A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 5
Mudança indesejada... O que as águas não podem c




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  Mudança indesejada... O que as águas não podem curar

 

            “Boa-viagem”. Essas Foram as últimas palavras que ouvi Kyle dizer. Emilliene e eu estávamos acomodados no banco traseiro. Já estávamos saindo de Seattle. Não pude ver o tempo passar em sua velocidade real. Parecia meio confuso ainda, parecia um desenho de televisão, daqueles que passavam todas as manhãs enquanto tomávamos café em casa. Não, aquilo definitivamente não parecia real.

            Curvei minha cabeça, dando uma última olhada para minha cidade, meu lar desde... Sempre. Pela primeira vez, a minha ficha caiu. Eu nasci na maternidade Sant Carmen Seattle. Aos cinco anos já conhecia as maiores lojas da cidade. Ali, naquele mundo desgovernado, eu me sentia em casa. Me senti como se estivesse voando alto demais, mais alto do que minhas asas podiam me levar. Como um movimento ousado e estúpido, certo de que eu sentiria muita dor quando chegasse ao chão. O cheiro de cidade grande logo seria esquecido. Essa lacuna seria preenchida por perfumes de ervas.

            Não. Eu não estava voando. Minhas asas se quebraram quando a placa “Você está saindo de Seattle – Boa Viagem” se materializou logo à frente. Dezesseis anos. Minha vida inteira estava sendo deixada para trás, junto com qualquer lembrança, amigos, admiradores, escola. Camille nem havia se despedido de mim, o que fez meu coração apertar no peito. Lembrei-me dos dias em que nós três (Camille, Kyle e eu) passávamos juntos. A minha necessidade de ficar sozinho me pareceu patética, como se, finalmente, eu tivesse acordado para vida. Bem, adeus Seattle. Olá, Ford.

            O céu à noite estava tão preto que mal se podia ver o asfalto. O imenso manto negro nos cobria, a penumbra em meio às árvores ao longo da estrada. Não havia lua, não havia estrelas. Emilliene parecia não se incomodar. Ela simplesmente encostou sua cabeça em meu ombro e, em questão de minutos, adormeceu.

            Ninguém trocou uma palavra sequer. Assim era melhor, eu queria aproveitar aquela noite o máximo que pudesse. Assim que chegasse à minha nova cidade, meu mundo como garoto de cidade grande desmoronaria.

            Eu deixei escapar uma risada abafada. Meu pai me olhou pelo retrovisor. A minha vida parecia tão clichê agora. O garoto isolado e frustrado da cidade grande se muda para o interior e vai viver com os caipiras. Aquela mudança era patética, cada pensamento era patético, eu me sentia patético. Nada como um dia patético para amargar a boca.

            Não iríamos muito longe de carro. Provavelmente meu pai havia pensado em tudo. Afinal, Califórnia não ficava do outro lado da esquina. Meu pai achou melhor pegarmos um avião do aeroporto da cidade vizinha. As linhas aéreas de Seattle provavelmente estavam em caos completo.

           

            Foi bem mais rápido do que eu imaginei. Estávamos acomodados no avião, Emilliene continuava sentada ao meu lado. Eu tive que carregá-la até o seu assento, já que ela insistia em se enterrar num sono pesado e inquebrável. Meus pais estavam a duas fileiras de poltronas a frente de nós.

            Quando olhei para a janela o Sol já estava nascendo. Estávamos sobrevoando o estado de Oregon naquela altura do campeonato. Uma nova manhã estava nascendo bem diante dos meus olhos. Uma garoa fina começou a cair, as gotas tão minúsculas deslizando no vidro da janela. Emilliene ainda dormia tranquilamente.

            Não me restou muita coisa a se fazer. Eu sabia que, cedo o ou tarde, isso teria que terminar. Acomodei-me na poltrona e esperei o sono chegar, ou esperando, ansiosamente, pela voz do piloto, informando que a viagem havia chegado ao fim. Entre um e outro, meu corpo cansado escolheu dormir. E não voltei a acordar até ouvir a voz do piloto.

