A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 6
O primeiro dia em Ford... Misteriosos e encrenquei




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O primeiro dia em Ford... Misteriosos e poderosos

 

            Na manhã seguinte, quando eu acordei, ainda sonolento, encontrei uma carta de Richard sobre a mesa-de-cabeceira. Não era bem o que eu esperava. Seria melhor que ele estivesse ali, ou pelo menos ligasse para dizer que estava bem. Eu não poderia ouvi-lo ou vê-lo para saber como estava se sentindo.

            Levantei-me, silenciosamente. Tinha acordado mais cedo, e meus pais provavelmente ainda estavam dormindo. Isso não importava agora. Agarrei a carta e rasguei o envelope, ansioso por notícias. De imediato, reconheci a caligrafia dele.

 

Irmãozinho Matt,

 

            Mamãe me contou que você anda preocupado comigo. Eu sei que não devia ter sumido daquele jeito, mas muitas coisas estão acontecendo comigo agora e, provavelmente, não nos veremos este mês. Mas prometo estar em casa o mais rápido possível. Não se preocupe tanto comigo, eu estou ótimo, melhor que nunca. Preocupe-se com a escola e com qualquer coisa diferente que acontecer por aí. Estou louco para te contar as novidades, mas não posso. Não ainda. Faça-me um favor. Confie na mamãe quando ela disser que está tudo bem. Ela quer o melhor para nós. Cara, você nem iria acreditar! Ah, a propósito. Caso eu não esteja aí amanhã, Feliz Aniversário.

 

                                                                                                          Seu irmão Richard

 

            A carta teve o mesmo efeito que uma ducha quente. Eu estava bem mais tranqüilo, embora não tivesse tanta certeza quando ele havia dito que estava bem. Mas o comentário que ele havia deixado me causou receio. “Preocupe-se com a escola e com qualquer coisa diferente que acontecer por aí”. O que ele queria dizer com aquilo? O que poderia acontecer de tão diferente em uma cidade tão pacata? Provavelmente ele ainda não sabia que já estávamos em Ford. Alguma coisa naquelas palavras parecia significar mais do que parecia. Talvez Richard estivesse tentando me dizer alguma coisa. Passei um bom tempo lendo e relendo a carta, pensando em como ele estaria, se gostaria de estar aqui ou se estava melhor em outro lugar. Talvez estivesse melhor do que eu.

            Olhei o rádio-relógio e saltei da cama. O tempo voou enquanto eu me devaneava com a carta e as últimas lembranças. Vesti minhas roupas rapidamente, joguei a mochila nas costas e corri até a cozinha. Minha mãe já estava de pé, com seu robe lilás, colocando mel sobre as panquecas e adoçando o suco de laranja.

            _ Bom dia, Sr. Atrasado. – minha mãe falou, caçoando – Você deve estar muito preocupado com a primeira imagem que vai deixar em Ford, não?

            _ Eles não dão a mínima – eu respondi, beijando-lhe a bochecha e me servindo de torradas e panqueca – De qualquer forma, eu também não. Estou quase terminando o segundo ano mesmo.

            _ Aliás, você sabe que dia é hoje, não? – ela perguntou, parecendo ansiosa.

            _ Ahn... Meu primeiro dia em Ford? – eu arrisquei.

            _ Não. – ela respondeu, surpresa – Véspera do seu aniversário.

            _ Ah, mãe. – eu revirei os olhos – Deixe para me perguntar isso amanhã. O que tem de mais na véspera do meu aniversário?

            _ Eu só achei que, bem... Você fosse se esquecer.

            _ Mãe. – eu dei uma risada cômica – é meu aniversário. Como eu poderia esquecer? Tudo bem que eu não ligo para muitas coisas, mas eu não sou tão alienado quanto você pensa.

            Ela deu uma risada. Verdade. Eu não poderia me esquecer do meu aniversário. Eu iria fazer dezessete anos, embora não estivesse ligando para festas, bolo ou velas. Meus amigos não estavam aqui e o primeiro dia de aula não ia me render uma lista de convidados para uma festa.

            _ Você gostaria de... Comemorar? – minha mãe pareceu ansiosa – aqui.

            _ Só nós quatro?

            _ Não... Bem, você pode convidar seus amigos da escola... Daqui.

