friccionei meus pés calçados na grama, flexionei os joelhos e coloquei as mãos no chão. Eu estava me sentindo patético, agindo como se estivesse em uma maratona. Mas as coisas já estavam estranhas demais, eu não me assustaria com nenhuma outra surpresa. Ergui meus calcanhares e impulsionei meu corpo pra frente. A sensação foi a mesma, como da primeira vez. Meu corpo ficou leve de repente, as árvores pareciam estar andando pra trás com uma velocidade impressionante. Eu olhei pro chão, e a sensação foi de estar andando em uma esteira, exceto por um detalhe: eu estava correndo mais rápido que qualquer outra pessoa. Eu estava bem próximo à cerca, não tinha como frear. Eu precisava inovar. Sentindo uma euforia dentro de mim, impulsionei para frente mais uma vez, e saltei sobre a sebe, como um cavalo de corrida que desvia dos obstáculos. A grama voou com o impacto quando atingi o solo firme. Por um pequeno instante, eu soube como era voar. Estava perto da casa. Freei a trinta centímetros da escadaria de mármore, fazendo torrões de terra e tufos de grama voarem alguns metros.

            Treze segundos, foi esse o tempo que gastei até ali. Olhei pra o ponto de origem, onde eu estivera antes. Eu nem podia enxergar o lago, apenas o aras, escondido por entre as árvores. Eu não pude evitar o sorriso, a euforia, a excitação do momento. Ninguém poderia fazer isso, mas eu fiz sem derramar uma gota de suor.

            Eu não subi as escadas, alguém poderia estar na sala. Corri para os fundos da casa, com minha super-velocidade, naturalmente. A janela da cozinha era grande, mas a cortina estava semi-aberta, ninguém iria me ver. Eu espiei pela vidraça. Emilliene estava sentada na mesa ao lado do meu pai, enquanto minha mãe mexia a omelete na frigideira. Corri até a lateral da casa, onde ficava o meu quarto. A janela estava aberta, mas não havia nenhuma escada. Eu adoraria a idéia de saltar, só para saber se eu poderia chegar ao segundo andar com um pulo, mas o barulho iria despertar a curiosidade dos meus pais. Voltei para a porta da frente. Abri a porta silenciosamente, caminhei até a escada que dava para o segundo andar. A sala estava silenciosa e eu consegui andar sem fazer nenhum ruído. Subi as escadas, ainda segurando o boné e o moletom. Assim que alcancei o segundo andar, joguei as roupas na cesta e entrei em meu quarto, tomando o cuidado para não fazer barulho ao abrir a porta.

            Minha cama estava arrumada, apenas minhas roupas do dia anterior estavam sobre ela. Recolhi-as e joguei em um canto no banheiro. Então me olhei no espelho, involuntariamente. Meus olhos azuis correram desde os meus cabelos negros comuns até meus braços. Olhos normais, cabelos normais. Apenas meus braços pareciam um pouco mais volumosos, mas eu poderia dizer que andei exercitando mais com pesos, meus pais sabiam que eu andava treinando muito desde o dia em que Rich havia ido para não-sei-onde.

            Tomei um banho ligeiro, vesti minhas roupas e desci as escadas, hesitante. Desde a noite anterior, minha mãe não trocou nenhuma palavra civilizada comigo. Eu não sabia o quão de castigo estava, mas esse sábado prometia algo mais. Eu sentia isso.

            Entrei na cozinha sem dizer um pio. Emilliene olhou para mim, sorridente. Ela não devia saber o que ocorrera na noite passada.

            _ Maty! – ela exclamou. Meus pais me olharam, também em silencio – bom dia!

            _ Bom dia. – eu murmurei. Beijei a ponta do seu nariz e me sentei a uma distância considerável do restante da família.

            _ Bom dia, Matt. – meu pai murmurou, me passando a bandeja com torradas recheadas com geléia de uva.

            Eu simplesmente acenei com a cabeça e peguei a bandeja, me servindo com algumas tigelas. Papai parecia preocupado comigo, me olhando com tanta compaixão. Ele me serviu com um copo de laranja. Eu murmurei um “obrigado” e provei. Estava muito doce.

            _ Pai, o senhor vai à fábrica hoje? – Emilliene perguntou – eu queria ir. Hoje não tem escola...

            _ Não, querida. – foi minha mãe quem respondeu – vou precisar da sua ajuda hoje.

            _ Ah... – Emi reclamou.

            _ Eu vou colher as laranjas, você vai me ajudar.