 

            Paramos em uma outra cidade, próxima a Ford. Meu pai alugou um carro e colocamos as malas no bagageiro. Meus pais pareciam ansiosos para darem uma olhada na nova casa. A transportadora traria o nosso carro na manhã seguinte, e a mobília estaria em casa dentro de dois dias, embora não fôssemos ficar com tudo, já que a mansão do meu avô possuía as mais belas e caras mobílias. Eu desejei não ter que olhar para aquelas paredes nunca mais. Elas iriam me trazer dor, isso estava claro. Por pior que pudesse parecer eu precisava me mostrar satisfeito, ou o menos desanimado possível. Eu devia isso aos meus pais.

            Eu tinha uma certeza dentro de mim. Richard estaria nos esperando na nova casa. Eu supus que, talvez, ele tivesse partido na nossa frente. Ouvi meus pais dizendo que ele iria transferir seu curso da faculdade para Stanford, na Califórnia. A distância ainda seria grande, mas eu ficava satisfeito em saber que estaríamos no mesmo distrito estadual.

            A viagem de carro não iria demorar. Emilliene estava muito ativa agora, olhando atentamente para a paisagem que corria a nossa volta como um borrão. Eu decidi não falar nada a respeito de Richard, afinal, meus pais começaram a conversar e trocar sorrisos, e eu suspeitei que se voltasse à discussão do dia anterior poderia incomodá-los.

            Visualizei, na minha mente, a mansão do meu avô. Ela continuava linda dentro dos meus pensamentos, mas eu sabia que não seria a mesma coisa, não mesmo. Mas eu devia tentar. Havia, no entanto, algo que me incomodava. Se o motivo da mudança indesejada era a morte lamentável do vovô, porque, raios, estávamos nos mudando para Ford? Essa pergunta fazia minha cabeça latejar, mas essa conversa teria que esperar, pelo menos até nos instalarmos.

            Finalmente avistamos a casa. Uma placa escrito “Vance’s Home” (Lar dos Vance) estava pendurada num galho de um salgueiro próximo a uma cerca. Eu reconhecia aquela árvore, e o muro de sebe que crescia emaranhado na cerca. Eram cerca de oitocentos metros de chão de terra e ipês coloridos, até chegarmos em casa. Toda aquela região pertencia, ou melhor, pertenceu ao meu avô. Sempre idealizei um lugar como aquele para mim. Agora eu não fazia idéia do por que.

            Emilliene ficou admirando as árvores, o aras a poucos metros, com os quatro cavalos, e logo a frente uma fonte de uma mulher de pedra com as mãos no peito, onde parecia haver uma ferida. A fonte nunca funcionou mas, ainda assim, continuava bela e atrativa, embora fosse uma pedra lapidada com feições tristes, como se sofresse. Nunca soube por que um lugar como aquele tinha algo tão melancólico. A mente do velho Vincent era um mistério. A fonte significava que havíamos chegado à mansão.

            De frente à mulher de pedra, uma escada de mármore levava à porta da frente. As paredes da mansão tinham um tom de branco-gelo. As janelas e as portas eram amarelas e as cortinas eram tão alvas quanto se podia imaginar. Havia uma garagem para quatro carros na lateral do casarão. Na orla, dezenas de árvores cresciam espremidas entre si, suas raízes competindo espaço na terra fofa. Era um belo cartão postal, para quem não perdeu o que eu perdi.

            O céu estava nublado, repleto de nuvens negras carregadas. Meus olhos, astutos e ágeis, procuraram por qualquer sinal que indicasse a presença de Richard. Nenhuma janela aberta, nenhuma cortina desajustada, a porta trancada, inclusive a dos fundos. Obviamente não havia ninguém ali.

            _ Mãe. – minha curiosidade e aflição estavam falando mais alto agora – onde está Richard?