            Eu observei sua expressão. Ou ela ainda não tinha acordado direito, ou a mudança tinha afetado a cabeça dela mais do que se imaginava.

            _ Mãe, quando você fala, você escuta o que diz? – eu perguntei, cético – Que amigos, mãe? Meu primeiro dia?

            Pela expressão dela, eu tinha chegado ao ponto xis.

            _ Exatamente! Essa seria uma oportunidade perfeita, não acha.

            _ Sinceramente, eu não acho. E, se não se importa estou atrasado. Discutimos o que fazer pra minha festa quando eu voltar. Ah, mãe. Nada de novos amigos, ok?

            Ela sorriu, rendida. Eu beijei-a novamente e corri o máximo que pude. Quando cheguei à varanda da frente, meu pai estava lá. Ele estava polindo o Mercedes. Assim que me viu, ele exibiu aquele sorriso típico, cheio de dentes alvos.

            _ Hei, filho. Que tal ir para o colégio de carro?

            _ Com certeza não sou eu quem vou dirigir.

            _ Não mesmo. Mas você está atrasado.

            Eu fiz uma cena de desistência.

            _ Não tenho outra alternativa. Leve-me logo.

            O clima estava bom. Na verdade, estava meio morno. O inverno estava quase chegando e, provavelmente, o natal nos traria um bocado de neve. Aquele pensamento me tranqüilizava. Depois da lua cheia, neve era o meu segundo fenômeno natural preferido. Nada de bonecos ou anjos de areia, muito menos guerra de bolas de neve. Apenas apreciar os graus brancos congelados caírem feito plumagem no chão, cobrindo  a cidade com um manto alvo as ruas, casas e árvores.

            _ Hei, Matt. Está ouvindo?

            Eu chacoalhei a cabeça. Meu pai havia me chamado, mas eu me perdi em meus pensamentos. Assim que encontrei sua voz dentro da minha cabeça, me agarrei a ela e voltei ao mundo real.

            _ Ahn, o que pai?

            _ Você não me ouviu, né? – ele suspirou, e depois sorriu levemente – Eu estava dizendo que seria uma boa se pudéssemos fazer uma festa de aniversário para você e... Convidar seus amigos, os novos amigos.

            _ Ah, você também. – eu resmunguei, cruzando os braços – Pai, eu não quero uma festa para fazer amizades. Que tal assim? A mamãe faz um daqueles bolos deliciosos, nós nos sentamos à mesa e comemoramos um aniversário a quatro. Já que Richard não pode vir...

            Meu pai mordeu os lábios, estudando minha expressão satisfeita. Ele sabia que eu não me importava com uma festa grande, e muito menos queria me mostrar para ninguém daquela cidade. Eu queria ficar no meu canto.

            _ Bem, eu vou ver o que posso fazer, filho. – ele disse, enfim – mas acho que você deveria pensar um pouco a respeito.

            _ Pai, eu não tenho que pensar em nada. Eu já decidi. Não quero uma festa grande, não quero gente estranha em casa, não quero forçar novas amizades e não quero discutir isso outra vez. – eu suspirei, vendo a expressão de desagrado do meu pai – Caramba, pai! É meu aniversário. Pelo menos uma vez no ano eu posso tomar alguma decisão sem ter que ser pressionado por você e pela mamãe?

            Ele continuou dirigindo em silêncio por alguns instantes, batendo as pontas dos dedos no volante. Ele parecia mais pensativo agora. Ele se virou pra mim, rendido, e falou:

            _ Ta ok. Nada de festas, como você quiser. Mas pelo menos pense...

            _ Pai!

            _ Ta bom, ta bom. Não ta mais aqui quem falou.

            _ Obrigado.

            Ele continuou falando como seria bom ter novas experiências do novo colégio, fazer novas amizades. Eu me preocupei com as árvores que passavam por nós como rajada, a fim de tentar afastar a voz do meu pai. Não que eu preferisse estar sozinho agora, mas aquele tom de compaixão, como se quisesse compensar minha insatisfação pela mudança me fazia sentir um pouco de culpa.