            Mamãe sempre me chamava para ajudar a colher as laranjas da plantação, ela dizia que eu era mais alto que ela. Eu achava graça e, sempre quando íamos, ríamos muito e, vez ou outra, chupávamos as laranjas debaixo de alguma árvore. Foi a primeira vez que ela não me chamou para acompanhá-la. Provavelmente fazia parte do castigo.

            _ Mãe... – eu comecei. Eu senti o corpo dela endurecer quando eu a chamei – eu estou... de Castigo?

            _ Não. – ela respondeu secamente.

            Eu fiquei surpreso.

            _ Quer que eu ajude a senhora a apanhar as laranjas?

            _ Não precisa.

            Ótimo. Ela estava irada comigo, e parecia muito injusto. Sempre fui o que eles chamavam de “filho exemplar”. Sempre respeitei os horários da casa, obedecia a todas as ordens, nunca fui de me queixar e sempre sacrifiquei minhas vontades por meus pais. Como eles poderiam estar tão decepcionados por eu chegar atrasado no dia do meu aniversário?

            _ Bem,eu já vou. – meu pai falou, se levantando.

            Ele beijou minha mãe e minha irmã e, quando passou por mim, me abraçou, falando bem baixo no meu ouvido.

            _ Te amo, filho.

            Apertei meus lábios nos dentes, eu só pude responder um “eu também, pai”. Em outros momentos, demonstrações de afeto não me incomodavam. Mas, porque ele disse aquilo, como se tivesse urgência em dizer? Era como se ele estivesse se certificando de que eu sabia disso. Emilliene também se levantou, dizendo que iria trocar de roupa.

            Apenas minha mãe e eu ficamos na cozinha. Na verdade, nós dois e um silêncio constrangedor. Servi-me de mais umas torradas, completei o copo de suco e continuei meu café da manhã em silêncio. Finalmente, minha mãe iniciou um diálogo. Era o que eu temia:

            _ Matthew. – ela não me chamou de “Matt” desde a noite anterior – eu tenho que dizer que... Eu fui um pouco exagerada ontem.

            _ Não, mãe... – meu peito foi engolfado por uma onde de remorso – a senhora estava certa. Eu deveria obedecer.

            Minha mãe largou a frigideira e sentou-se de frente para mim. Ela não estava sorrindo, muito menos estava brava. Sua expressão estava ilegível, dura e quase áspera.

            _ Seu irmão vai chegar segunda-feira. – ela anunciou – vamos preparar alguma coisa para ele, então não vamos dizer nada sobre isso a ele, tudo bem?

            _ Ok. – Richard estava vindo. Foi a melhor notícia do ano.

            _ Olha... Eu quero que entenda, filho. Eu o amo muito. Mas... Tem coisas que ficam difíceis quando não saem como esperávamos.

            Ela parecia cautelosa em cada palavra, e eu não estava entendendo muita coisa.

            _ Mas você sabe que eu confio em você, não sabe?

            _ Eu sei, mãe... Mesmo que eu não mereça tanta confiança.

            _ Você merecia coisa melhor, filho... Eu sinto muito.

            Ela beijou minha testa. A velha Lisa tinha voltado, mas havia algo em sua expressão que parecia uma cicatriz que jamais desapareceria. Eu tinha mudado alguma coisa naquela relação mãe-filho para sempre. Minha mãe saiu da cozinha, em direção ao quarto de Emi. Eu não ia ficar em casa curtindo aquela dor. Não hoje.

            Eu estava na garagem pegando minha bicicleta. Eu não estava de castigo, ninguém tinha me proibido de sair. Bem, eu iria espairecer a cabeça, entender melhor o que tinha mudado em mim, fazer algo até o tempo passar. Montei minha bike e pedalei estrada afora. As árvores de ipê perfumavam o caminho, eu pude apreciar tudo com sentidos mais apurados. Era sinistro e assombrosamente excitante.

            Tomei o caminho contrário ao da rodovia. Eu iria até os campos abertos, onde as montanhas e o gramado verde reinavam em absoluto. A chuva tinha assentado a poeira, as aves pousavam nos galhos, não havia carros ou pessoas caminhando ali. Os vizinhos quase nunca ficavam ali, geralmente iam passar os fins de semana em casa de amigos.