            Ela pareceu não ouvir, ou pelo menos ela fingiu não ouvir. Meus pais estavam tirando as bagagens, então decidi ajudar. Mas não desisti da pergunta.

            _ Mãe... – falei assim de me certificar de que ela estava ouvindo – onde está Richard?

            Eu pude sentir seu corpo se enrijecer do meu lado. Ela fechou os olhos e contraiu os lábios, tentando se concentrar em seja lá o que fosse.

            _ Ele não demora a aparecer, querido.

            _ Mas, mãe! Eu já to ficando meio preocupado e...

            _ Pois não fique. – ela me interrompeu. Deu uma pausa e continuou – Olha, querido. Não se preocupe. Se eu estou dizendo que ele está bem, pode confiar.

            Aquilo pareceu bem lógico e convincente pra mim. Mas eu não o via há quase dois dias, e isso me incomodava um pouco. Éramos muito ligados, e eu já havia me acostumado com as implicâncias dele.

            _ Ok. – eu disse, enfim – Mas será que eu mereço alguma explicação sobre isso?

            Minha mãe sorriu. Decerto, aqueles lábios faziam maravilhas com meu estado de espírito quando se contraíam.

            _ Assim que ele chegar, provavelmente você já estará sabendo de boa parte.

            Soou sincero. Eu sei que ela não mentiria pra mim, então a tranqüilidade me domou. Eu simplesmente peguei as bagagens e as levei pra casa. Elas estavam ligeiramente mais leves desde a última vez. Acho que os exercícios que eu andava fazendo estavam me ajudando bastante.

            Entrei na grande mansão. Não havia mudado nada desde a última vez em que eu estive lá. A construção era estilo vitoriano, ou algo assim. Nada de muito luxuoso, mas bem aconchegante e modesto e, claro, impecavelmente belo e limpo. Exceto pela pequena coleção do vovô Vincent de diversos pintores impressionistas. Monet, Van Gogh, Pissarro, Degas e outros artistas contemporâneos que eu não conhecia.

            De fato, era uma mansão enorme. Corredores largos, poucos móveis, mas vistosos. Um vazio tomou conta de mim como um golpe de ar frio. Uma dor distinta saiu de meu peito, o cheiro de uísque emanou de lugar nenhum, talvez fosse psicológico, aquele cheiro acre, familiar. Definitivamente, era uísque. Era uma mansão tão grande que poderia se perder da felicidade facilmente. Eu havia perdido. Talvez Van Gogh quisesse pintar minha “expressão” agora.

            Levei as bagagens para os quartos. Meu pai me ajudou. Não demorou mais do que dez minutos. Eu estava no quarto no final do corredor do segundo andar. Seria ali meu novo território. Joguei os pôsteres de “Matchbox Twenty” e “Oasis” sobre a cama, guardei as roupas no guarda-roupa, os sapatos em baú de madeira debaixo da cama. Tudo provisório, até que meu ânimo me permitisse decidir os lugares permanentes para meus pertences.

            Abri a janela vagarosamente. Provavelmente alguém havia limpado a casa antes de nos mudarmos. Não havia um grão de pó sequer. Estava tudo impecavelmente lustroso. Até as roupas de cama pareciam ter sido tiradas do varal naquela manhã. Eu ainda podia sentir o cheiro de lavanda.

            Olhei cômodo por cômodo, como se eu estivesse procurando algo que nem mesmo eu sabia. Não havia nada, absolutamente nada, que eu pudesse encontrar ali. Apenas o vazio, o ruído do meu pensamento ricocheteando as paredes do meu crânio, me causando náuseas.

            Desci silenciosamente até a cozinha. As vozes animadas de Emilliene e dos meus pais ecoavam de lá. Forcei um sorriso, o meu melhor, para que eles pudessem acreditar que eu me sentia bem com a mudança. Não era culpa deles, e muito menos justo, fazê-los se sentirem pais fracassados.