            Os borrões verdes da estrada se transformaram em pequenas construções e, quando percebi, estávamos bem dentro da cidade. Eu podia ver a escola a alguns metros de distância. Não era nada comparado à minha escola em Seattle, mas era uma construção bem arquitetada, eu quase podia chamá-la de “moderno”, se não fosse pelo portão enferrujado e a pintura antiga. A entrada estava cheia de rostos estranhos, e eles notaram a presença de um novo veículo na cidade. O Mercedez do papai era bem chamativo e, deixando de lado a falsa modéstia, era bem bonito. Todos os olhos nos encararam.

            _ Vá lá, filho. – meu pai disse, sorrindo, quando estacionou na porta do colégio – divirta-se.

            Eu me senti aliviado pelo carro ter vidros “fumê”, assim ninguém pôde ver meu rosto corar feito um tomate.

            _ Pai, será que você pode me deixar no outro quarteirão. – eu pedi, o som da minha voz era mais suplicante que o normal.

            Meu pai não discutiu, nem tentou argumentar. Ele sabia como eu me sentia, embora eu soubesse que, cedo ou tarde, teria que baixar o vidro para aquele novo mundinho estranho e caminhar com minhas pernas.

            _ Ok, filho, você manda.

            Cinco minutos depois, eu estava a alguns passos de distância do colégio. Meu pai tinha ido para a exportadora e, antes de arrancar, ele havia me dito que estava pensando em comprar um carro mais econômico e vender o Mercedez. A notícia me deixou contente. Andar em uma cidade tão pequena com um carro envenenado era a melhor receita para se chamar atenção.

            Eu estava absorto em pensamentos, caminhando pela calçada distraidamente, pensando em qualquer coisa menos o que estava a minha frente, quando senti minha cabeça bater em algo duro e, fosse o que fosse, caiu com estrondo no chão. Claro, eu desabei também. Por alguns segundos, tudo a minha volta estava girando. Eu levei as mãos até as orelhas na tentativa de parar a sensação de vórtice. Eu me levantei vagarosamente, tentando focar em quem, ou em que eu havia me chocado. Uma jovem e um instrumento que mais parecia um trompete estavam jogados no chão. Ela usava um belo terno feminino, sapatos lustrosos e os cabelos castanhos em um coque perfeito, além de óculos escuros intimidadores. Devia ter uns vinte e dois anos, algo assim. A primeira pergunta que veio á minha mente foi o que uma garota grã-fina estava fazendo ali com um trompete velho. A segunda coisa foi a surpresa em saber que um trompete era tão sólido quando acertava a cabeça de alguém.

            Assim que minha cabeça parou de rodar, eu me lembrei que ainda prezava de bons modos. Com uma mão, eu cocei freneticamente a dor pulsante na minha cabeça e, com a outra mão estendi para a mulher, para ajudá-la a se levantar.

            _ Foi mal. – eu disse, sentindo meu rosto corar – eu estava distraído. Não a vi...

            Eu me calei, analisando o rosto da mulher. Ela me olhava com uma expressão pálida, como se eu fosse um fantasma ou um monstro. As pessoas que passavam por mim também me olhavam de forma estranha. As pessoas olhavam diretamente para mim, mas nunca para a aquela mulher, que insistia em me encarar com uma expressão ilegível, mas assustadora. Passei as mãos, discretamente, sobre meus cabelos, pescoço e barriga, como se houvesse alguma coisa errada comigo? Por que estavam me encarando? Por que aquela mulher parecia me olhar com tanto ódio e por que as outras pessoas me olhavam com curiosidade?

            Não havia nada. Nenhuma sujeira no dente, nenhuma mancha de molho na roupa, nada. As pessoas simplesmente passavam por mim e observavam a minha tentativa de ajudar a mulher. Ela, por outro lado, continuava com aquele olhar assustado, ou assustador, era difícil descrever.

            _ Er... Eu não estava olhando pra frente... Tem algo errado? – eu perguntei enfim, enfiando as mãos nos bolsos, frustrado com a grosseria da mulher em me deixar ali com os braços estendidos e falando sozinho.

            Ela se levantou. Sua expressão agora era diferente. O olhar assustado deu lugar aos olhos mais rudes e agressivos que eu havia visto. Seus olhos eram castanhos claros há segundos atrás. Mas, depois que ela se recompôs, eles se tingiram com uma vermelha cor de sangue. Era assustador.

            _ Algum problema? – eu perguntei. Minha voz falhou.