            Eu estava distante das casas agora. Havia uma floresta densa logo no final dos campos e, mais acima, uma montanha. Larguei minha bicicleta perto de uma cerca e corri até a orla da floresta. Eu sabia que ninguém estava me olhando, então não havia problema nenhum em correr até lá com a minha nova habilidade. Era inexplicável a sensação, sentir o vento passar por mim como uma cortina, meu cabelo se emaranhando na corrente de ar, meus passos firmes e certeiros. Eu devia estar a umas oitenta milhas por hora. Em questão de segundos, eu estava de frente à floresta. Os galhos das árvores mais velhas se arqueavam na orla da floresta, como portais para uma grande galeria de troncos, folhas e um labirinto natural. Me embrenhei nas árvores, só para garantir que ninguém iria me ver. Eu me sentia mais forte, e precisava saber o limite dessa força, o quão forte eu tinha me tornado. Parecia até uma tira de quadrinhos de ficção. Eu me sentia um x-men. A minha piada pessoal me fez dar gargalhas, que soou meio agourento entre aquelas árvores gigantescas.

            Finalmente, eu alcancei a parte mais densa da floresta. Ninguém poderia me ver e eu estaria livre para testar minhas novas habilidades. Eu estava mais forte. Certo. Quanto era isso? Eu não sei. Talvez algo mais pesado pudesse me ajudar. Meus olhos correram pela floresta e, então, perto de dois troncos envergados que faziam um xis, eu vi. Uma rocha quase do meu tamanho, com certeza uma pessoa não carregaria sozinha. Eu me aproximei, me perguntando se enlouquecera. Não, eu estava são e decidido. Abaixei-me e passei minhas mãos por baixo da pedra gigantesca. Não seria nenhum pouco fácil erguer uma pedra como aquela, talvez até impossível. Bem a única coisa que eu precisava era concentrar minha força nos meus braços, usá-la por completo, erguer a pedra, e provar a mim mesmo que eu não estava louco. Trinquei os dentes, ainda ansioso e, de olhos fechados, apertei minhas mãos no fundo da pedra. Com toda força e vontade, impulsionei a rocha para cima, na tentativa de sustentá-la em meus braços.           

            Quando abri os olhos, olhei para minhas mãos vazias, erguidas acima da minha cabeça. A rocha não estava mais ali, ela desaparecera, e eu nem sentira o peso da pedra. Instintivamente, olhei para o céu. Ele estava azul, limpo e claro, exceto por um ponto negro. Então eu percebi. Era a pedra. Eu tinha lançado-a dezenas de metros acima da minha cabeça. O ar começou a assobiar. A pedra estava voltando com toda a força e iria fazer um grande estrago. Afastei-me uns oito metros do ponto de origem.

            Quando a pedra atingiu o chão, uma nuvem de poeira subiu violentamente, o baque estremeceu os galhos das árvores e abalou a terra fofa. Aquilo acabou se tornando uma brincadeira, arremesso de pedras. Eu podia me acostumar com aquelas mudanças facilmente. Assim que a nuvem de poeira sumiu, eu me aproximei da pedra novamente. Um segundo arremesso e eu iria para casa, feliz.

            Agarrei-a por baixo, como da primeira vez. Usei toda a minha força. Dessa vez eu senti um repuxo nos meus músculos, a pedra voou pouco abaixo da copa das árvores e caiu a uns dois centímetros de mim. Estranho, a segunda vez pareceu mais difícil. A pedra devia ter engordado, ou algo assim.

            A terceira vez. Dessa vez, com toda a minha força. Não saiu como eu esperava. Eu a ergui no ar, mas não foi o suficiente para lançá-la. Fiquei segurando a rocha com as duas mãos, que parecia bem mais pesada. Eu a soltei, frustrado.

            _ Droga. – murmurei.

            Uma quarta tentativa. Eu senti que ela devia ter uns cinqüenta quilos. Estava mais difícil a cada momento erguê-la do chão, e eu senti o início do pânico. E se a minha força estivesse acabando? E se isso fosse limitado? Será que eu voltaria a ser normal? Isso significava que Edmund iria me espancar na próxima vez.

            Em um ato de desespero, agarrei a pedra mais uma vez. Eu precisava lançá-la longe, eu precisava ter minha força de volta. Agarrei-a por baixo mais uma vez e, com toda a força que eu pude reunir, lancei a pedra pra cima. Dessa vez, ela voou bem uns dez metros e caiu a uns dois metros de distância. Parecia ter uns três quilos agora. Eu fiquei mais aliviado sabendo que minha força não tinha me abandonado afinal de contas. Uau! Eu não era normal, e essa idéia estava começando a me agradar. O maior problema seria guardar esse segredo. Ninguém poderia saber, nem mesmo meus pais.

 


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