            Antes de chegar à cozinha, parei de frente ao espelho da sala de estar. Eu dei uma bela olhada nas minhas peças de roupa. Uma camisa preta com manga comprida, calça jeans e allstar. Ri de mim mesmo. Eu estava parecendo um daqueles garotos largados do meu antigo colégio, que pareciam viver de mal com o guarda-roupa. Mas eu me senti bem dentro daquelas roupas. Aquele era meu lar e, embora a sensação de vazio e tristeza, eu nunca me senti tão em casa quanto naquele momento. Bizarro, não?

            Continuei com o sorriso estampado no rosto. Meus pais se viraram para mim assim que eu entrei na cozinha. Que bom. Minha performance no sorriso havia agradado aos dois. Mas Emilliene me olhou com aqueles olhinhos azuis brilhantes, como se ela soubesse o que se passava dentro de mim. Ela veio até mim e abraçou minha cintura. Eu a peguei no colo e beijei sua bochecha. Ela estava crescendo rápido, minha doce Emi.

            _ O que achou da casa, filho? – meu pai perguntou – acha que pode se adaptar aqui?

            Ele sorriu, mas não era tão eficiente quanto o sorriso de Elisabeth Chambers. Eu não queria mentir, mas não queria deixá-los magoados com a minha resposta.

            _ A casa é como sempre foi. – eu suspirei, olhando o teto, com minhas sobrancelhas arqueadas – Não seria um mau lugar pare se viver.

            A escolha do “seria” não foi muito boa. O sorriso do meu pai perdeu a intensidade. Mas minha mãe parecia tranqüila, como se pudesse entender minha dor. De fato, ela me conhecia melhor que ninguém.

            _ Dê tempo ao tempo. – ela disse – vamos nos acostumar.

            Aquela conversa me lembrou da pergunta que martelava na minha cabeça. Era o momento ideal.

            _ Mãe... – eu comecei, fingindo um tom casual – nós nos mudamos pra cá por quê?

            _ Como?

            _ Nós nos mudamos pra cá... Por quê? É pra afastar as lembranças, a dor... Porque, se for isso, acho que não vai dar muito certo. – tentei parecer o mais educado e menos seco possível.

Ela pareceu selecionar a dedo as palavras certas.

            _ Ouça, Matt. Nós não podemos viver uma dor para sempre. Faz oito meses desde a morte de seu avô, e isso já é muito tempo. Acho que não podemos manter essa angústia.

            _ Então... Por que aqui? Mais perto de todas as lembranças?

            _ Porque esse tipo de dor nunca desaparece, Matt. – ela parecia tentar admitir isso mais para si mesmo do que para mim – Estarmos aqui faz a dor aumentar, isso é verdade. Mas, ás vezes, alimentar uma angústia nos deixa mais fortes. Passamos a dominá-la em seu estágio mais avançado. Essas paredes nos trazem boas lembranças. Vamos nutrir todos esses sentimentos, bom e mal. O equilíbrio é a melhor forma de abater a dor. Você já é maduro, filho. É capaz de entender que algumas coisas nunca mais serão as mesmas. Seu avô não vai voltar, e precisamos enfrentar essa realidade antes de enfrentar qualquer outra coisa.

            Todos nós ficamos em silencio durante alguns segundos na cozinha. Era a coisa mais sábia e reconfortante que minha mãe dissera alguma vez. Era verdade, aquela dor nunca seria levada, a ferida nunca se fecharia. Mas as lembranças boas, cada momento bom ao lado do meu avô, me dariam eficientes curativos para a alma ferida. Pela primeira vez, eu descobri que meu avô não estava certo em tudo. Aquele machucado no peito, água nenhuma poderia curar. Mas o tempo e a persistência faria dele algo menos doloroso.

 


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Notas finais do capítulo

Pessoal, estou com ótimas idéias para essa história, mas é, na prática a minha primeira. Então, por favor, qualquer idéia,opinião ou coisa do gênero, avisem. Digam o que estão achando, se estão gostando oou não. Valeu pessoal, espero que gostem mesmo!



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