            A mulher misteriosa simplesmente pegou seu trompete e me fixou com os olhares agressivos. Em seguida, passou por mim como se eu fosse um nada, um lixo em forma de gente. Ela não trocou uma palavra e, para variar, as pessoas continuavam a me olhar. Senti meu rosto ficar escarlate com o constrangimento. Eu me recompus, tentando parecer indiferente aos olhares furtivos, e continuei a passos largos até o colégio. Muitos alunos estavam barrando a entrada, fazendo algazarras, coisas tipicamente infantis. Era difícil acreditar que eu havia abandonado Seattle para passar por aquilo.

            Demorou mais ou menos dez minutos para eu alcançar o pátio principal. Eu estava prestes a tomar meu caminho quando, repentinamente, um garoto passou por mim. Ele não se virou, não se apresentou, nada. Simplesmente cruzou meu caminho, me jogando palavras eu um sussurro de repreensão.

            _ Tome cuidado com ela.

            O garoto tomou seu rumo, silenciosamente, apressadamente. Eu não pude ver seu rosto. Ele estava com um moletom preto, a cabeça coberta por um capuz e calças jeans surradas.

            Meu primeiro dia em Ford High School havia me ensinado uma lição importante: as pessoas de Ford City eram loucas de pedra. Isso eu fiz questão de anotar na minha agenda imaginária. Nunca subestime aquela gente, ou eles podem se mostrar mais insanos.

            Então foi assim. Entrei na sala, ansioso e entediado, uma mescla de sensações que não combinavam nem um pouco. Finalmente, depois de cinco segundos sendo encarado por toda a classe, o professor anunciou.

            _ Bom dia, queridos alunos. – ele falava com uma voz branda e autoritária. Ele tinha cabelos negros espessos e olhos verdes tampados por óculos com lente transparente azul – eu gostaria que todos nós déssemos boas vindas ao nosso novo colega de classe. Matthew Chambers.

            Todos continuaram com aquela cena silenciosa e sem modos, me encarando como se eu fosse um bicho de circo que se recusava a entretê-los. O professor se virou para mim, estendendo a mão.

            _ É um prazer tê-lo em nossa classe, Sr. Chambers. – eu suspeitei que ele fosse o professor preferido da classe – Sou o professor aloprado dessa turma, Prof. Devon. Minha disciplina é biologia. Por que não se senta? A aula já vai começar.

            Foi exatamente o que eu fiz. Me sentei, em silêncio, sendo seguido por olhares curiosos. Seria um longo dia e eu senti como se milhares de borboletas estivessem dançando dentro do meu estômago.

            A única coisa que eu queria era ficar invisível na frente de todos, alguém desinteressante. Mas o Prof. Devon não iria permitir isso. Assim que me sentei, ele se virou para a classe, sorridente.

            _ Sr. Chambers. – ele começou – Gostaria de dizer algo a seu respeito para seus colegas?

            Minha respiração ficou pesada. Eu não dava a mínima para o que pensavam de mim, mas ter todos aqueles olhares em minha direção me deixava nervoso. Três garotas que se sentavam no fundo cochichavam animadas e me encaravam como se seus olhos fossem me devorar a qualquer momento. Aquele era o dia mais infeliz em toda a minha vida, com certeza.

            _ Bem... – eu comecei, olhando apenas para o professor, a única pessoa que pareceu amigável – Sou de Seattle, em Washington.

            _ Nós sabemos onde é Seattle. – uma voz masculina ecoou do fundo – só porque somos do interior não significa que somos ignorantes, chapa.

            O professor fez um “shh” para o aluno que havia feito o comentário e acenou com a cabeça para mim, me incentivando a continuar.

            _ Meu nome é Matthew Chambers, tenho dezesseis anos – iria fazer dezessete amanhã, pensei comigo mesmo – e nos mudamos para cá há dois dias. Acho que é só isso.

            _ Belo Mercedez aquele do seu pai – a mesma voz do fundo falou, caçoando – Eu vi ele te deixando no outro quarteirão. Aqui nós andamos de charrete e pick-ups velhas. Aposto que é assim que nos vê, não é? Somos caipiras demais pra você?

            Novamente senti o sangue subir a minha cabeça, eu estava ligeiramente corado. Eu queria que aquilo acabasse logo. O Prof. Devon deve ter percebido.

            _ Ok, Sr. Davis. – ele disse – espero que seja um anfitrião melhor do que demonstra. Ah, a propósito... Me espere na detenção depois da aula.

            _ Mas, professor, eu...

            _ Não aceito provocações em minha aula, Davis. – Prof. Devon parecia um pouco mais autoritário e menos amigável – Gosta de se divertir assim? Pois bem, tudo na vida tem um preço. Depois da aula.

            O professor se virou e escreveu no quadro “Teorias evolucionistas”. Ele iniciou um discurso muito divertido a respeito do assunto, vez ou outra fazendo piadas, mexendo com as mãos freneticamente. Mas eu estava mais ocupado com aquela sensação estranha. Havia um cheiro ruim na sala, parecia algo podre, isso fora gosto amargo que surgiu repentinamente em minha boca. Eu me virei para trás, para tentar descobrir de onde vinha o cheiro, e me deparei com dois olhos fixos em mim, ameaçadoramente.

            Ele devia ser umas duas cabeças maior que eu, e olha que eu já era bem alto. Seus braços eram musculosos e seu cabelo era curto, com aqueles olhos verdes hostis me encarando, contornados por sobrancelhas grossas, dando a ele um aspecto mais assustador. Com certeza, era o garoto dos comentários desagradáveis. Ele era enorme e, com certeza, disposto a quebrar alguns ossos de quem entrasse em seu caminho.

            Três palavras me vieram à mente. “Detenção” e “To ferrado”. Provavelmente, aquele garoto Davis me culpava pela detenção. Era realmente reconfortante (estou sendo sarcástico) saber que eu havia feito amigos no primeiro dia. O meu primeiro amigo era o dobro de mim. Foi nesse momento que eu percebi: Davis era a fonte do mau cheiro. Engraçado como as pessoas continuavam perto dele sem nem fazer caretas de desaprovação. Talvez fosse medo. Mas eu suspeitei que, talvez, eu fosse o único que estivesse sentindo o cheiro.

            Acho que meus sentidos eram meio perturbados. Vez ou outra eu sentia sensações estranhas, gostos e cheiros vindos de lugar nenhum. Eu devia estar ficando louco naquela cidadezinha e meu único remédio estava à milhas de distância. Seattle. Virei-me para frente, tentando apagar aquela imagem ameaçadora da minha mente, do grandalhão Davis, e tentei me concentrar na aula. Não foi difícil ignorá-lo. O Prof. Devon era, com certeza, um ótimo professor.

           

            Depois de biologia, teríamos dois turnos de inglês. A mulher, Sra. Bonnes, era entediante. Tinha um cheiro de ervas e se vestia como se fossa a velha dos gatos, com um xale lilás e um saiote um pouco abaixo dos joelhos, exibindo pernas brancas com veias que combinavam com o xale.

            Inglês deu lugar a história e, em seguida, a álgebra. O dia correu rápido demais para o meu gosto, e eu não gostava disso. O recreio foi tranqüilo. Fui à biblioteca, tentando não encontrar com Davis nos corredores. Eu tinha certeza que ele arrancaria minha cabeça na primeira tentativa.

            As aulas continuaram naturalmente, ninguém havia atentado contra minha vida, o cheiro podre continuava e eu podia sentir um olhar muito revoltado perfurando minha nuca. Eu estava prestes a morrer, e a única coisa que eu conseguia sentir era tédio. Fiquei feliz quando a ultima aula era um segundo tempo de biologia. Pelo que eu pude perceber, o Prof. Devon havia percebido o olhar esmagador que Davis lançava sobre mim.

            _ Sr. Edmund Davis – então esse era o nome do meu assassino pessoal – não se esqueça que temos uma detenção hoje. Como esse é o ultimo tempo de vocês, o senhor pode me esperar aí mesmo em sua carteira. Nós vamos até a sala de detenção juntos. Não vai ser divertido?

            Todos riram, exceto eu. Me senti aliviado em saber que eu teria tempo de me despedir dos meus pais. Exagero, ele iria apenas me dar alguns socos e pontapés. Depois de uma semana, os hematomas nem seriam mais notados. Eu torci para que ele não quebrasse nenhum dente meu.

            O sinal tocou. A aula terminou como começou. Ninguém conhecido, nenhum novo amigo, nenhuma palavra trocada, a não ser com a Sra. Balley, a bibliotecária bonita e simpática que havia me indicado ótimos livros. Assim que eu coloquei todas as minhas coisas dentro da mochila e estava prestes a sair da sala de aula, o diretor apareceu na porta, seu rosto era pálido. Ele era semi-calvo, cabelos grisárlhos e olheiras fundas e escuras. Parecia ter uns cinqüenta e tantos anos.

            _ Prof. Devon. – a voz dele era rouca e desagradável – Precisamos do senhor na enfermaria. Um garoto entrou em convulsão e a enfermeira não sabe o que fazer.

            _ Como assim? – Devon disse, exasperado – a enfermeira não sabe lidar com uma convulsão?

            _ Eu sei que é estranho mas o garoto... – o diretor olhou para os alunos, hesitante – ele está salivando muito, falando coisas estranhas. Os olhos dele estão... O senhor tem que ver.

            Os olhos do professor se voltaram para Davis e, em seguida, para mim. Eu pude perceber a dura expressão de Devon trabalhando arduamente dentro de seu cérebro. Percebi, de imediato, que ele estava preocupado com a minha situação. Edmund não ficaria na detenção e eu não ficaria a salvo. Sentindo-se vencido, o professor pegou sua maleta e olhou na direção de Davis novamente.

            _ Nada – de – Gracinhas! – ele disse – amanhã eu saberei.

            Dizendo isso, ele saiu acompanhado pelo diretor. Eu olhei para trás, em busca de uma saída de emergência. Ao invés disso, eu encontrei um Edmund muito sorridente, um sorriso malicioso, psicótico. Ele acenou para mim, provocativo. Eu fiquei surpreso com minha atitude. Eu retribuí o sorriso malicioso e acenei igualmente provocativo. Eu estava cutucando a onça com a vara curta, mas todos estavam olhando para mim, eu não podia me mostrar um fraco medroso. Eu não era covarde, nunca fui.

            Joguei minha mochila nas costas e caminhei normalmente. As pessoas estavam me olhando, obviamente elas haviam visto minha reação confiante. Eu havia planejado tudo. Eu iria me misturar na multidão de alunos e me esconder em algum lugar estratégico e, assim que a barra estivesse limpa, eu pularia o muro perto do refeitório e ninguém iria me ver fugindo da raia. Era perfeito. Mas era tão covarde.

            Eu me odiei por pensar como um medroso. A lembrança de meu avô me acertou como um tufão de ar gelado. Recordei da última viagem que fiz a casa dele, antes de morrer. Nós estávamos na varanda, observando a lua. Ela estava linda, como todas as noites de lua cheia. Vovô passou o braço por cima do meu ombro e apontou para a grande massa prateada no céu.

            _ Sabe, filho. – eu me lembro das palavras dele perfeitamente. O tom da voz dela era impossível de se esquecer – o que a lua tem de tão especial? Ela enfrenta tudo de frente. Toda noite, mulheres são estupradas, pessoas são mortas, vidas são destruídas sem nenhuma piedade. O que a lua faz? Ela encara tudo de frente. Às vezes, com uma cara diferente. Sabe... Devíamos ser como ela. Não importa apenas a maneira como lidamos com os problemas, e sim como o encaramos. Se alguma coisa te amedronta e você foge, aquilo se torna um peso. Se algo te amedronta e você enfrenta, aquilo te deixa forte. Em ambos os casos, você está lidando com o medo. Mas apenas um deles está te permitindo crescer.

            “...Te deixa forte...”. Foi um incentivo mais do que suficiente para abrir meus olhos. Edmund poderia arrancar meus braços, me causar dor e até me deixar banguela, mas minha honra continuaria intacta, inabalável. Era a minha forma pessoal de deixar meu avô orgulhoso.

            Tomei a mesma rota que todos os alunos. Caminhei naturalmente pelo pátio, focando meus pensamentos no velho que sempre me inspirou confiança. Ele não estava mais comigo, mas havia me deixado bons conselhos, havia me ensinado como viver sem se arrepender. Eu iria fazer bom proveito de todas aquelas lições.

            Assim que eu atravessei o pátio, eu pude ver aquela massa de alunos fazendo um circulo em volta. Eles estavam olhando, de mim, para alguém logo atrás. Pelo cheiro de podre, Edmund Davis estava a alguns metros de distância, me olhando ameaçadoramente. Para o resto dos alunos, aquilo era um espetáculo envolvendo a nova atração do circo.

            _ Hei, garoto da cidade grande. – eu ouvi a voz arrogante. Edmund estava preparado. Eu também. – Então você não é tão medroso quanto eu pensei.

            Eu me virei para encará-lo. Aquele não era o melhor momento para ficar vermelho, controlei minha excitação e dei um sorriso torto, despreocupado. Era um dissimulado nato.

            _ Sabe... – ele continuou, se aproximando lentamente. Todos os alunos à volta prenderam a respiração – Odeio quando o seu tipo aparece por aqui. Acham que são os maiorais, que não precisam de ninguém. O outro garoto da cidade grande ficou na dele, não incomodou ninguém. Por que você não fez o mesmo? Por que não se junta a ele?

            Outro garoto da cidade grande? Ah, eu não era o único então. Eu fingi uma inocência que soou mais como uma provocação. Era exatamente o que eu queria.

            _ Eu fiz algo de errado? Peço desculpas. Prometo que não vai acontecer, Ed.

            _ Não. – ele bufou, seu olhar se estreitou – Não vai mais acontecer mesmo. Você se acha incrível, não acha?

            Aquela situação estava começando a me irritar. Ele estava agindo como seu tivesse começado toda a confusão. A única coisa que eu fiz foi me apresentar para a classe, como o professor havia mandado.

            _ Olha, cara. – eu disse, colocando minha mochila no chão. Minha expressão estava contraída. Eu sorri levemente – Se você quer acreditar mesmo que eu comecei uma confusão, ótimo. Mas eu acho que isso é besteira. Qual é o problema em ser de Seattle. Nós não temos nenhuma doença contagiosa, sabia? A única diferença é que nossos pulmões são mais escuros que os seus.

            _ Ah, um cômico. – ele falou, levantando os braços, olhando para todos – acho que eu vou ter que arrancar a piada de você com as mãos, que tal?

            Então ele estava pronto para avançar e me quebrar. Eu não estava com medo, só queria acabar logo com aquilo.

            _ Sério, Edmund. – eu falei, tentando amenizar – Eu não quero começar meu primeiro dia brigando. Deixa isso pra lá. Você pode simplesmente me ignorar, a escola é bem grande.

            _ Oh, então agora você quer tirar o corpo fora – ele zombou – qual é o problema? Está com medo?

            Edmund tirou a jaqueta e jogou no chão, sobre sua mochila. Seus braços estavam cheios de calombos, músculos que se consegue trabalhando no campo. O pai dele devia ser algum fazendeiro. Claro, isso não mudava o fato de que ele iria me partir em pedaços.

            _ Eu não tenho medo de você, Edmund – eu respondi, sério – muito menos raiva. Então não tenho motivos para brigar com você.

            _ Acredite, eu não preciso de motivos para te bater.

            Ele era o típico valentão, que coisa mais clichê. As pessoas a nossa volta continuavam olhando e murmurando uma com as outras, mas sem piscar. Elas não queriam perder o espetáculo.

            _ Quer saber? – eu peguei minha mochila e joguei sobre as costas – Eu não preciso fazer isso, eu não preciso estar aqui.

            Eu me virei e caminhei como se nada estivesse acontecendo. Minha mochila parecia quilos mais leve naquele momento. Eu estava me sentindo melhor até, muito mais bem disposto. Acho que minha atitude digna tinha deixado o grandalhão sem ações. Ou não.

            Foi tudo numa fração de segundo. Num momento todos se asfixiaram, alguns levaram as mãos à cabeça, outros taparam a boca. No momento seguinte, Edmund havia saltado sobre mim, com a perna esticada. A sua performance de voadora havia me jogado no chão, eu caí maduro sobre o piso frio.

            Eu estava com o nariz grudado no chão e as palmas de minhas mãos firmes também no chão. Aparentemente eu não havia quebrado nada... Ainda. Eu me levantei, sentindo um nervosismo fluir nas minhas veias. Ele estava disposto a me machucar.

            _ O que acha de comer concreto, garoto de Seattle? – ele zombou.

            Ele pisou na minha mochila, fazendo força para me manter pregado no chão. De alguma forma, aquilo não fazia efeito algum em mim. Ele ainda não havia percebido.

            _ Todos vão ver que vocês, metropolizados, não valem nada. São apenas de muitas palavras, mas não agem.

            Ele se abaixou e me agarrou pelo colarinho da camisa e me colocou de pé. Ele precisou fazer um esforço mais do que o normal. Eu senti a mochila ficando cada vez mais leve, meu sangue fervendo cada vez mais.

            _ Você deve se orgulhar muito dessa sua carinha bonita, não é? – ele gargalhou – pois bem, eu vou fazê-lo lamentar, amigo.

            Ele fechou o punho e lançou-o contra o meu rosto. O que aconteceu em seguida foi um movimento involuntário. Eu ergui minhas mãos, o punho aberto, e segurei o soco que estava prestes a me atingir. Pareceu tão fácil.

            _ Eu não sou seu amigo. – eu respondi, mas as palavras também vieram involuntariamente – e eu mudei de idéia. Eu quero brigar com você.

            Fechei o punho livre mirei na cara redonda do meu adversário. Eu o atingi como se estivesse acertando um pedaço de esponja. Ele voou uns dois metros de distância, caindo com um baque surdo.

            Os alunos a minha volta soltaram uma exclamação. Alguns pareciam eufóricos, outros espantados. Edmund se levantou, mexendo o maxilar. Meu soco tinha machucado ele pra valer. Mas Davis não demonstrou desistência.

            _ Então você não é mesmo um cara tão medroso – ele murmurou – acho que vou ter que te bater com mais força.

            Ele correu em minha direção. Eu senti o cheiro podre ficar mais forte. Edmund estava disposto a me machucar feio, eu não podia deixar. Os punhos dele estavam cerrados, ele veio em minha direção que nem uma bala. Mais rápido que ele, me abaixei alguns centímetros e, flexionando a perna, girei-a contra ele. O golpe acertou seu estômago, jogando-o para trás. Ele cambaleou, mas não havia desistido. Assim que se recuperou, ele se voltou contra mim. Me agarrou pelo braço e me puxou, fechando o outro punho em direção ao meu rosto. Caramba, eu estava gostando daquilo! Quando Edmund se deu conta, era eu quem estava segurando seu braço, minha outra mão estava segurando o punho dele. Eu apertei como se fosse uma bolinha de papel. Ele gemeu feito uma criança.

            Agarrei-o pelo pescoço e o pressionei contra o chão, minha outra mão segurando os dois braços dele sobre sua cabeça. Eu estava em cima dele, e sentia que ele ainda queria me alcançar. Mas, de alguma forma, eu era mais forte, ele não pôde se mover. Eu não queria machucá-lo, e isso estava claro nos meus olhos.

            _ O que foi? – Edmund disse, uma mescla de apavoramento e ódio em sua voz engasgada – você sabe que se me soltar... Eu... Eu t-te pegh... pego...

            Eu apertei o pescoço dele um pouco mais, para ter certeza de que aquilo era real. Ele gemeu como se estivesse sofrendo uma convulsão, engasgando nas palavras que não conseguiram sair. Eu só pude ouvir um grunhido no lugar de sua voz, que parecia dizer ,”por favor,”. Era real, eu estava torturando um cara duas vezes maior do que eu, e todos estavam me olhando, espantados.

            Eu havia conseguido chamar a atenção que eu tentei evitar por tanto tempo. Eu afrouxei meus dedos e soltei o braço dele e me levantei rapidamente, de modo que ele não pudesse tentar me agarrar. O cheiro podre havia sumido completamente. Edmund não queria me machucar. Ele estava com medo de mim.

            _ Foi você quem pediu. – eu falei, olhando pra ele. Eu estava nitidamente assustado. Era impossível acreditar que aquilo tinha acontecido – eu não queria... Você começou.

            Eu peguei minha mochila e joguei nas costas, sem olhar para trás. Todos estavam me encarando e, quando eu passei pela platéia e saí da escola, eu pude ouvir assobios e aplausos vindo dos alunos. Eles estavam satisfeitos com o espetáculo. Eu olhei para os meus pulsos, alisando as pontas dos dedos nos braços. Eu não me lembro de ter ficado tão forte. Edmund simplesmente não havia conseguido me machucar e foi fácil demais evitá-lo. Minha mente estava a mil meus músculos estavam latejando. A mochila parecia ainda mais leve. Antes de chegar em casa, eu decidi não dizer nada a ninguém.


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